terça-feira, 16 de outubro de 2018

CRIMES SOB SUSPEITA (VOLUME II) - 2005


FABIANO SANTOS SOUSA





THE INVISIBLE THING’S DIARY
(ou CRIMES SOB SUSPEITA)






Volume II




















“...porque morrer, de vez em quando, é bom.”
F.S.SOUSA






















SUMÁRIO


XIV – Não há leis contra atropelamento de cachorros
XV – Gárgulas
XVI – Priscila
XVII – O Híbrido
Bibliografia









XIV – NÃO HÁ LEIS CONTRA ATROPELAMENTO DE CACHORROS


Estavam já a mais de duas horas atravessando a densa floresta e ele, certamente estava odiando tudo aquilo. Há muito o tolo palavrório enaltecedor dos guias se tornara inaudível para ele. Tudo o que seu pensamento fazia era amaldiçoar aquela lama fria e pegajosa aos seus pés, que tornava cada passo árduo e penoso, além do sol escaldante que fazia toda a sua pele arder como em brasa e principalmente os malditos insetos. Das mais diversas formas e tamanhos, pernilongos os rodeavam e atacavam como caças tentando abater King Kongs enfurecidos.
            Vandersom não era, nem nunca fora um naturalista. Analisando um pouco de sua vida, notar-se-ia que passara até bem longe disso. Amava a cidade, com seu ar poluído e seu trânsito caótico. Todavia, apaixonara-se por uma guia-turística absolutamente alucinada pelo contato extremo com a natureza. Tanto que aprendera o roteiro das mais diversas florestas, serras e demais trilhas naturais e selvagens nos principais cantos do Brasil. Toda aquela determinação e coragem do espírito aventureiro de Fátima o impressionaram. Mas isso fora há quatorze anos. Com o tempo, chegou a pensar que ela se adaptaria melhor à rotina do casamento, o que não aconteceu. Ela continuou a seguir seu fascínio de se embrenhar pelas matas, por dias, semanas a fio. Ele, Vandersom, que sempre sonhara em ser repórter urbano, teve que mudar os planos e tornou-se fotógrafo para poder acompanhá-la em suas viagens constantes. Era isso ou praticamente não compartilhar de sua presença durante todo o mês. Mas a rotina louca e as expectativas conflitantes fatalmente levaram a relação ao declínio. Amenizavam aquilo quando Fátima partia para mais uma “expedição” e Vandersom, desta feita, optava por não ir. Seria mais ou menos o que os casais modernos costumam chamar de ‘dar um tempo’. No fundo, os dois achavam que um dia, não seria mais possível que ela retornasse, pois o lugar de um dos dois já estaria ocupado, mas enquanto isso não acontecia, ela voltava e os dois se alegravam muito com o reencontro como se nada houvesse acontecido e faziam as pazes, o que geralmente culminava com uma longa e maravilhosa noite de amor.
            Isso até o dia seguinte, quando todas as suas diferenças tornavam a raiar tanto quanto o sol. Ainda assim, por incrível que pareça, Vandersom nunca havia traído a esposa durante suas ausências. Por um capricho do destino, isto se daria justamente numa viagem em que ele a acompanhara.
            Fátima fora contratada como guia dentro de um projeto que vinha inovando e se popularizando por contribuir para a conscientização das pessoas sobre a importância das principais reservas florestais indígenas do Brasil. Tratava-se de um intercâmbio planejado entre turistas e nativos, viabilizado por parcerias das secretarias sociais e culturais do país com forças do poder privado. Os guias conduziam pequenos grupos de turistas que junto com intérpretes e supervisores era convidado pelos próprios índios a conhecerem suas aldeias e seus costumes.
            Mais do que os costumes indígenas, nesta primeira viagem Vandersom conheceu Icoracy, ou simplesmente Cora, uma linda índia adolescente que se insinuara para ele desde o primeiro momento em que pisara na aldeia. Seria realmente muito difícil resistir aos seus encantos durante os quinze dias em que permaneceram como hóspedes na aldeia. Certa tarde, enquanto ele passeava sozinho na floresta, ela sorrateiramente o seguira e quando se encontraram, fora inevitável deixarem seus desejos extravasarem. Embora sozinhos fossem incapazes de se compreenderem por palavras, na linguagem universal do amor, certamente tal empecilho desaparecera.
            A menina era linda: de semblante angelical e ao mesmo tempo insinuador e um corpo divino de fêmea selvagem planamente desenvolvida; pele macia e morena, quase dourada, cabelos negros como a mais alta noite sem estrelas e as curvas mais voluptuosas sob ínfimos trajes que quase tudo revelavam, o que servia apenas para atiçar de forma incontrolável a imaginação, a curiosidade e o desejo.
            Logicamente, Fátima não soube de nada a respeito de Cora. E nem ninguém da tribo. A índia estava prometida ao filho mais velho do cacique, a quem certamente não agradaria tal revelação.
            Assim, o grupo partiu tranquilamente de volta para a cidade, agradecido pela hospitalidade e sob as bênçãos de todas as autoridades da tribo.
            Antes disso, Vandersom esteve mais uma vez com Cora. A danadinha dopara Fátima durante o chá da tarde fazendo-a mergulhar a noite num sono profundo e imperturbável; assim, na própria oca cedida ao casal, Vandersom teve sua noite com a indiazinha sob o ressonar indiferente da esposa.
Cora parecia ser um pouco mais jovem do que o índio a quem fora prometida, mas certamente, perto dela ele deveria ainda ter muito que aprender.
Enfim, para Vandersom tudo aquilo parecera estar prestes a se tornar memórias apenas, desde que deixaram a aldeia para voltarem às suas rotinas civilizadas de conflitos sentimentais urbanos.
Neste novo retorno, porém, não houve o período de calmaria que tradicionalmente costumava repousar sobre a relação dos dois após o estresse que marcava as discussões sobre a real importância e necessidade da última viagem. E nesse ponto, Fátima sempre levava vantagem, pois as viagens já haviam sido feitas e não se podia mais mudar isso. Vandersom nunca conseguira fazê-la encarar seriamente as discussões sobre importância e necessidade das viagens antes que a decisão sobre se lançar na aventura já tivesse sido tomada. Mas desta vez pareceu que iria realmente ter sua chance, (e isso explicava a ausência do ‘período-calmaria’). Conhecia bem os modos da esposa e sabia pelas suas reações que mal havia voltado à civilização e já se preparava para ingressar numa nova aventura expedição maluca, talvez cruzando o rio Purus, ou escalando a Serra do Cachimbo. Às vezes poderia matá-la...

- O que houve? – ela disse, estranhando sua reação, a qual parecera acreditar estar realmente preparada – Perdeu a fala?
Após uma pausa contemplativa e esforçando-se para se recompor, Vandersom respondeu:
- Fiquei... ... surpreso; só isso.
- Pareceu mais... ...motivado – ela ironizou.
- Não diga bobagens, Fátima. O que me motivaria a desejar, ainda que por um segundo, a voltar para aquele fim de mundo?
- Talvez a paz e a harmonia, ainda que tão brevemente experimentada.
- Brevemente para você, a quem o homem moderno deveria voltar às cavernas. Como posso considerar breves duas semanas rodeado de bichos fedorentos, insetos famintos pelo meu sangue e pessoas selvagens, aparentemente hospitaleiras, mas que podem, a qualquer momento, se ofender com alguma palavra ou gesto involuntário meu, podendo até conforme seus costumes e lendas, absolutamente distantes do meu conhecimento, servirem-me num banquete de lua cheia?
- Não seja dramático e muito menos injusto, Vander. Ainda que selvagens como você diz, eles nos trataram com muito mais sociabilidade do que nossos próprios pseudo-amigos da alta roda.
- Pois bem, que seja, mas isso ainda não me convence a trocar meu quarto com ar-condicionado e DVD por uma oca úmida e embolorada.
- Você não tem que ir se não quiser. Estou dizendo que eu vou. É o meu trabalho, Vandersom.
- Sim, claro, conheço esse discurso. Quem vamos levar desta vez? Mais alguns gringos excêntricos loucos para espalharem para o mundo que todos os cidadãos brasileiros são nativos comedores de gente?
- Nada disso. É um projeto muito mais sério. Guiaremos um grupo de pesquisadores que está estudando os incríveis processos terapêuticos baseados na medicina natural e técnicas de xamanismo a que se valem aqueles índios. A fama de alguns milagres de seus pajés ao longo dos anos atravessou a floresta e chegou à civilização.
- O único milagre que os vi fazerem foi o de dormirem pelados e não acordarem abarrotados de erupções cutâneas por causa dos pernilongos.
- Não importa o que você pensa, Vander. Eles acreditam tanto que pagarão para que os levemos até a fonte dos seus estudos.
- E o que o governo acha disso? Você sabe como eles gostam de se meter nestas integrações que envolvem brancos e índios, ainda mais quando o cunho é científico ou cultural e não apenas uma inocente e lucrativa diversão para turistas.
- É um estudo muito bem organizado, também, com total cobertura e supervisão do IBAMA e outros órgãos do governo. Há muito mais gente interessada na magia e religião daquela tribo do que você imagina.
- E quanto a você, meu bem, acredita mesmo em tudo isso?
Sempre, no ponto em que ele a chamava de “meu bem”, as tensões impetuosas da discussão já estavam totalmente aplacadas. Estava claramente baixando a guarda e era a hora dela fazer o mesmo.
- Sou católica, você sabe, Van; mas respeito muito a devoção dos outros e é inegável que a harmonização que os índios partilham com a floresta é tão forte que realmente parece ter algum caráter divino.
- Você sabe exatamente o que esses pesquisadores estão querendo descobrir?
- Os índios chamam de Espíritos da Floresta. Ouvi, inclusive, boatos de que há alguns infiltrados na própria aldeia.
- Eu também ouvi algo sobre demônios e espíritos noturnos, no pouco que consegui compreender das conversas dos índios com turistas e instrutores, mas achei que fossem, e certamente ainda acho, um monte de baboseira supersticiosa.
- Talvez tenhamos então a chance de conhecer a verdade.
- Mais uma vez, nada do que eu disser a fará desistir dessa viagem, não é?
- Não sei. Preferiria que você dissesse que me apoiará, mesmo que não queira ir comigo.
- Mas é claro que eu lhe apoiarei. E quanto a não ir com você, isto nem passa pela minha cabeça. Só que desta vez pretendo levar estoque para um ano de repelentes.
Fizeram amor naquela noite.
Impossível negar que em determinados instantes fantasiou que estava com Cora...

Duas horas de caminhada. Esta era a distância máxima permitida pelos índios para que seus visitantes deixassem seus veículos motorizados ao se dirigirem para aldeia. Tudo – diziam – para não porem em risco nem perturbarem a tranqüilidade dos animais que rodeavam a tribo. Assim, para serem aceitos e bem acolhidos tinham que deixar os carros em uma planície e seguir todo esse percurso atravessando a pé a densa floresta.
Vandersom, no entanto, desta vez não iria aceitar isso. Muito antes de chegarem à aldeia fora tomado pelo receio de reencontrar Cora. Era muito difícil saber qual seria a reação e a atitude da índia ao rever seu primeiro homem. Sim, porque embora ela provavelmente já sentisse seu corpo arder no fogo da paixão antes mesmo de conhecer Vandersom, ela era virgem quando estivera com ele da primeira vez, o que aumentava a suspeita sobre ela poder estar, (ou achar estar), apaixonada por seu príncipe branco da cidade. E uma vez apaixonada, aquela simples excursão poderia propiciar a Vandersom sérias complicações.
Não a encontrara, todavia, logo que chegaram à tribo. Ela e seu futuro esposo cumpriam uma missão de paz em uma tribo vizinha, estando por chegar a qualquer momento.
Para Vandersom, claro que fora um alívio. Pudera se lançar na floresta sobre o pretexto de passear sem correr o risco de ter a garota o seguindo e ameaçando fazer cena pública se ele não aceitasse fugir com ela, podendo ser pego ainda por algum ‘curumim’ bisbilhoteiro e linguarudo pronto pra bradar o escândalo pelos quatro ventos da floresta. No entanto o alívio passou à medida que concluiu que o reencontro com Cora seria inevitável e a forma com que tudo iria ocorrer dependeria exclusivamente da reação que a índia teria.
Para tentar livrar os pensamentos de tais preocupações, lançara-se na mata para fazer algo que desde a excursão anterior lhe ocorrera. Os guias haviam marcado com fitas e sinais todo o caminho que haviam feito para facilitar caso alguém se perdesse, ou precisasse voltar sozinho. Assim, foi fácil para Vandersom localizar o local onde ficaram os carros, após claro, um bom tempo de caminhada. Levou assim o carro até um ponto muito mais próximo da aldeia e procurou ocultá-lo bem. Se a nativa fizesse qualquer menção de tornar pública a aventura dos dois, ele daria um jeito de apanhar Fátima e fugir dali antes mesmo que ela abrisse o bico.
Durante o percurso de volta, (muito mais curto a ser cumprido a pé dessa vez), passou subitamente a ouvir ruídos e ver vultos rápidos movendo-se pela mata. A princípio achou que fosse a índia, chamando-a inclusive. Não houve resposta; apenas ruídos, arbustos e moitas que se mexiam. Resolveu continuar a andar, esperando conseguir chegar à aldeia sem ser devorado por alguma fera.
A coisa continuava a lhe seguir e parava exatamente quando ele também o fazia. Certamente já não se preocupava tanto em não ter sua presença percebida, embora continuasse ocultando sua figura na mata densa.
Vandersom se lembrou de que tinha uma arma no porta-luvas do carro, mas seria tolice tentar voltar para apanhá-la. Se aquilo lhe quisesse fazer mal, certamente não lhe daria tamanha chance.
De súbito, até meio sem saber o porquê, Vandersom começou a correr, numa debandada impetuosa pela mata. Em determinado ponto, saiu propositadamente da trilha. Como previu, aquilo pareceu atiçar e ao mesmo tempo desorientar seu provável algoz, que, sem poder prever a direção dos movimentos do homem em fuga, viu-se obrigado a abandonar seu processo estratégico de o seguir camuflado, passando a persegui-lo diretamente dentro de seu campo de visão.
Assim que pôde, Vandersom olhou para trás e viu o que lhe perseguia: era realmente um animal; pra dizer a verdade, não muito assustador: de pequeno porte, assemelhava-se a um cachorro. Seu pêlo, que conservava algumas mechas acinzentadas, fora avermelhado como fogo, provavelmente por alguma espécie de pigmento artificial. Impossível não o reconhecer: pertencia aos índios Aquanos, anfitriões de Vandersom, e era considerado por todos um animal sagrado. Vandersom nunca o vira, porém, fora dos limites da tribo. Teria fugido? Estaria perdido? Isto explicaria o porquê de está-lo seguindo, mas como um animal selvagem se perderia em sua própria floresta?
Os Aquanos tinham alguns animais considerados por eles como sagrados, a quem prestavam homenagens com esculturas, pinturas rudimentares e até determinados cultos que para os visitantes brancos sempre pareciam incompreensíveis. E justamente aquele cachorro parecia ser o mais importante deles. Talvez achassem que fossem os tais ‘espíritos da floresta’ sobre os quais lhe falara Fátima.
Por hora isso não importava. Para Vander, aquele era apenas um pequeno vira-lata selvagem que o fizera correr assustado por boa parte da floresta. Já estava mais do que na hora de dar um basta àquilo.
Provavelmente nem precisaria se esforçar muito.
Concentrando um pouco a visão, localizou facilmente um galho de árvore de tamanho médio que serviria certamente para intimidar o valentão de quatro patas. E deu certo; quando o bicho se deu conta de que sua caça estava disposta a enfrentá-lo, pareceu perder boa parte da motivação. Precipitou-se a ladrar por alguns instantes, mas logo silenciou por completo. Ficou apenas, a uma distância segura, observando Vandersom com um olhar reprovativo. Desistira por completo de qualquer idéia de lançar-se numa investida.
- O que deu em você, garoto? Seus donos não vão gostar de saber que você costuma perseguir as visitas.
O cachorro voltou a latir como se discursasse a alguém plenamente capaz de compreendê-lo.
- Não sei qual problema você pode ter comigo, mas é melhor deixarmos de lado e voltarmos para a aldeia. Não quero que seus amigos achem que seqüestrei o deus deles.
O animal pareceu compreender a mensagem e curvou a cabeça, como que se dispondo a aceitar a trégua com o inimigo.
- Espero que você saiba o caminho de volta. Nem imagino o quanto nos distanciamos da trilha.
De fato, o cachorro conhecia bem o caminho de volta e os dois retornaram sem problemas à aldeia.
Logo na entrada, Vandersom notou uma tranqüilidade acima da costumeira. Certamente, a índia Cora e seu noivo já deveriam estar de volta e ela, provavelmente já ciente da presença do homem branco com quem tivera recentemente uma relação um pouco mais estreita  do que o restante da tribo. Por um instante Vandersom chegou a pensar que ela agiria como se nada houvesse e tudo decorreria de forma tranqüila, podendo até ocasionalmente os dois continuarem a se encontrar a sós, embora assim que aceitou viajar, Vandersom tivesse prometido a si mesmo que evitaria ao máximo por em risco seu casamento, o que incluía principalmente ter mais qualquer coisa com a indiazinha. Sabia, porém que não seria nada fácil resistir. Todavia, um pouco depois de penetrar no silêncio sinistro da aldeia sentiu suas costas serem cutucadas pela pontiaguda extremidade de uma flecha e soube que toda aquela idéia de tranqüilidade era a mais pura ilusão e que a coisa iria mesmo esquentar.

Foi conduzido de forma pouco polida pelo guarda até uma oca no centro da aldeia. Lá estavam os demais integrantes daquela expedição agrupados e cercados por guardas e autoridades da tribo. Logo que o viram, os excursionistas começaram a vociferar com ele, exigindo explicações.
Berrando alguma palavra em seu dialeto, o chefe da tribo coibiu a algazarra que se principiava.
Embora já praticamente certo sobre a resposta, Vandersom se viu obrigado a questionar o intérprete sobre os acontecimentos, já que pouco entendia do palavrório dos nativos.
- O que está acontecendo?
- Achei que você fosse o mais indicado para nos dizer, Sr. Vandersom – respondeu o intérprete, que se chamava Lúcio “de alguma coisa”.
Fátima tentou esclarecê-lo do pouco que sabiam. Tinha um olhar perdido e atônito. Não fazia idéia do que o seu marido estava sendo acusado e embora não estivesse certa quanto a enxergá-lo como inocente ou não, até que o próprio apresentasse sua versão dos fatos, certamente não estava esperando um caso de adultério entre seu marido e uma índia de dezesseis anos.
- Eles dizem que você ofendeu a honra e a hospitalidade deles, Van. O que você fez?
Um dos índios começou a gritar descontroladamente com Vandersom. Após algumas palavras que pareceram reprovativas do cacique ele se conteve.
- Ah, então foi isso – exclamou Lúcio, que após ouvir as palavras do que era um dos irmãos da índia Cora, começava a compreender tudo.
Para os demais, a verdade pareceu também começar a vir à tona, não por palavras, mas sim pela visão da própria Cora entrando no recinto arrastada pelos braços por seus outros irmãos. Logo em seguida entrou seu futuro marido e assim como o dos demais índios, seu rosto perdera qualquer feição de simpatia que já pudesse vir a ter tido para com os brancos visitantes. Ele tinha sim um reluzente punhal na cintura e as atenções, reveladas por um olhar que era de puro ódio, claramente voltadas para Vandersom...



- Você trepou com ela, seu desgraçado! – vociferou Fátima, tentando avançar para cima de Vandersom, mas sendo intimidada pelas lanças dos soldados a permanecer no mesmo lugar.
- Tenha calma, Fátima. Nós vamos conversar melhor e...
- Não venha me pedir calma, seu cretino! Como pôde fazer isso comigo?
- Escute, meu bem. É que...
- Não ouse me chamar de “meu bem”!
- Está bem. Só quero dizer que este não é o melhor momento para conversarmos, ok?
- Vá se foder, cretino!
Os índios recomeçaram um novo colóquio a que os brancos, com exceção do intérprete, não podiam compreender claramente; mas, para todos começava a ficar mais do que claro que por não controlar sua libido, além de arranjar grandes complicações em seu casamento, Vandersom colocara a vida de todos em apuros. Os índios já haviam dado provas de que sabiam ser amistosos, gentis e hospitaleiros, mas viviam rigidamente sob suas leis as quais o homem branco acabara deliberadamente de aviltar. Deixaram de ser visitantes para eles e se tornaram intrusos.
Subitamente, o noivo ofendido desembainhou o punhal e com extrema agilidade saltou para perto de Vandersom, encostando a lâmina em sua garganta. Este, que permanecia tendo os braços fortemente seguros pro dois guardas, apenas fechou fortemente os olhos, esperando pelo suave e letal talho em sua garganta tênue. No entanto, após ouvir algumas palavras austeras do cacique, o jovem índio, ainda que visivelmente contrariado, tornou a guardar a arma na cintura.
Um outro índio cutucou as costas do intérprete com a lança, dizendo-lhe algumas palavras. Logo após, ele falou aos demais:
- Eles querem que a partir de agora eu traduza para vocês tudo o que estão dizendo.
O cacique lançou um último olhar reprovativo para Cora e depois lhe virou as costas. Começou então a se dirigir aos prisioneiros. Paralelamente, o intérprete começou a traduzir o que ele dizia:
“A tribo lamenta profundamente o que se passou debaixo de sua guarda, mas temos plena consciência de que nem todos foram responsáveis pelo ultraje as nossas tradições. Infelizmente todos deverão sofrer com punições para servirem de exemplo contra futuras ousadias semelhantes da parte dos homens brancos. Obviamente, o grau de punição entre os culpados diretos e os demais será diferente.”
- Não há culpados indiretos – protestou Vandersom – eu fui o único causador de tudo.
Lúcio repassou ao cacique estas exatas palavras ditas pelo acusado, mas isso não pareceu alterar em nada a postura do velho índio. O cacique voltou a falar, no que ia sendo simultaneamente traduzido pelo intérprete dos brancos.
“Embora tenha sido você o disseminador da afronta, a culpa maior cabe também a sua esposa por ela não o ajudar a controlar seus impulsos; por isso, também deverá ser rigorosamente punida dentro das leis da tribo.”
- Isso é loucura! – inconformou-se Vandersom.
- Parece que terei mais a agradecer ao meu marido do que o belo par de chifres. – a moça ironizou.
- Diga-lhe, Lúcio, que aceitarei qualquer castigo desde que eles deixem os demais partirem em paz.
A resposta do líder da tribo à condição que o prisioneiro tentara impor não foi certamente das mais animadoras.
- Infelizmente, ele diz que você não está em condições de exigir qualquer coisa.
- Isso é um absurdo! Ele não pode fazer isso!
Sem dar qualquer atenção aos protestos e lamentações, o cacique continuou a falar.
“A primeira das punições, e é a que será comum a todos é a de que todos deverão permanecer na aldeia por tempo indeterminado e que deverá, no mínimo, superar o período que os homens brancos costumam denominar de quatro estações, ou um ano, para que toda a situação se estabilize” – O quê?! Não posso acreditar nisso! (estas últimas pareciam ser palavras de inconformismo do próprio Lúcio) – Nem fui eu que comi a índia e vou ter que ficar um ano enjaulado nesta selva?
- Feche a boca para seus malditos comentários, Lúcio, e continue traduzindo – exigiu Fátima.
- Certo. “Continuarão a desfrutar do mesmo tratamento cortês que os Aquanos costumam a destinar aos seus hóspedes, mas estão todos terminantemente proibidos de deixar a aldeia, sob pena de serem presos e mesmo mortos...
- Quanto à mulher do traidor – continuou – se tornará escrava do guerreiro ultrajado, sendo obrigada a satisfazer seus íntimos desejos em todas as circunstâncias.
- O que?! – esbravejou Fátima, dirigindo-se ao cacique da tribo – Isso é absurdo! Que espécie de bárbaros são vocês?
O velho índio pareceu não gostar dos modos da mulher branca e gritou, exigindo silêncio. Se continuassem a interromper sua sentença ela poderia se tornar bem menos amena.
            “Enfim, o branco traidor que se aproveitou de nossa confiança e hospitalidade para seduzir e desvirtuar uma integrante comprometida em nossa tribo, afrontando deliberadamente nossas tradições será obrigado a honrá-la, tomando-a por esposa.”
            Vandersom ouviu sua sentença sem se alterar muito, pois era realmente a espécie de punição que parecia mais evidente. E de certa forma, não havia como censurá-los por isso já que, apesar de viverem em pleno século XXI, onde a idéia de ser forçado a se casar apenas devido a uma transa sem maiores conseqüências  já começa a soar absurdamente démodé, há ainda pelo mundo grupos, tribos, famílias que mantinham tais tradições; tribos como aquela, por exemplo, cuja dissipação plena começava justamente com tal tipo de intrusão dos brancos.
            Por outro lado, passar um tempo dividindo a mesma rede com a jovem e belíssima índia Cora não era o que se poderia chamar de punição aterrorizante. Quanto a Fátima, assim que as coisas esfriassem, poderiam fugir de volta para a cidade, onde os índios não se atreveriam a persegui-los, pois sabiam que lá de nada valiam suas tradições. E se Fátima um dia lhe pudesse perdoar, (o que seria sem dúvida a parte mais difícil), os dois poderiam reconstruir seu casamento. Era horrível imaginar sua esposa tendo, por sua culpa, que se submeter sexualmente contra a vontade a um desconhecido, mas até nisto eles poderiam dar um jeito, se ela concordasse; afinal, o jovem poderia sofrer um acidente... Era uma atitude terrivelmente drástica, mas que pela esposa, Vandersom não relutaria em assumir.
            Infelizmente a punição ainda não havia sido totalmente anunciada e absolutamente não seria tão simples.
            “Esta punição – voltava o intérprete a fazer a tradução do que o cacique dizia – é tipicamente aplicada no caso da índia tomada pelo branco sem a benção da tribo estar livre de qualquer comprometimento. Como, todavia, ela já estava prometida ao guerreiro Inayê, por sinal, filho do cacique e futuro chefe da tribo, os dois deverão lutar até a morte para saber quem a tomará por esposa.”
            Sem dúvida, fora para Vandersom muito cedo para crer que seu pescoço estava a salvo.
            Lembrou-se do furgão, oculto na floresta, bem mais próximo do que os índios imaginavam e teve um único pensamento a luzir em sua mente: fugir...






            À noite, os prisioneiros voltaram para suas cabanas tradicionais, embora agora sob vigilância. Somente Vandersom foi confinado numa espécie de “oca-prisão”, onde permaneceria também sob forte vigília de dois guardas armados com arcos, flechas, facões e zarabatanas. O duelo de vida ou morte entre ele e o maior guerreiro da tribo pela posse conjugal da índia Cora dar-se-ia na tarde seguinte e por mais que estudasse, Vandersom não conseguia vislumbrar um modo concreto de escapar em tão pouco tempo. E certamente sabia que se entrasse na luta contra tão hábil e experiente guerreiro deveria estar morto talvez antes mesmo que se apercebesse.
            Do lado de fora, ouviu um certo murmúrio dos guardas que até ali tinha estado a conversar normalmente em sua língua, despreocupados por saberem que o prisioneiro jamais teria coragem de tentar escapar, tendo que passar por eles.
            Um instante de silêncio após o murmúrio e tudo voltou ao normal, com os dois conversando vez por outra, dando risadas até não muito discretas, talvez no intuito de provocar o prisioneiro.
            Vandersom sabia que dificilmente conseguiria dormir naquela que poderia estar sendo sua última noite. Ainda assim, esforçou-se para ignorar as provocações dos guardas e fechou os olhos. Provavelmente adormeceu, pois quando os abriu, tudo era silêncio absoluto, só quebrado por um próximo e intermitente piado de coruja.
           
“Será que eles adormeceram?”- pensou, vendo se acender uma chama de esperança.
Pôs-se cuidadosamente de pé e procurou caminhar quase sem respirar até a entrada da cabana. Espiou por entre as cortinas de palha e os dois realmente jaziam como que desmaiados no chão da entrada. Seu coração, que já estava aos saltos, disparou de vez fazendo-o quase pensar que não escaparia porque teria um troço. Passou pelos corpos como se caminhasse sobre nuvens e começou lentamente a se dirigir à floresta, controlando-se para não debandar como louco enquanto ainda estivesse na linha de visão de seus malfadados vigias. Era difícil compreender como puderam os índios cometer tamanha displicência, mas não era hora para questionar e sim aproveitar ao máximo a oportunidade.
Há alguns passos de cruzar os limites da aldeia, um vulto saltou agilmente diante dele. Era Cora e mais uma vez a jovem índia o surpreendeu.
- Não fugir! Loucura!
Vandersom a fitou, por um instante, espantado.
- Como você aprendeu a falar minha língua?
- Treinar muito quando você partir. Cora saber você voltar.
- E o que você está fazendo aqui? Vou estar ainda mais frito se nos pegarem juntos.
- Vir salvar você. Dar chá de ervas do sono para vigias.
- Então foi isso... Você é mesmo louca, menina. Mesmo assim, obrigado. Mas agora eu preciso ir para buscar ajuda para livrar os demais antes que sua furiosa tribo queira se vingar deles também.
- Não tentar fugir. Ser muito perigoso. Tribo ter muitos olhos na floresta. Impossível escapar.
- E o que você sugere que eu faça? Por que pôs os dois brucutus para dormir se não queria que eu fugisse?
Ela levou as mãos à parte superior da diminuta peça feita de pele de animal que usava como uma espécie de biquíni, bem entre os vultosos seios e apanhou algo; um pequenino pacotinho feito também com pele. De dentro dele tirou um toquinho de galho espinhoso e com cuidado estendeu para Vandersom.
- Tudo que precisar fazer ser arranhar Inayê com espinho desse galho antes de começar luta.
Vandersom começou a compreender tudo e cada vez mais se admirava da coragem e esperteza da indiazinha.
- E o que vai acontecer com ele?
- Nada. Só vai ficar bem bocó.
- Muito bocó? – alegrou-se Vandersom.
- Sim – respondeu a índia, imitando os trejeitos de um autêntico retardado – muuuito bocó!
Tentando conter a euforia, Vandersom ainda procurou argumentar:
- Não sei. Pode não dar certo. E se ele me matar antes mesmo que eu me aproxime?
- Não vale! Regra ser luta corpo-a-corpo.
- E se esse negócio não funcionar?
- Cora ser filha de pajé. Conhecer como ninguém as ervas e as plantas. Se fizer tudo certo, um pouco depois de começar luta, guerreiro Inayê ficar fraco e molenga.
- E depois que eu vencer, o que acontecerá?
- Poderá ficar com Cora e também com mulher branca.
- Fátima? Rá, rá. Ela jamais se sujeitaria a isso.
- Ela não ter escolha.
Talvez a índia tivesse razão. Além do mais, fugir loucamente à noite pela floresta parecia não ser uma excelente opção, principalmente por colocar em risco a vida dos outros, de sua esposa inclusive.
- Muito bem, caboclinha. Vou fazer o que você diz e tomara que esteja certa.
- Sim. E vai viver com Cora pra sempre – respondeu ela, com a animação de quem já tinha tudo planejado.
- Só mais uma coisa. Caso eu realmente vença o tal duelo, vou mesmo ter que matar o filho do cacique?
- Poder deixar viver, mas ele se tornar escravo e sempre lhe dever favor da vida.
- Bem, isso é melhor do que ter que degolá-lo.
- Agora voltar cabana. Efeito de chá-do-sono em guardas por passar.
Ele se aproximou da índia e a beijou suavemente na lateral da face.
- Obrigado!
Ela abruptamente lhe agarrou o rosto e lhe tascou um vigoroso beijo de língua.


Quando despertaram, ainda que atabalhoados, os guardas não puderam se dar conta do que havia acontecido. Assim, Vandersom tinha pronta e claramente definida a estratégia para a luta e a vitória sobre o guerreiro, o filho mais velho do cacique, no dia seguinte.


Toda tribo amanheceu em festa. Havia muita música e dança sob o rufar dos batuques e outros instrumentos indígenas. A tribo celebrava o vigor de suas raízes.
Os prisioneiros estavam assustados. Vandersom também estava, mas em menor grau. Tinha total convicção de que não iria morrer naquele combate e embora o guerreiro tivesse a fama de ser um lutador imbatível, naquela tarde seria vergonhosamente derrotado pelo valente homem branco, contando é claro que o tal ‘espinho bocolizador’ fizesse sua parte.
Após a refeição, foi concedido a Vandersom o direito de conversar com Fátima antes do duelo. Ela estava furiosa, mas também parecia bastante assustada. Ainda assim, foi ela quem falou primeiro:
- Como pode fazer isso com a gente, Van?
Vandersom teve que fazer um grande esforço para encará-la. Se pudesse, evitaria aquela conversa até que estivessem longe dali, ou pelo menos até que aquele duelo insano estivesse terminado, mas ele próprio reconhecia que era preciso.
- Não posso pedir que me perdoe, meu bem. Apenas posso dizer que sinto muito.
- Sim, você sente muito, mas agora ambos vamos morrer; ou você acha que eu vou me sujeitar a ser perpetuamente violada pelo selvagem que vai assassinar a sangue frio o meu marido?
- E não vai?
- Não. Teriam todo o meu apoio se apenas o obrigassem a se casar com a índia e o mantivessem prisioneiro aqui para sempre. Até lhe poderiam dar uma pequena sova segundo os seus costumes, mas eu jamais desejaria a sua morte, Van. E daria a minha vida para que o deixassem ir porque sei que no fundo, é por minha culpa que você está aqui.
Vandersom se aproximou dela, desejando tomá-la nos braços, cobri-la de beijos e contar-lhe tudo sobre o seu plano, inclusive sobre a chance de voltarem a ficar para sempre juntos, caso ela o perdoasse, mesmo que por algum tempo ele tivesse de manter um casamento de fachada com a filha do pajé. No entanto, chegando perto dela, apenas permaneceu fitando-a, desistindo de lhe contar qualquer coisa. Tudo estaria perdido, caso os índios desconfiassem de suas reações. Ninguém, nem mesmo Fátima, pelo menos por enquanto, poderia saber de nada.
Como ele apenas permaneceu a olhá-la sem nada dizer, Fátima se esquivou, voltando a se distanciar dele alguns passos. Quando falou novamente, tinha a voz muito mais fria e controlada.
- Infelizmente não há nada que eu possa fazer para ajudá-lo agora, Vandersom. E nem sequer poderei dizer que lhe perdôo, mesmo que seja para lhe atender uma última vontade.
- Certo – conformou-se ele – eu entendo.
Ela lhe lançou um último olhar aonde novamente ele pôde reconhecer todo o amor que ambos sentiam e deu-lhe as costas, rumando para a saída. Vander a reteve com uma última consideração:
- Eu sei que você nem cogitou tal possibilidade, mas e se eu vencer a luta?
Ela desdenhou imediatamente:
- Impossível. A fama  do índio com quem vai lutar faria os velhos Arnold e Silvéster parecerem Scooby-Doo e Salsicha.

Após uma pequena reflexão ela continuou:
- Mas, se de alguma forma você acredita que pode vencer, não pense o mesmo quanto a nós. Infelizmente esta batalha está perdida para sempre.
Ela parou ainda uma vez bem rente a cortina de saída.
- Boa Sorte.
E se foi.


Conduzido pelos guardas até o centro da aldeia, onde os índios haviam improvisado uma arena, Vandersom começou a ficar em dúvida quanto a sua sorte naquele combate. Era, no entanto, tarde demais para tentar qualquer outra coisa, (a não ser talvez quanto a rezar, mas encararia tal prática como uma hipocrisia sem fim, já que nunca cogitara em algum dia precisar de Deus para resolver seus problemas). Ainda assim, prometeu em silêncio repensar alguns de seus conceitos caso tudo corresse bem.
A maioria dos que estavam ali para assistir lhe lançava um olhar que parecia conter um misto de satisfação e pena, se é que é possível conceber tal coisa. Todavia, assim que avistou Cora, seus olhos se encontraram e imediatamente o olhar dela o tranqüilizou. Era uma garota excepcional, com a delicadeza e a ternura de uma menina e a coragem e sedução de uma mulher. Não fosse por Fátima, Vandersom certamente teria prazer de abrir mão de sua vida na civilização para viver com ela na floresta. No entanto, estava decidido: mesmo após a vitória, não se casaria com Cora. Daria um jeito de fugir levando Fátima consigo, mesmo que tivesse que a arrastar até o furgão.
Seu oponente já o esperava no local do combate. Em torno da arena, a platéia se aglomerava, composta por vários índios e também pelos prisioneiros brancos que deveriam testemunhar a luta, como um sinal de alerta para que não tornassem a cometer os insultos ou ousadias contra os costumes e tradições nativas.
Ao chegar próximo da área da luta, Vandersom começou a protestar, tentando demonstrar-se inconformado com aquela situação. Era, na verdade, parte da encenação para que sua possível vitória não despertasse suspeitas nos índios.
Chegando enfim diante do adversário, aquietou-se. Olhando nos olhos do garoto, viu que ele realmente lhe odiava e que não relutaria mesmo em lhe matar caso tivesse chance.
O medo de que tudo desse errado voltou a afligir Vandersom. O jovem índio até que era bonito. E se a índia tivesse se arrependido de ter traído o noivo e quisesse agora apenas o ajudar a se vingar, inventando para ele, Vandersom, toda aquela história de espinho venenoso na noite anterior, apenas para impedi-lo de tentar fugir? Assim, nada aconteceria ao guerreiro durante a luta e ele teria a chance de tranquilamente massacrar seu inimigo branco em público.
“Sinto muito, Vander, meu velho, mas esta é uma hora errada para alimentar conjecturas pessimistas”.
Estendeu a mão para o adversário que o fitou com certa desconfiança.
- Vamos lá. Em minha tribo é um velho costume entre adversários cumprimentarem-se antes de grandes e decisivas batalhas.
Mesmo sem entender as palavras de Vander, Inayê aceitou o cumprimento. Não faria diferença, já que durante a luta iria matá-lo.
Mantendo os olhares firmes, como se já estivessem travando o duelo, os dois se cumprimentaram. Após isso, ao recuar a mão, o braço do índio foi levemente ferido. Ele, que até então tinha os olhos firmes nos de Vandersom, voltou-se para o próprio braço, percebendo o pequeno arranhão. Tornou a olhar para o homem branco, aborrecendo-se.
- Oh, me desculpe – dissimulou Vandersom, rigidamente dentro de sua estratégia – Às vezes esse tipo de problema acontece por causa deste meu maldito anel – e tirou o anel do dedo, mostrando-o para o índio para que ele compreendesse.
            Num gesto nada polido, o índio deu um tapa na mão que lhe apontava o anel, fazendo-o voar quase para a floresta.
            - Hei! – Vandersom protestou – É um anel entalhado de ouro e prata. Deve valer uns trezentos Reais.
            Na verdade, pouco se lixava para com o anel. O importante era que a planta venenosa fora usada com sucesso, da forma que lhe havia instruído a índia e sem que ninguém se desse conta do que se passara. Restava-lhe agora confiar em sua eficácia.

            O mediador, que se caso a luta fosse apenas um esporte corresponderia a uma espécie de árbitro, deus suas últimas instruções que para Vandersom soaram tão úteis quanto uma piada contada em Alemão.
            E a luta teve início.
            Mal ele deu o sinal e o incauto homem branco já teve o corpo suspenso a mais de meio metro do chão por uma violentíssima rasteira habilmente aplicada pelo guerreiro indígena. Aterrou cômica e dolorosamente com as nádegas no chão, como um pesado saco de batatas.
            Houve muitos gritos e aplausos da platéia, que claramente não escondia para quem estava torcendo.
            Com algum esforço, Vandersom se pôs de pé novamente, no que era atentamente observado pelo índio, que parecia bastante concentrado, embora todos dessem sua vitória como certa.
            - Tenho certeza de que se resolvermos este impasse com a diplomacia do diálogo, estaremos inaugurando uma nova era democrática que pode ser de grande importância num futuro próximo de sua tribo.
            Inayê procurava ignorar completamente o palavreado enfadonho do adversário. Estava claro que era uma técnica do homem branco para tentar distraí-lo e ganhar tempo. De qualquer forma, além de irritante, tal técnica também parecia totalmente inútil, afinal não havia contagem determinante de tempo para que a luta se encerrasse e tudo o que o homem poderia ganhar com aquilo seria o prolongamento de seus sofrimentos.
            Quanto a Vandersom, sabia que o índio pensava dessa forma, assim como também sabia que ele estaria absolutamente certo caso o veneno não fizesse o efeito desejado. Infelizmente, nada mais havia que pudesse fazer.
            Nunca fora um grande brigador, embora houvesse tido algumas aulas de defesa pessoal em sua infância e adolescência. Nunca apanhara na escola, porque sempre vencia os fortões, não com os músculos, mas com lábia e argumentos, ou se preciso, até mesmo com suborno. De alguma forma, conseguia provar que bater nele poderia acarretar em problemas maiores do que a passageira satisfação que eventualmente tal ato poderia produzir.
            Achou que tudo mudaria quando se casou com uma mulher que fazia absoluta questão de lhe contrariar as vontades, mas ainda assim, através de diálogos que no fim se revelavam bastante equilibrados, puderam fundamentar sua relação, (ao menos até a chegada de Cora).
            Agora sim era diferente. Não havia como argumentar com quem não falava sua língua e tinha o coração fechado demais para refletir sobre gestos de arrependimento e súplica. A diferença entre o triunfo e a morte achava-se no tempo provável que poderia levar o veneno a surtir ou não algum efeito.
            Chegou a pensar que poderia resistir por mais tempos às investidas iniciais de seu algoz, mas já os primeiros golpes que recebera revelaram-se capazes de desorientá-lo de forma contumaz, deixando-o como uma presa fácil para a derradeira investida do inigualável lutador selvagem.
            Quando se sentiu agarrado e imobilizado por um abraço inescapável, Vandersom achou que chegara o fim. Logo, o impiedoso guerreiro teria drenado todas as forças e o poder de resistência de seu oponente e ao largá-lo, tê-lo-ia absolutamente prostrado, pronto para ter o pescoço esganado e torcido como um parafuso.
            Tentou uma última vez forçar sua escapada e surpreendeu-se ao perceber que os poderosos músculos que até então o dominavam com facilidade tornavam-se frouxos e amolecidos, como os de um velho alquebrado.
            Com extrema facilidade Vandersom se livrou do abraço, apoiando o próprio pé na barriga do índio e projetando-o para frente como uma catapulta humana. O índio caiu a alguns metros, rolando ainda algumas vezes pelo chão.
            A platéia, que até ali urrava extasiada, ficou subitamente muda, pasmada com a incrível e repentina habilidade de luta do homem branco.
            Visivelmente desconcertado e com alguma dificuldade, Inayê procurou se levantar o mais rápido possível. Não conseguia acreditar, mas o golpe do homem branco o afetara mais do que poderia esperar. Mas junto com a surpresa, o que veio foi uma raiva extrema do homem branco que pela segunda vez o humilhava diante de todos. Tornou a avançar para ele, furioso, lançando o punho com toda sua força para tentar esmurrá-lo.
            Já certo de que os ventos da mudança se viravam completamente em seu favor, Vandersom recuperara plenamente a confiança e sem qualquer dificuldade agarrou no ar o pulso do adversário, evitando o golpe e, mantendo-lhe o braço firmemente preso, contra-atacou com um violento soco na face. Puxou-o novamente para si e desta vez o golpeou no estômago.
            Em pouco tempo o índio não demonstrava mais qualquer condição de reagir, ficando mais vulnerável a cada golpe. Até a platéia desistiu de torcer por ele e passou a vibrar com o novo campeão que surgia. Vandersom certamente já estava gostando daquilo. Cada um de seus golpes esdrúxulos, provavelmente imitações mal sucedidas de golpes de filmes de Karate, era ovacionado pelos índios eufóricos que esperavam ansiosos pelo desfecho, embora se deduzisse que ele fosse altamente desfavorável ao representante de sua tribo.
            Vandersom, por fim, encheu-se de espancar o garoto, que nada mais podia fazer. Segurou-o então pelos cabelos, mantendo-o subjugado. Estava mais do que claro que poderia matá-lo se quisesse e era só o que queria que os índios soubessem. Atirou-o no chão, inconsciente e decretou, de sua parte, o fim da luta.
            A frustração inicial dos agitadores deu lugar ao reconhecimento à nobreza do ato do guerreiro branco que abdicara de dar cabo da vida do seu rival, mesmo sabendo que este, em seu lugar, de nenhuma forma seria tão clemente.
            Provara assim, ser valente, justo, ponderado e definitivamente merecedor do posto que conquistara como o novo líder dos guerreiros da tribo dos Aquanos.
            O cacique reconheceu sua vitória e mostrou-se ainda mais grato por ter sido poupada a vida de seu filho. Deveria este sim aceitar sua nova vida como servo e escudeiro fiel do novo guerreiro. A índia Cora, filha do pajé curandeiro da tribo lhe seria dada de muito bom grado como esposa, mas ele poderia ainda escolher e tomar para si as jovens amantes que quisesse, desde que ainda a ninguém estivessem prometidas. Obviamente, a mulher branca que seria escrava do vencedor do combate, também lhe pertencia e via-se obrigada a servi-lo como ele quisesse, não importando suas vontades ou argumentos dos costumes de sua antiga vida entre os brancos.
            No entanto, Vandersom sabia que se quisesse mesmo salvar seu casamento, jamais poderia permitir que Fátima fosse submetida a tais ultrajantes condições de, além de ter que, contra a vontade, permanecer totalmente submissa ao marido, ainda aceitar que ele tivesse outra, ou outras. Se quisesse sonhar ainda em reconquistá-la, precisaria primeiro tirá-la dali, devolvendo-lhe sua liberdade de escolha. Depois sim teria que confiar que o amor que talvez ela ainda sentisse sobrepujasse a mágoa.
            Primeiro, porém, era preciso garantir a segurança dos outros membros da expedição pelos quais infelizmente, mas com razão, sentia-se também responsável, já que por conta dos impulsos de sua libido é que se achavam prisioneiros.
            O cacique, por sua vez, prometeu que eles estariam livres para irem embora após a cerimônia de casamento de Vander e Cora.
            Assim, boa parte dos problemas de Vandersom parecia caminhar para suas respectivas soluções; porém, esta verdade também, naquele mesmo dia começaria a ser desmentida.


            A maioria das pessoas que haviam se agrupado para assistir ao espetáculo já havia retornado aos seus lares. O próprio Vandersom, assim que pôde, fora procurar Fátima, ansioso por contar-lhe tudo, inclusive sobre seus planos de fuga.
            O cacique com seu filho, porém, permaneceram próximos a arena. Provavelmente, o pai reservava para o filho, sobre o qual depositara todas as suas maiores expectativas, agora as mais duras palavras sobre desapontamento e decepção.
            Junto com seu pai, Cora também testemunhou todo o alto teor de revolta e amargura nas duras palavras que o chefe da tribo dirigiu a seu filho, que parecia sofrer de um desespero irreparável, mas sem, de forma alguma comover o austero pai.
            A índia tentou intervir, mas foi severamente repreendida pelo cacique e por seu próprio pai, o pajé. Precipitou-se então a partir. Nada mais poderia fazer sem comprometer o plano tão bem armado. Instintivamente, lançou um último olhar à arena da batalha, avistando abaré-açú, o cão sagrado da tribo. Mais do que isso, notou que ele parecia procurar por alguma coisa.
            Era um animal extraordinariamente inteligente. Tanta perspicácia chegava, muitas vezes, a assustar e por isso, a maior parte dos habitantes da tribo o temia.
            Os temores de Cora se confirmaram quando já a uma certa distância tornou a olhar e reconheceu imediatamente na boca do cão o ramo com espinhos que ela própria concedera para que o homem branco por quem estava apaixonada vencesse a luta.
            Abaré desceu da arena, após isso, com seu achado preso entre os dentes e se dirigiu bastante ansioso até o pajé.
           
Tinham sido descobertos.

Saindo daquele cenário, a índia pôs-se a correr como louca até a cabana de Vandersom. Entrou abruptamente sem pedir licença ou anunciar-se e pareceu, por instantes, decepcionar-se com a presença de Fátima ali. No entanto, não havia tempo para cenas de ciúme.
- Pai pajé e cacique já saber de tudo. Precisar fugir depressa!
Fátima ficou surpresa:
- Não sabia que essa sirigaita fala a nossa língua. Também isso foi você quem a ensinou, Vandersom?
Ignorando as irônicas palavras da mulher, Vandersom se dirigiu à índia. O que ela acabara de dizer fora algo muito mais sério.
- Você está falando sério? Como eles puderam descobri?
- Abaré mostrar a pajé ramo com espinho de erva venenosa que você jogar em chão de arena e que deixar Inayê fracote e abobalhado.
Fátima tornou a espantar-se.
- Não acredito no que vocês estão falando. Quer dizer que você trapaceou?
- Claro – respondeu Vandersom - ou você acha que aquela coreografia dos ‘Power Rangers’ poderia mesmo ser efetiva?
A índia ralhou. Parecia mesmo ansiosa para que Vandersom fugisse:
- Conversar depois! Fugir agora ou ser morto.
Vandersom estendeu a mão a sua esposa, mas ela não fez menção de aceitá-la.
- Ela quer que você fuja, não eu.
- Está louca, Fátima? É claro que eu não iria sem você.
- Eu não lhe disse que quero ir.
- Pois bem; ficamos, então, os dois.
A mini-discussão do casal fez a índia explodir:
- Calar a boca os dois e acreditar: se quiser viver, ser esta última chance.
Fátima e Vandersom entreolharam-se.
Ele, novamente estendeu a mão, mas mais uma vez ela ainda relutou.
- E quanto aos outros? – ela quis saber.
- Eles – respondeu Cora – apesar de tudo, ser prisioneiros inocentes. Não ser maltratados. Cacique apenas os usar como isca para apanhar vocês.
- Está certo – assentiu Fátima.
Então ela aceitou a mão oferecida pelo marido e os três saíram correndo da cabana, em direção à mata.


- Não vamos conseguir chegar ao furgão antes que nos alcancem – disse Fátima, enquanto corriam.
- Não iríamos, se o furgão não estivesse mais próximo do que eles imaginam.
- Parece que até nisso você pensou...
- Infelizmente, sim. Não que previsse tais circunstâncias, mas achei melhor facilitar caso quisesse ir embora mais cedo.
- Aplaudiria sua perspicácia se você não fosse um canalha, Vandersom. Talvez por isso nenhuma de suas armações tenha dado inteiramente certo.
- Não vou tentar justificar meus erros, Fátima, mas eu nunca quis magoar você.
- Aposto que não. Com certeza achou que ser traída me faria muito feliz.
- Será que não percebe o quanto se distancia de mim a cada uma dessas suas viagens malucas?
- Ah, eu sabia que você não perderia a oportunidade de tentar me culpar; mas desista Sr.Vandersom. Eu não vou aceitar isso. Vim pra cá por que é o meu trabalho e eu o amo, você sabe disso. Não vim pra transar com os nativos.
No ardor da discussão, a índia Cora vinha abrindo uma distância sobre eles que, ofegantes, não mais a conseguiam acompanhar. Assim, a certa altura ela foi obrigada a esperá-los, o que pareceu enfurecê-la:
- Os dois calar já a boca. Não ver que precisar de todo fôlego pra correr? Guerreiros da tribo estar cada vez mais perto.
Embora prestes a explodir de raiva com o atrevimento da indiazinha abusada, Fátima se conteve e se preparou para fazer exatamente o que ela dizia. Estava claro que sem a ajuda dela eles não teriam a menor chance.
De fato, jamais teriam conseguido chegar até o furgão antes de serem alcançados pelos excelentes rastreadores da tribo caso Vandersom não o tivesse trazido para bem mais próximo da aldeia do que o ponto onde originalmente haviam estacionado os carros. Ainda assim, quando o alcançaram, seus perseguidores já deviam estar bem próximos, podendo surgir a qualquer momento.
Vandersom apanhou as chaves, que desde que chegara de volta à aldeia, mantivera escondidas em um bolso oculto da bermuda. Mal podia esperar para dar a partida e cair fora dali, como um querubim tentando escapar das torturas do inferno.
Entraram os três no furgão. Fátima se recusou a ir ao lado de Vandersom, preferindo sentar-se atrás, ao lado de Cora.
Fecharam as portas; Vandersom deu a partida e neste momento viu pelo retrovisor os índios irrompendo em uma clareira na floresta e avançarem em sua direção.
Em meio a gritos histéricos, dezenas de flechas começaram a se chocar com os vidros do carro. Vandersom pisava fundo no acelerador, quando sentiu uma dor aguda em seu pé, que há muito perdera o sapato, para melhor correr pela mata. Na mesma hora, Abaré-açu, o cão sagrado dos indígenas pulou em seu colo, rosnando como uma fera selvagem. Momentaneamente desorientado, Vandersom perdeu o controle do carro, que rumava certeiramente de encontro a uma árvore. Percebendo o perigo, deu uma virada brusca no volante, conseguindo desviar no último instante. Com a guinada, o animal também foi surpreendido, sendo projetado contra o pára-brisa. Vandersom aproveitou para agarrá-lo pelo pescoço com uma das mãos. Apesar de seu pequeno porte, o atrevido animal tentou resistir bravamente, arreganhando os dentes para intimidar o homem que o mantinha firmemente seguro pela nuca, enquanto com a outra conduzia a direção do carro pelo íngreme e perigoso caminho.
- Seu desgraçado! – bradou Vandersom para o animal – Desde que eu cheguei você não larga do meu pé.
O animal olhou em seus olhos e de alguma forma pareceu sorrir. Furioso, Vandersom acionou a ignição que automaticamente fez abrir a janela do carro e lançou o cachorro por ela. Viu pelo retrovisor o animal rolar várias vezes pelo chão. Quando conseguiu parar, sacudiu a poeira do corpo e a cabeça. Parecia tonto, mas estava bem.
- Cuidado, Vandersom!
O alerta de Fátima chegou na hora. Os índios haviam dado a volta e agora se punham todos à frente do carro. Mais um pouco e o motorista teria avançado com o furgão para cima deles.
Após a freada brusca, uma nova saraivada de flechas voltou a ser disparada contra o veículo e seus ocupantes. Vandersom engatou a o mais depressa que pôde e pisou fundo. Quando se lembrou do animal que ficara para trás era tarde demais pra tentar novo desvio. Pelo retrovisor viu pela última vez o bicho, que permaneceu olhando com estupor para o grande animal de metal vindo em sua direção. Houve um baque e um pequeno ganido que facilmente passariam despercebidos se eles estivessem desapercebidos, mas que, justamente por não estarem, soou ali dentro como um trovão.
Neste exato momento, Cora, numa clara expressão de desespero, levou as duas mãos aos ouvidos e gritou:
- Não!!!
Houve então, exceto pelo ruído do motor do carro, um silêncio sepulcral. Todos os demais índios que até então corriam e gritavam enfurecidamente, perderam qualquer interesse pela perseguição e concentraram suas atenções no animal atingido. Dificilmente seria mais do que uma carcaça agora, mas para eles realmente parecia ser a carcaça de um deus.
A mente de Vandersom insistia em querer refletir sobre o que estava acontecendo, mas ele rejeitou, ao menos provisoriamente tal idéia, voltando a se concentrar na floresta a frente e na fixa vontade de sair dali. Aproveitou o súbito desinteresse dos índios por persegui-los e trocou a ré pela marcha normal, fazendo a volta para continuar a fuga. O carro se afastou daquela área tranquilamente, sem que mais ninguém os incomodasse. Todavia, o silêncio absoluto e tenebroso que se instalou enquanto seguiam rumo à estrada parecia indicar que de alguma forma certamente aquilo ainda não havia terminado.
Já rodavam a mais de vinte minutos na estrada, em direção ao vilarejo mais próximo quando Vandersom teve coragem de quebrar o silêncio:
- Será que eles desistiram de nos perseguir?
- Não precisar mais – foi tudo o que a índia respondeu, de forma impassível.
Vandersom, por sua vez, não pode evitar que a resposta lhe causasse uma aborrecida indignação. Foi como se subitamente ele tivesse se tornado para aqueles selvagens primitivos a criatura mais insignificante do mundo, ou...

(...estivesse encrencado demais para que ainda pensassem em se vingar dele)

            Era um pensamento absolutamente sem propósito; afinal, por que ainda estaria encrencado se acabara de conseguir escapar?
            Talvez a índia tivesse a resposta.
            - O que você quer dizer com “eles não precisam mais” – Vandersom insistiu.
            Cora, que já havia muito parecia bastante apreensiva, teve um ataque de histeria e começou a gritar e se debater.
            - Parar carro! Cora querer ir embora!
            - Ir embora!? Está louca? Você não pode descer aqui sozinha. Os Aquanos podem estar a caminho.
            - Cora querer mesmo voltar pra tribo.
            - Parece que você enlouqueceu mesmo. Se eles lhe pegarem, certamente vai ser severamente castigada.
            - Preferir castigo dos Aquanos do que dividir com homem branco terrível maldição.
            - Que papo é esse de maldição?
            A índia voltou a gritar e se debater como louca no banco traseiro. Fátima apenas se esquivava de seus encontrões estabanados.
            - Parar carro agora! Parar agora!
            Antes que Vandersom pudesse refletir melhor sobre o que fazer, ela acionou a maçaneta, empurrou a porta e saltou do carro em alta velocidade, caindo e rolando várias vezes pelo chão exatamente como o cachorro.
            Imediatamente, Vandersom afundou o pé no freio, parando o carro e descendo em seguida. Não encontrou, no entanto, mais qualquer vestígio da índia. Com extrema habilidade já desaparecera na mata que margeava a estrada. Vandersom voltou para o carro, bastante confuso. Não calculava a real importância do animal que atropelara para aqueles índios.
            Fátima permanecia sentada em seu lugar, impassível. O estado taciturno da esposa contribuía ainda mais para aumentar a tensão de Vandersom, mas sabia que não devia, nem podia censurá-la. A única coisa que talvez ainda salvasse o seu casamento chamava-se “paciência”.
            Assim que ele acionou a ignição, ela quebrou o silêncio:
            - Isso ainda não está acabado, Vandersom.
            Ele refletiu um pouco antes de lhe dar uma resposta, que foi a que lhe pareceu melhor naquele momento.
            - Eu espero que também entre nós tudo possa terminar bem.
            - Não banque o tonto. Sabe perfeitamente que não é disso que eu estou falando.
            - Não sei, mas desconfio – ele ironizou.
            - Apesar de tudo, sou obrigada a reconhecer que aquela índia tinha coragem suficiente para não se deixar amedrontar por motivos pequenos.
            - Parece que você também vai engolir essa história de maldição.
            - Você atropelou o animal sagrado deles! – ela gritou.
            - Não foi minha culpa, pelo amor de Deus! Além de não ter o visto, ele estava no único caminho por onde tínhamos uma chance de fugir.
            - O que quer dizer que mesmo que o tivesse visto, atropelá-lo-ia da mesma forma.
            - Claro que sim! Ele teve boa responsabilidade em toda esta confusão. O desgraçado me seguiu pela floresta, quando voltei sozinho para buscar o carro; por isso já sabia onde estava e chegou primeiro do que nós. Além disso, ele fez questão de delatar ao pajé minha real conduta na luta.
            - Só falta dizer também que foi ele que lhe obrigou a transar com a indiazinha.
            - Não disse que ele foi o único responsável, mas é inegável que ele não aia com a minha cara e fez de tudo para me ver morto. Infelizmente para ele a lei de sobrevivência prevaleceu em meu favor e não vou me remoer por isso.
            - Você se acha muito esperto, não é Vandersom? Sempre levando a melhor em tudo, seja com lábia, com dissimulações ou mesmo trapaças. Acha que está acima de qualquer espécie de justiça.
            - Já lhe disse o quanto estou arrependido, meu bem. Eu sei que não é obrigada a me perdoar, mas não vai me fazer crer que sou pior do que realmente sou. O que você chama de justiça? Que eu me entregasse e ficasse lá para ser torturado, castrado e morto, ou ver minha mulher ser currada por um bando de selvagens que seguem leis sem qualquer coerência? Tudo para não aviltar a imagem de seu deus estúpido que não passava de um vira-lata metido. Se é o que queria, esqueça, ou pode formular por eles uma denúncia ao IBAMA, ou as associações de proteção aos animais. Que eu saiba, não há lei contra atropelamentos de cachorro, mas mesmo se houver, ela será melhor do que a opção que minha própria esposa tem para mim.
            Neste momento, sentiu o ferrão ser cravado na lateral de seu pescoço.
            - Merda! – gritou, enquanto levava a mão ao local que começava a ficar extremamente dolorido.
            Tirou a mão e nela tinha um marimbondo, ou outro tipo de inseto voador parcialmente esmagado.
            - Desgraçado! – exclamou olhando para o bicho agonizante. No entanto, para sua inacreditável surpresa, o animal lhe picou novamente o fazendo gritar outra vez:
            - Aaai! Filho-da-puta!
            Por instinto, largou o volante que era conduzido pela outra mão e com um violento tapa certeiro na palma em que se alojava o agressor, deu cabo em definitivo da ousadia absurda daquele inseto.
            Fátima, alheia a batalha que o marido travava, só pôde percebê-lo, após soltar a direção, perder completamente o controle do furgão que, da estrada, virou para entrar bruscamente na floresta, chocando-se contra arbustos e pequenas árvores, até o motorista recobrar o controle da situação e pisar no freio. Foi, no entanto, tarde demais para evitar que o carro invadisse se atolasse numa grande poça de lama.
            - Que diabos você pensa que está fazendo – ela vociferou.
            - Algum maldito inseto me ferroou por duas vezes – justificou-se ele, levando novamente a mão ao ferimento no pescoço, como que para dar testemunho. No local havia um caroço que parecia maior do que uma azeitona.
            Ela desceu do carro furiosa, aterrando os dois pés na lama.
            - Era tudo o que eu queria: completar a pé e na sua companhia as pelo menos duas dezenas de quilômetros que ainda faltam para chegarmos em casa.
            - Deve haver um posto policial por perto. De lá poderemos ligar para o resgate.
            É desnecessário dizer que para passarem todos aqueles dias numa aldeia isolada da civilização, tiveram obviamente que abandonar privilégios como os celulares, já que apesar de serem indubitavelmente uma das maiores evoluções na comunicação, os aparelhos ainda dependiam da energia elétrica para serem carregados.
            O posto policial mais próximo ficava a cerca de 3 km de onde estavam. Ia alta à noite e a estradinha pela qual seguia não possuía qualquer iluminação. Dependeriam exclusivamente do “kit-florestal” que havia no porta-malas do furgão, que incluía lanternas, sinalizadores, facões para se abrir trilhas na mata, mapas detalhados da floresta e das estradas vicinais, além da indispensável maleta de primeiros socorros.
            Vandersom apanhou sua pistola automática no porta-luvas e a colocou na cintura. Não sabia de muitos casos de animais selvagens que atacavam pessoas naquela região, mas, menos ainda costumava fazer mal andar-se prevenido.
            Apagou os faróis do carro para não deixar pistas sobre onde estavam, bateu a porta, acionou a lanterna presa ao cinto e começou a seguir a pé pela estrada. Fátima há muito já tinha tomado tal iniciativa, já guardando, por isso, uma razoável distância entre eles, o que dava a clara impressão de que no momento realmente depreciava a companhia do marido.
            Ele, por sua vez, mal começou a andar e já se viu envolvido por uma nuvem impressionante de mosquitos. Centenas, talvez milhares, se alvoroçavam em torno dele, como se tivessem acabado de descobrir a última reserva de sangue do universo.
            - Miseráveis! – ele protestou, dando tapas violentos no ar, sentindo que a muitos atingia, mas dificilmente com a efetividade desejada. Parou para abrir a bolsa do ‘kit’ e quase que instantaneamente começou a sentir as doloridas picadas por várias partes do corpo. Um alvo imóvel, obviamente era muito mais vulnerável. Mas isso iria mudar: apanhou o frasco de spray repelente e começou a aplicar sobre si e pelo ar ao seu redor. Da mesma forma que a nuvem repentina de insetos surgiu, também se dissipou, rendendo-se ao odor letal do repelente. Claro que as partes da pele picadas permaneciam doloridas, mas ao menos alguns já estavam pagando caro por aquela ousadia.
            Fátima, por razões óbvias, já havia aberto uma distância ainda maior entre ela e o marido, tudo indicando que estranhamente não tivera qualquer problema com os mosquitos. A prosseguir naquele ritmo, Vandersom teria que correr para não a perder de vista. Ela não parecia preocupada, (ou ao menos se esforçava para não se demonstrar), em seguir sozinha pela estrada deserta e escura, totalmente cercada pela mata selvagem. Vandersom, por sua vez, reconhecia que sua única sensação de segurança estava inseparavelmente ligada à arma em seu coldre. Mesmo assim, precipitou-se a correr para alcançar Fátima, pois a simples sensação de estar sozinho fazia sua imaginação trabalhar descaradamente contra ele.
            Nunca fora um homem muito ágil, o que seus primeiros movimentos na luta com o índio deviam certamente ter explicitado bem; embora, em seu processo de fuga viesse até ali se empenhado muito bem, agora, ao menos em tese, não corria mais pela própria vida e por isso, quando achou que já encurtara razoavelmente a distância que o separava de Fátima, desistiu de alcançá-la e parou para descansar.
            Que diabos! Ela que o esperasse também, ou isso afetaria profundamente o seu brio, afinal, em quase todas as vertentes ela já demonstrara ter valores mais íntegros do que os dele. Estaria sepultando também sua valentia se corresse e se enfiasse sob a saia dela como um coelho.
            Sentou-se numa pedra na beira da estrada para descansar. Aos poucos, foi estabilizando a ofegante respiração.
            Fátima, sem olhar para trás, seguia a passos decididos, novamente pronta para alimentar a distância que os afastava.
            Instantes após se sentar, Vandersom sentiu todo o seu corpo da cintura para baixo arder como em brasa.
            Olhou para os membros inferiores e não pôde acreditar: formigas. Suas pernas e pés estavam repletos de formigas pequenas e escuras e doíam como se recebessem alfinetadas às centenas...



            Levantou-se desesperado, gritando e esfregando as pernas, esmagando o máximo de formigas que pôde. Algumas ainda investiam contra as mãos que a atacavam tornando a situação ainda mais dolorosa ao pobre homem que lutava desesperadamente para livrar-se dos impiedosos insetos que o martirizavam, inclusive em regiões sensíveis como virilha e genitais, já que muitas haviam lhe entrado sem cerimônia por baixo do calção.
            Sem qualquer pudor Vandersom se livrou das calças e da cueca para facilitar a remoção das formigas em seu corpo, que já haviam consideravelmente diminuído em número, mas cujas remanescentes pareciam motivadas a feri-lo até o fim.
            Podendo visualizá-las mais claramente, foi massacrando as últimas, esfregando fortemente as palmas sobre elas.
            Suas pernas e pés estavam totalmente inchados. Seu pênis fazia-o lembrar de um dos slides que vira em seu tempo escolar numa palestra sobre sífilis. A dor, que muito lentamente descendia aos limites do suportável, ainda o fazia derramar com vontade lágrimas dos olhos.
            Olhou a fronte da estrada à procura da esposa e levou um susto: ela sumira. Sentiu-se perdidamente só naquela maldita floresta, onde não só os índios, mas também todos os demais seres vivos pareciam conspirar contra ele.
            Apanhou delicadamente as roupas que havia atirado longe. Achou melhor esquecer-se das cuecas que só aumentariam o incômodo. Apanhou com extrema cautela o calção, preocupado com as formigas e sacudindo-o para derrubá-las. No entanto, percebeu um vulto muito maior do que uma formiga pular do calção. Direcionou a ele a luz da lanterna elevou mais uma vez um tremendo susto. Era uma aranha enorme; marrom, quase vermelha e bastante peluda. Provavelmente, se tivesse apenas vestido o calção de forma imprudente, as formigas teriam sido o menor dos seus problemas.
            O animal, percebendo a luz, embrenhou-se na mata.
            De repente, das entranhas da floresta, um pouco distante, veio um ruído semelhante a um grito, ou grunhido.
            Vandersom tornou a sacudir o calção certificando-se de que nele não havia mais nada. Só então percebeu que o coldre estava vazio. A pistola havia desaparecido.
            Num instante caminhava temerosa sim, mas absolutamente decidida e concentrada afora pela estrada; no outro era arrebatada e imobilizada quase que simultaneamente por uma gravata e arrastada para dentro da mata densa, sem qualquer chance de reação. Só então pensou no quão longe poderia estar do marido. Provavelmente longe demais para que ele pudesse sequer se dar conta do ataque que ela sofria. E nem mesmo gritar poderia porque fora o braço que usava para lhe aplicar a gravata, com a outra mão seu captor também a amordaçava, deixando-a completamente a mercê. No entanto, foi fácil perceber que na verdade era uma captora, já que embora seu corpo não devesse estar habituado aos mais caros perfumes franceses e cremes para a pele, ainda assim, uma mulher não perde absolutamente sua feminilidade.
            Momentos depois a pressão se afrouxou e ela foi liberta, reconhecendo assim quem a atacara. Era Cora. Estava de volta.
            - Ficou louca? – protestou Fátima, recobrando-se do susto -  O que você pensa que está fazendo?
            - Mulher branca desculpar. Cora não querer machucar, mas também não poder deixar que ele nos visse.
            - O que você está fazendo aqui? Pensei que havia voltado para sua tribo.
            - Cora ir, mas desistir. Não ter coragem de abandonar vocês. Afinal ser seus problemas também culpa de mim.
            - De que problemas especificamente você está falando?
            - Da terrível maldição.
            - Que história é essa de maldição, garota? Minha única maldição foi ter me casado com um homem que não me respeita.
            - Vocês achar que seus problemas terminar, não é? Talvez sim com os Aquanos, mas algo muito pior aguardar vocês na alma da floresta.
            - Quer dizer logo do que está falando...
            - Seu marido matar animal santo. Abaré-açú era personificação de espírito regente da Natureza.
            - Eu percebi e não fiquei feliz por isso, mas o que ele poderia fazer? Seus amigos queriam nos esfolar.
            - Vocês brancos sempre encontrar justificativas para suas violações, mas as leis da Natureza não são tão volúveis quanto as leis de suas tribos. Seu marido ultrajar divindade, fugir e achar não haver conseqüências, mas agora, toda vida da floresta se voltar contra ele.
            - Como é que é?
            - Animais, insetos e pragas o ver agora como inimigo e declarar guerra a ele.
            - Você deve estar louca.
            - Cora imaginar que a princípio vocês brancos, sempre céticos, não acreditar; por isso seguir vocês à distância, atenta ao início dos problemas que começar assim que vocês sair do carro.
            Fátima tentou rir de descaso, mas deduziu que não conseguiria. Por mais incrível que parecesse, isso explicaria o súbito desinteresse dos Aquanos.
            - Até agora não senti problema algum.
            - Não ser você que atropelar animal sagrado. Mas, seu marido não dever estar tão tranqüilo.


            Crescia a cada instante a impressão de estar sendo espreitado. Cada ponto demasiadamente escuro da mata parecia ocultar um ‘sem-número’ de perigos. Além disso, o sumiço de Fátima também o deixara bastante apreensivo. Pela primeira vez as coisas pareciam ir ao encontro do modo como ele sempre se sentira ao chegar naquele lugar: um intruso bastante indesejado num ambiente hostil e perigoso.
            Um pequeno e sutil movimentar de folhar numas moitas próximas pode ter sido um diferencial crucial para o futuro de sua vida. Quase que pressentindo que algo se lançava no ar em sua direção, Vandersom fez um movimento brusco para abaixar-se e foi atingido com força num dos lados da face, próximo a bochecha. No momento do golpe, gritou, sentindo nitidamente um bom pedaço de sua pele ser arrancado como numa pinçada brusca. Quando se ergueu à posição normal, procurando por vestígios do agressor, nada viu. Ouviu então o som sombrio de um piado e encontrou, pousada sobre o galho de uma árvore próxima uma grande coruja negra.
            - Mas que diabo está acontecendo?! – vociferou; o rosto repleto de sangue – Por acaso os malditos índios amestram toda a floresta?
            A coruja piou novamente. Mantinha os olhões fixos nele.
            Vandersom se abaixou e apanhou uma tora, intimidando-a.
            - É fácil atacar em surdina, não é? Por que não tenta agora, desgraçada:
            O animal voou para se embrenhar na floresta e desapareceu. Por via das dúvidas, Vandersom decidiu manter provisoriamente a tora consigo.

“Parece que sua amiga sorte entrou de licença, Vander, meu caro.”

            Talvez não. Ele quase não tinha dúvidas de que o alvo primário daquela coruja fora um de seus olhos e não apenas a bochecha. Se não a tivesse notado a tempo certamente estaria cego de uma vista àquela altura.
            Começou a sentir o efeito do cansaço nos músculos e na mente. Fora indubitavelmente um dia estafante, mas não podia nem pensar em parar para descansar; uma, porque a permanência pro qualquer minuto naquela floresta revelava-se para ele cada vez mais perigosa e, outra: Fátima podia estar em perigo e por mais que suas relações estivessem abaladas, ainda era sua obrigação como marido protegê-la.
            Todavia, quis o destino que aquele seu conceito sobre quem protege quem na relação homemxmulher fosse mais um a sofrer um duro golpe, pois seria salvo por elas pela segunda vez num mesmo dia.
            O posto policial mais próximo já deveria estar por surgir e Vandersom alimentava grandes esperanças de que Fátima estivesse lá a sua espera.
            Então, o silêncio da mata começou a ser quebrado por estalos de galhos se partindo como se alguma criatura pesada caminhasse por sobre eles nos arredores. O coração de Vandersom começou a saltar como louco. Logo em seguida ouviu um rugido e veio a certeza: era pelo que ele mais estivera temendo; alguma fera selvagem, valente demais para ser intimidada pelo sarrafo de madeira.
            Nunca tinha escutado tão de perto, mas estava quase certo de que fora rugido de onça. Provavelmente a famosa canguçu, cuja presença maciça naquela área era notória. As chances de escapar desarmado do ataque de um bicho desses? Talvez alguns dos bravos guerreiros aquanos tivesse alguma, mas para ele, um mero fotógrafo ranzinza da cidade, era de zero por cento. Seu corpo extenuado certamente desdenhava de sua necessidade de fugir e escapar numa carreira daquele bicho.
            Talvez fosse melhor mesmo nem tentar escapar. Tudo indicava que na linha do destino alguém fazia de tudo para acertar as contas com ele. E certamente, cedo ou tarde, acabaria acontecendo.
            Sentou-se tranquilamente no mesmo local em que estava. Se fosse fumante, com certeza apreciaria um cigarro naquele momento.
            Quando enfim viu a onça, achou que realmente tudo estava acabado, embora nem de longe aquilo lhe remetesse ao desespero. Só lamentava por Fátima. Gostaria de se despedir dela. No entanto, preferia pensar que ela estava bem, a salvo no posto da polícia e não tivera a oportunidade de topar com aquele animal feroz.
            A onça, que surgiu por entre os arbustos, ficou fitando-o do lugar onde estava. Como caçadora nata sabia quando a presa abdicava de qualquer possibilidade de fuga. Por intermináveis instantes os dois permaneceram assim; o animal a fitar o homem sentado que não dava aparentemente a menor importância à sua presença, embora na iminência de ser dilacerado.
            Enfim, a onça começou a se aproximar lenta e cautelosamente. Era enorme. Rosnava, provavelmente para se assegurar de que o homem realmente sabia quem estava por cima. Quando já estava a meio caminho de alcançar a presa, deu-se outro rugido na mata, tão ou até mais forte do que os que ela até então emitira. Ela cessou imediatamente o seu caminhar, voltando-se em direção à mata, provavelmente exatamente para onde viera o rugido.
            “Que legal! Parece que teremos mais um duelo de arena hoje, só que desta vez eu sou o troféu.”
            Dito e feito: do ponto exato aonde a onça olhava surgiu outra, um pouco menor, mas não menos arisca e ameaçadora. Alguém acabara de ter seu território de caça invadido.

           
As onças começaram a se engalfinhar violentamente e aquilo reascendeu o medo e o espírito de sobrevivência de Vandersom. Isso foi mais do que suficiente para que ele se levantasse e procurasse desesperadamente por alguma forma milagrosa de escapar.
Nem foi preciso. Mais uma vez, o milagre vinha infalivelmente ao seu encontro...


A sirene ensurdecedora da viatura que se aproximou impetuosa, quase que instantaneamente intimidou os felinos, a ponto de fazê-los desistir prontamente de resolverem entre si o entrevero pela caça e debandarem visando garantir a própria sobrevivência.
Da viatura desceram um guarda-florestal e Fátima.
- Olá, querida – brincou Vandersom – que bom que sentiu saudades!
- Só vim tirá-lo dessa para não me arrepender no futuro, Vandersom, mas nada mudou entre nós.
- Será como você quiser, querida.
- Vocês dois poderão explicar melhor o que aconteceu no quartel mais próximo. Por hora é melhor irmos embora; em meus vinte anos de profissão aprendi que a mata sempre oculta perigos, mesmo aos mais ambientados e experien...
O discurso do guarda foi interrompido por um estampido muito próximo. Imediatamente os três se atiraram no chão. Fátima e Vandersom, para se protegerem, e o pobre guarda porque estava morto, com uma bala no meio da testa.


Ao constatarem o estado de óbito do policial, os dois correram abaixados rumo à viatura. Assim que entraram, um novo disparo estilhaçou o vidro traseiro e a bala passou zunindo, muito próximo ao ouvindo de Fátima e fazendo um furo no teto.
Vandersom deu a partida, pois felizmente o guarda deixara a chave no contato. Constatou então que uma de suas mãos sangrava, ferida pelos estilhaços. Pisou no acelerador e não se ouviu mais nenhum tiro.
- Devem ser os malditos índios, deduziu – e devem estar usando minha própria pistola que sumiu. E eu que começava a pensar que eles haviam desistido.
- Não creio que tenham sido eles – contradisse-o Fátima.
- Ora, e quem mais nesta floresta tem tanta vontade de me matar:
- Talvez os próprios animais da floresta – ela desabafou – Só que o uso da arma de fogo também me deixa confusa.
- Animais? Do que você está falando, Fátima?
- Vai me dizer que você não teve nenhum problema com animais em seu caminho até aqui?
- Quem lhe contou isso?
- Cora. Ela disse que os animais da floresta são a maldição dos Aquanos contra você.


Após alguns instantes de meditação ele parou o carro e bateu com força os dois punhos no volante.
- Droga! Droga! Mil vezes droga!
Fátima pareceu não se importar com a crise histérica do marido. Quando falou, recuperara a frieza que se lhe vinha tornando gradativamente peculiar.
- Não acho que seja seguro pararmos aqui. Ainda não estamos longe e seguros o bastante.
- Não banque a espertinha comigo, Fátima – disse-lhe quase gritando – Não vai me fazer engolir por nada essa ladainha de maldição.
- Você pode pagar para ver e continuar testando de forma inveterada os limites de sua sorte.
Por instantes ele refletiu.
- Mesmo que aceitemos essa hipótese ridícula, isso não nos ajudará em nada.
- Talvez sim se procurarmos a única pessoa que talvez ainda possa lhe ajudar.
- E quem seria essa existência fantástica? – ele perguntou com desdém.
- O pai da sua indiazinha, o curandeiro dos Aquanos.
- Não diga mais nada, Fátima. Já vi que você enlouqueceu de vez. A única ajuda que aquele velho canibal pretende me dar é um bom impulso pra dentro de um caldeirão.
- Não seja melodramático, Vander. Nem sei se são os índios os reais monstros dessa história.
- Certo. E por isso a senhora minha esposa decide que eu mereço pagar minhas penas servindo de banquete?
- Talvez eles sejam razoáveis se nos entregarmos, ainda mais cientes do problemão que você já tem.
- E por que correr o risco se tudo o que tenho que fazer para que este pesadelo termine é rodar mais alguns quilômetros pra fora desta maldita floresta?
- Será mesmo que tão facilmente terminará, Vander? Há animais por todo o planeta. Mesmo na cidade grande não estamos livres das mais variadas criaturas venenosas e peçonhentas.
- Não me queira contagiar com o seu delírio. Grilos e mosquitos não possuem esse tipo de raciocínio que os fazem andar por aí se vingando de pesso...
Antes que pudesse terminar a frase, notou pelo retrovisor algo que o deixou paralisado.
Era um tipo de macaco de média altura, talvez um chimpanzé. Nas mãos tinha, apontada bem na direção da cabeça de Vandersom, a pistola desaparecida...


O macaco lançou para Vandersom uma espécie de sorriso debochado que não continha qualquer humor. Alguém ainda duvida de que eles foram nossos ancestrais?
Por instantes, o olhar severo do símio se transformou no mesmo olhar de Abaré--açú, o animal sagrado que Vandersom atropelara. Sagrado sim, pois até mesmo para o próprio Vandersom aquela versão também já não parava de fazer o mais absurdo sentido.
Nesse instante, um vulto se lançou contra o macaco que gritou e em seguida ouviu-se o tiro. O vulto fora Cora que derrubara o animal, mas fora alvejada na altura da barriga.
O macaco fugiu cambaleante para o mato, deixando a pistola no local do crime.
Cora jazia ofegante, recostada numa árvore à beira da estrada. O ferimento sangrava bastante.
Vandersom e Fátima desceram do carro e correram até ela. A índia olhou-os e sorriu.
- Parecer Cora seguir chamado de Tupã.
- Fique calma – tranqüilizou-a Fátima, alisando-lhe a testa – Você com certeza vai ficar boa.
- Vamos levá-la rapidamente a um hospital e...
- Não! Cora – interrompeu Vandersom – Levar Cora de volta para tribo.
- Não podemos – quis ele se justificar, mas ela não permitiu.
- Nada de cidade, nada de curandeiros brancos. Levar Cora para pai grande pajé e para que morra entre os seus.
- Não podemos voltar lá, menina – irritou-se Vandersom mesmo diante do estado convalescente da moça – Seus amigos vão nos matar.
- Então ir embora os dois brancos e deixar Cora aqui para morrer em paz.
Vandersom levantou-se irritado, mas novamente se agachou junto à moça ferida.
Foi a vez de Fátima interceder por ela:
- Talvez seja o melhor mesmo a fazer, Van. Além do mais, como explicaríamos no posto policial o fato de estarmos chegando com uma índia ferida numa viatura sem o guarda a nos acompanhar? Na certa vão pensar que nós o matamos e roubamos o veículo.
Era verdade. E quando encontrassem o corpo iria ser difícil explicar que o tiro fora obra de um macaco integrante de uma seita de bichos da floresta.
- Está bem, decidiu-se Vandersom, por fim – Vamos colocá-la no carro e voltar para a tribo, se, claro, nossos amigos animaizinhos permitirem.


O retorno à tribo foi surpreendentemente tranqüilo exceto pelo fato de Vandersom ser gradativamente  abatido por um mal súbito, fazendo-lhe por vezes quase perder os sentidos ao volante.
Fátima logo constatou que ele se encontrava em altíssimo estado febril. Obrigou-o a ir para o banco de trás, junto à índia ferida, assumindo ela mesma a direção pelo restante do percurso.
Logo pela manhã cruzavam novamente os limites da aldeia dos Aquanos.




A índia Cora foi levada pelos demais da tribo para a cabana do pajé. Havia perdido muito sangue e sua respiração estava bastante fraca.
Fátima e Vandersom, este também em péssimas condições, quase não agüentando se manter de pé, foram conduzidos à presença do cacique. Estranhamente, toda a animosidade anteriormente mostrada pelos índios parecia ter se dissipado, dando lugar à indiferença e até a um arrogante e estranho ar de “estão gostando de nossa vingança?”.
Lúcio, o intérprete, também foi chamado para que pudessem se entender. Assim, ele continuou a traduzir normalmente as palavras de ordem do chefe da tribo.
       < - Realmente eu não pensei que vocês fossem voltar aqui depois de todos os acontecimentos>
- Viemos devolver a menina – contou-lhe Fátima – Pensamos que talvez o pajé ainda possa salvá-la.
       < - Foi uma decisão acertada. Se ele não puder, certamente ninguém mais no mundo poderia. Todavia, se ela sucumbir será fruto do castigo implacável de Tupã, pelo seu ato rebelde e traiçoeiro.>
            Fátima até poderia tentar defendê-la, mas não quis. Não era heroína e muito menos tinha sangue de barata. Vandersom até poderia estar devendo a vida àquela índia, (entre outras coisas), mas era um problema dele. Assim como a ruptura das leis da tribo e suas conseqüências também cabiam somente aos dois.
            Como que adivinhando os seus pensamentos, o cacique concluiu:
       < - E caso ela sobreviva, será responsabilizada dentro dos nossos costumes pelas faltas que cometeu.>
            Pareceu-lhe que sua intercessão também não iria fazer muita diferença.
       < - Quanto a vocês brancos, estão livres. Não apenas podem, como devem deixar as terras dos Aquanos o mais brevemente possível> - Hey! – interpôs-se vibrantemente o tradutor – Isto é ótimo! < Enfim, vamos para casa?> - perguntou ao cacique em sua língua.
       < - Sim. Decidimos que vocês devem ser julgados também apenas segundo os seus costumes, pela sua justiça e por suas consciências, apenas lembrando que certamente jamais serão bem vindos novamente às terras aquanas.>
            - Esta é a melhor punição que poderiam nos dar ironizou Lúcio, o tradutor.
            Fátima tinha, porém uma dúvida de crucial importância, principalmente para Vandersom e como ele se encontrava praticamente sem condições para se expressar, precisava ajudá-lo.
            - E quanto à maldição?
            Todos os prisioneiros brancos olharam para ela sem nada entender.
            - Do que é que você está falando? – quis saber Lúcio.
            - Eles sabem do que estou falando.
            Com um gesto de cabeça o cacique assentiu, entendendo o que a mulher branca dizia, mesmo sem compreender as palavras.
        < - Quanto a isso não há o que possamos fazer. Da parte dos Aquanos, homem branco pode se sentir perdoado por todos os crimes, mas nós não somos porta-vozes dos desejos da Natureza. Das contas que tiver para acertar com ela, somente ela própria poderá ou não o eximir.>
            - Mas isso é injusto! – protestou Fátima – Vocês devem saber o que fazer. Ele está fraco e muito doente, não poderá lutar contra uma floresta inteira.
       < - Vocês podem passar mais esta noite na aldeia para descansarem. O pajé examinará seu amigo e certamente amanhã ele estará melhor. É tudo o que podemos fazer.> - Eu não sei de que diabo de maldição vocês estão falando, - novamente Lúcio abandonava  a interpretação para se valer de suas próprias palavras – mas não quero ficar nem mais um minuto aqui. Se Vandersom está doente, problema dele. Que fique sozinho, ou no máximo com sua esposa. Eu pretendo ir embora agora.
            No entanto, sua voz foi um murmúrio no deserto e ele foi obrigado a atender os demais que se compadeceram da condição de Vandersom e resolveram esperar para partirem ao alvorecer. Certamente faltou ao intérprete falastrão a devida coragem de seguir sozinho pela floresta.
            Durante a noite, a febre de Vandersom prosseguiu. Fátima permaneceu o tempo todo ao seu lado, na rede. Os delírios dos sonhos agitados do marido afirmando constantemente que a amava e que não suportaria perdê-la mexeram com seus sentimentos. Certamente ele agira muito mal, mas todo aquele sofrimento já não lhe teriam sido o bastante? Embora a índia Icoracy fosse linda, em nenhum instante ele fizera menção de que em qualquer momento deixara de amar a esposa.

            Em alguma hora da madrugada o pajé entrou: a figura velha, mas imponente, totalmente adornada com colares, objetos de pedras, palha e tecidos de pele. Nada de maleta com remédios ou instrumentos ainda que rudimentares de medicina. Apenas maracás, cetros e os mais diversos patuás.
            Fátima, que compreendia um pouco da língua dos Aquanos, perguntou se seria necessário chamar por Lúcio, o intérprete. O velho não respondeu, já começando a examinar o paciente. E ela também achou melhor não deixar o marido sozinho com aquele bruxo. Não havia como ter certeza de que o perdão deles era mesmo garantido.
            - Ele ser pego pelo que vocês brancos chamariam de vírus da floresta.
            O velho pajé também falava a língua dos brancos; até com mais desenvoltura do que sua filha. Nada de surpreendente. Certamente deveria ser mais sábio e experiente do que a menina, que já não ficava por baixo.
            - Amanhã estará melhor. Mas se deixar aldeia será pego de novo e em efeito prolongado vírus pode ser mortífero.
            Vandersom neste momento abriu os olhos. Parecia ter compreendido os últimos instantes da conversa.
            - Isto quer dizer que se ele deixar a aldeia morrerá?
            Ainda sem forças para falar, Vandersom meneou vigorosamente a cabeça, inconformado.
            - Chegará a hora em que terá que assumir suas responsabilidades, homem branco. Ainda que para isso tenha que desistir daquilo que mais ama.
            O pajé se levantou, precipitando-se a sair. Fátima lhe fez mais uma pergunta:
            - Como está sua filha?
            - Ela vai ficar bem. E devo lhes dizer que sou grato a vocês por isso. Assim espero que homem branco saiba decidir sensatamente qual a melhor opção a seguir.


            Exatamente como fora predito pelo ancião, pela manhã Vandersom se achava muito melhor disposto. Era difícil acreditar que estivera tão mal na noite anterior.
            Quando ele se levantou, os demais ex-prisioneiros da cidade já estavam com as malas prontas para deixar a aldeia. Mesmo Fátima teria que ir embora. Apenas ele, Vandersom, tinha o consentimento para permanecer na tribo, mesmo porque, os índios acreditavam que para ele não haveria mesmo outra escolha além da morte. Assim, fazendo sempre questão de ressaltar sobre o espírito elevado dos Aquanos, o cacique permitiu que Vander ficasse na aldeia desde que se submetesse a algumas condições, como se casar com Cora e definitivamente se tornar um aquano.
            Como nas palavras do pajé, “abrir mão do que ele mais amava”: Fátima.
            Claro que definitivamente o bom e velho Vander não estava disposto a se sujeitar àquilo. Tanto quanto se sentia recuperado, sentia-se também pronto para seguir com os demais para fora daquele lugar, afinal, os índios deixavam claro que não era mais prisioneiro e só ficaria na tribo se quisesse

...ou precisasse.
           
            Não importava. Por nenhuma das razões, ou qualquer outra, ficaria. Achava que tudo o que precisava era “voar” o mais rápido possível para fora daquela floresta. E agora, desde o princípio eles partiriam de carro, o que já seria de grande ajuda. Com a viatura eles poderiam chegar rapidamente até o local onde estavam os carros dos pesquisadores.
            A decisão estava tomada. Antes, porém, uma conversa derradeira com a esposa parecia pronta para dissuadi-lo.
            - Acho que nem preciso falar sobre qual foi a minha decisão, certo, meu bem?
            - Creio que não. Mas acho que você deveria ponderaras coisas mais friamente, Van.

(Primeira vitória: o fato dela já o estar novamente chamando daquela forma era sinal de que a mágoa passara, ou estava por um fio).

            - Nada no mundo vai me obrigar a me separar de você, ou ao menos lutar para que isso não aconteça.
            - Talvez seja melhor você repensar sobre esse seu amor por mim e principalmente sobre todos os problemas que permeiam a nossa relação. Será que vale mesmo a pena arriscar altamente sua vida por isso?
            - Mesmo antes de você me dizer se terei ou não uma nova chance, eu sei que mil vezes valeria a pena enfrentar a morte para não lhe perder.
            - E quanto à índia Cora?
            - É uma bela jovem, mas eu nunca quis nada com ela. Só provei o quanto me é penosa qualquer hipótese de me afastar de você. Desista então de tentar me convencer de que a opção dos índios não me seria tão ruim. Mesmo que você afirme que nunca mais vai querer voltar para mim, não desejo ficar aqui, onde não terei qualquer chance de lutar contra este destino.
            Os olhos de Fátima inundaram-se de lágrimas e ela finalmente deixou extravasar o que sentia:
            - Também não quero ficar sem você. Eu o amo, Van.
            Ele sorriu e ela se aproximou dele o mais que pôde. Os dois se beijaram profundamente.
            Após o beijo, porém, Fátima saiu dos braços dele e falou com uma tranqüilidade que o assustou:
            - No entanto, é melhor que você fique por aqui.
            Apesar de estar ciente do espanto que causara ao marido, demorou ainda alguns instantes para se justificar.
            - Pelo menos por uns dois dias. Até lá estará totalmente recuperado se ainda decidir ir embora. Aproveite bem o tempo para refletir sobre como você quer que seja sua vida nos próximos anos. Será que você poderá mesmo continuar agüentando a rotina louca do estilo de vida que eu, sua esposa, escolhi, Van? Saiba que eu também vou aproveitar para avaliar sobre que lição pude aprender disso tudo.
            - Ao que parece, a decisão que você tomou por mim também já é definitiva, não? – ele disse com certa ironia.
            - É o melhor a se fazer, por hora.
            Vandersom não quis mais argumentar. Ao menos ela lhe dera uma esperança de voltarem a ficar juntos.
            - Está bem. Eu concordo. Só me diga uma última coisa.
            - O que é?
            - Quando eu for embora daqui, e inevitavelmente eu irei, poderei ir ao seu encontro com as esperanças renovadas:
            - Daqui a 48 horas estarei a sua espera no hotel da cidade mais próxima. Até lá, certamente já teremos respostas definitivas sobre o segmento que pretendemos dar às nossas vidas.






Ainda que ciente das justificativas, ver a esposa partindo com os outros não foi, para Vandersom, nem um pouco agradável. Teve a impressão de que nunca mais a veria. Todavia, a idéia de Fátima parecia bastante lógica e apenas por um simples motivo estava sendo difícil para ele a aceitar: mais uma vez, a esposa tomara sozinha uma decisão que deveria caber a ambos. Parecia sem dúvida um prelúdio de um futuro que em nada se alteraria, mesmo depois de tudo o que acontecera.


            Nos dois dias em que passou na aldeia, Vandersom praticamente não saiu de sua cabana. Também porque precisava relaxar e refletir, mas principalmente para evitar encontrar-se com Inayê, o guerreiro que ele lograra e conseqüentemente ridicularizara na frente de todos. Claro que depois toda a tribo ficou sabendo de tudo, mas por mais que o guerreiro tenha recobrado parte de sua dignidade, muita dela tombara para sempre junto com ele naquele ringue, a menos é claro, que houvesse uma nova luta. O cacique havia garantido que tudo estava esquecido, mas por via das dúvidas, queria evitar cruzar seus olhos com os do garoto.
            Em seu último dia na aldeia, uma grata surpresa ficou por conta da visita que recebeu logo pelo amanhecer...

            - Cora vir se despedir. Saber que Vander ir embora mesmo correndo grande risco.
            A menina parecia muito bem. Apesar do curativo e da faixa em torno da linha do ventre, ninguém diria que a menos de 48 horas levara um tiro quase mortal. Seu pai devia ser, sem dúvida, um excelente curandeiro e toda a incredulidade da mente de Vandersom a respeito do poder mágico e espiritual dos índios desaparecera completamente.
            - É a primeira vez que você me chama pelo nome – ele disse a ela, sorrindo.
            - Van...der...som – ela tornou a pronunciar, emitindo lentamente uma sílaba de cada vez – Ser um nome bonito.
            Ele lhe tomou as mãos e ela o trouxe para um abraço apertado. Certamente já compreendera que ele amava mesmo a esposa e jamais conseguiria deixá-la para ficar com outra. Tudo o que eles haviam vivido fora apenas um acidente de percurso em que talvez nenhum deles houvesse tido culpa.
            - Obrigado por tudo – disse-lhe Vandersom.
            - Adeus – ela respondeu sorrindo e ao mesmo tempo com os olhos cheios de lágrimas.


            Cerca de quinze minutos após ter deixado os limites da aldeia, o mal-estar voltou a todo vapor.
            Vandersom ficou com a viatura do policial morto, para poder sair logo das entranhas da floresta. Os demais haviam concordado em partir caminhando, já que para eles não haveria nenhum problema para se chegar ao ponto de seus veículos, ainda mais que alguns experientes índios conhecedores de todos os caminhos da floresta ofereceram-se a eles como guias.
            Agora as fortes dores pelo corpo, principalmente nos membros e na cabeça, além de intensos e arrepiantes calafrios voltavam a lhe acometer, como na noite em que se contaminara com o tal vírus. Repentes contínuos de sonolência começavam a tornar aquela sua estada ao volante extremamente perigosa. Ao que tudo indicava, o velho pajé não mentira e provavelmente ele iria morrer nas entranhas daquela floresta pelo vírus ou por acidente, sem sequer ter tido a chance de se encontrar por uma última vez com Fátima.
            O carro, praticamente desgovernado, seguiu por um caminho irregular, por sorte, cheio de moitas rasas que apenas o fizeram parar. Prestes a perder totalmente os sentidos, Vandersom só teve tempo de fechar todos os vidros do carro.



           
            Acordou um pouco melhor disposto e teve uma surpresa: sentada ao seu lado no carro estava Cora. Parecia bastante apreensiva.



            - O que você está fazendo aqui?
            - Achar que salvando você de novo.
            Vandersom relutou por um segundo e depois disse:
            - Acho que você deveria desistir dessa idéia fixa. Vai acabar herdando a minha maldição.
            - Maldição temporariamente suspensa.
            Vandersom se surpreendeu ao ouvir aquilo; no entanto, realmente parecia estar se sentindo melhor. Ficaria feliz se fosse verdade, no entanto, o estado tenso da índia indicava que havia algo mais.
            - Como você sabe que a maldição está suspensa?
            - Olhar pescoço – ela respondeu naturalmente.
            Pela primeira vez notou que pendurado em seu pescoço havia um estranho colar feito com conchas, folhas e sementes.
            - O que é isso? – quis saber.
            - Ser mais poderoso talismã mágico de pajé. Usando isso estar livre de qualquer feitiço e maldição.
            Foi o bastante para Vandersom se sentir aliviado.
            - Não sei como agradecer.
            - Não precisar – ela respondeu sem quase alterar suas feições de alguém que parecia estar por algum motivo em estado absoluto de cautela.
            - Prometo que darei um jeito de devolver o colar assim que deixar a floresta.
            - Nunca mais poder tirar colar, ou maldição o encontrar em qualquer parte do mundo.
            No fundo, Vandersom já esperava por aquilo. Afinal havia animais por todo o planeta e mesmo que só os daquela floresta lhe afetassem, insetos e mesmo fungos, vírus e bactérias sempre poderiam encontrar algum método de chegar até ele.

“principalmente os dotados de consciência inteligente”.

            - Tudo bem – conformou-se – Neste caso não terei qualquer problema em usá-lo. Sinto-me ainda mais grato a seu pai, o pajé, que mesmo diante disso me cedeu seu mais poderoso talismã.
            - Cora dizer que colar ser de pajé. Não dizer que ele o dar pra você.
            Vandersom a olhou incrédulo e ela sorriu marotamente.
            - Você roubou o amuleto de seu próprio pai?
            - Ser única maneira de Vander escapar.
            - Deveria ter me consultado! Agora vou mais uma vez carregar a fama de trair a confiança dos Aquanos. Mas que diabo!
            Cora apenas abaixou a cabeça entristecida. Vandersom sentiu-se imediatamente culpado por ter esbravejado com ela. O que quer que a índia sentisse por ele, era de uma dedicação espantosa.
            - Desculpe – disse-lhe, acariciando seus sedosos cabelos – Não quis ser rude.
            - Cora não querer que você se zangar com Cora – ela choramingou como uma criança mimada.
            - Não estou zangado – e era verdade. Afinal, o que custaria ao pajé ter-lhe oferecido de bom grado o tal colar por vontade própria? Certamente deveria saber fazer muitos outros – Só estou preocupado com o que pode lhe acontecer quando seu pai descobrir que você roubou o tal colar.
            - Pai pajé bravo, mas amar filha. Não aplicar castigo muito severo para sua conduta.
            - Mas não haverá como eu ter certeza disso...
            - Não importar! Sem colar Vander não poder cruzar floresta e voltar pra mulher que amar.
            Vandersom se aproximou grandemente dela e a beijou no rosto.
            - Mais uma vez, muito obrigado.
            Girou a chave na ignição, mas o carro não pegou. O motor parecia adormecido como uma múmia.
            Vandersom se precipitou a abrir a porta para descer do carro, mas Cora o conteve com um grito desesperado:
            - Não descer! Lá fora haver perigo!
            - Mas eu pensei que com o colar a maldição estivesse acabada.
            - Sim, mas onça estar lá fora espreitando e isso não ter nada a ver com maldição. Ela ser caçadora e não gostar da forma como você escapara da última vez. Ser agora pessoal.
            - Mas que diabo de floresta é esta onde o espírito humano de rancor e vingança perde de longe para o de um bando de animais irracionais?
            - Nós precisar escapar com cautela.
            Vandersom apanhou a pistola que deixara no porta-luvas. Estava quase sem munição. No entanto, talvez um ou dois tiros fossem mais do que suficientes para assustar a onça.
            - Você deveria ter roubado também o colar ‘contra onças’, disse ele descendo do carro.
            - Pensar em trazê-lo, mas não conseguir distinguir do contra borboletas e capivaras – ela respondeu com a mesma dose de humor.
            Estavam fora do carro e a onça os via.



            De mãos dadas começaram a andar pela floresta, olhando para todos os lados, absolutamente certos de estarem sendo seguidos.
            Se por um lado Vandersom estava preocupado com a presença da onça como perseguidora, por outro se sentia feliz por sua passagem voltar a espantar os demais animais da floresta, como pássaros, esquilos e outros que apesar de seus notórios instintos de auto-preservação, não fosse pelo colar que ele estava usando, certamente estariam de forma petulante tramando ou investindo contra ele.
            Vandersom empunhava a arma e Cora, uma pequena, mas bastante afiada faca. Isso, todavia, os deixava longe de se sentirem seguros. Enfim, de súbito, a onça surgiu; com um salto ágil se pôs diante deles, lançando fortes rugidos de intimidação. Um pouco mais adiante estava a estrada, justamente por onde o caçador não queria que as suas presas fossem.
            Vandersom e Cora imediatamente recuaram e se puseram a correr na direção contrária, ainda que cientes de que  poucas chances de superar a habilidade velocista do animal. Naturalmente, também de imediato a onça se pôs a persegui-los. E não costumava deixar escapar a mesma presa por duas vezes.
            Sem parar de correr, Vandersom apontou a pistola e disparou na direção da onça, sem, no entanto, atingi-la. Precisaria mirar melhor e o simples descuido de parar para fazê-lo certamente selaria o seu destino.
            Por outro lado, o astuto animal percebendo que se se aproximasse muito poderia ser atingido, limitava-se, ao menos temporariamente, a persegui-los a uma certa distância.
            - Querer nos encurralar – Cora falou para Vandersom.
            - E ao que tudo indica, logo vai conseguir.
            - Dever nos separar. Você tomar dianteira e Cora virar em próxima clareira.
            - Se fizermos isso, certamente ela irá ao seu encalço.
            - Sozinha Cora ter muito mais chances de enganar onça. Guerreiro Inayê ensinar vários truques para escapar de onça em mata. Além disso, Cora subir árvores e esconder-se entre arbustos como ninguém.
            Era verdade. Se a velha onça tivesse que optar por ter que seguir um dos dois, certamente estaria fazendo a pior escolha se decidisse pela garota selvagem.

“isto, desconsiderando que seu velho anjo da guarda tem sido um trabalhador assíduo e incansável, certo meu caro Vander?”.

            - Cora agora diminuir ritmo para dar à fera sinal de estar cansada. Você correr mais que puder por esta mesma trilha.
            Sem dúvida, a autoridade em suas palavras indicava que tinha tudo para ainda vir a se tornar a líder de sua tribo.
            - Não sei ainda se isto é o melhor a se fazer, Cora.
            - Ser melhor sim. Como estamos, onça nos pegar logo. E para Cora, ser moleza se livrar de perseguições se não tiver de se preocupar em garantir também segurança de homem branco desajeitado.
            Ele sorriu. Evidentemente era o jeito de ela dizer que tudo mais uma vez iria ficar bem. Seria mesmo?
            Enfim, a decisão estava tomada e a valente guerreira já estava ficando para trás.



            Assim que o caminho se dividiu em uma clareira, Vandersom passou por ela desapercebido, mas Cora, absolutamente atenta, passou a correr por aquele campo aberto, torcendo para que o animal a seguisse. Chegando a tal divisa, a onça relutou um pouco. Embora fosse mais fácil investir contra a presa que, teoricamente já demonstrando sinais de esgotamento ficara para trás e ainda por cima, escolhia um caminho bem mais vantajoso para o próprio perseguidor já que a clareira, ao contrário da mata densa, oferecia muito menos obstáculos e empecilhos no caminho, favorecendo o mais veloz, seu interesse pela primeira presa que se adiantara, (no caso, Vandersom), também parecia ser muito grande, (talvez até maior do que pela índia). Somente após tensos instantes tudo veio a decorrer como a astuta indígena planejara e a onça, pela clareira, pôs-se em seu encalço.


            Após correr por mais algum tempo, Vandersom percebeu que nada mais havia em seu rastro e pôde diminuir o ritmo e voltar a caminhar. Com alguma dificuldade seu compasso respiratório ia ser reajustando; mais uma vez ele escapara de um tremendo apuro.

“mas Cora está em perigo!”

            “Impossível!”
            Ele argumentou com sua própria mente.
            “Sem minha presença para retardá-la, ela despistaria aquela velha onça em dois tempos”.

“na mata talvez sim; mas não em campo aberto”.

            “Cora era muito esperta. Poderia perfeitamente retomar o caminho da mata, afinal, a clareira nem era tão larga.”

“...e certamente a ausência desta certeza não irá impedir que o velho e sortudo Vander continue a seguir com sua vida numa boa, não é mesmo?”

            Ainda não estava plenamente recuperado da correria, mas novamente se lançou em carreira, desta vez em direção aonde se dispersara de sua amiga e de seu algoz.


            Cora tropeçara e caíra deslizando por um barranco íngreme. Só estava viva quando Vandersom chegou porque mesmo a onça parecia estar encontrando muita dificuldade para chegar ao ponto onde ela estava. Todavia, já estava a mais de meio caminho. Geralmente onças não se arriscam tanto por carne humana, mas aquela tinha um instinto assassino e uma determinação fora do comum.
            Cora se encontrava sentada, com as mãos apoiadas numa perna, aparentando pouco ou nada poder fazer além disso. Devia estar fraturada. A onça se aproximava descendo lentamente pelo barranco, escolhendo minuciosamente os pontos no chão por onde poderia pisar com segurança.
            Vandersom gritou do topo, para chamar a atenção do bicho:
            - Não acha mais interessante vir buscar a mim, maldita?
            A onça, vendo-o, rugiu cheia de furor.
            Cora, de seu ponto, também gritou:
            - Não! Vandersom ir já embora! Nem dever ter voltado afinal...
            - Voltei porque é o que certamente você teria feito por mim, menina, mesmo sem eu nunca ter lhe prometido nada em troca.
            - Cora não querer você morrer – ela disse chorando.
            - E eu também não. Mas depois de tudo, se alguém tem que morrer, o mais justo é que seja eu, não você.
            Infelizmente, a onça se sentia muito próxima de Cora para desistir da recompensa e recomeçar a subida em direção a sua outra caça que a incitava.
            Sendo assim, ignorou as provocações de Vandersom e continuou rumo à mulher encurralada.
            - Ei, desgraçada! – inconformou-se Vandersom – Volte aqui! Venha me pegar! Tenho certeza de que é a mim que você quer.
            Vandersom começou a atirar pedras nela, mas era muito difícil a acertar num terreno tão irregular.
            Lembrou-se da arma.
            Era sua única chance. Só que não sabia quantas balas tinha e se, sendo só uma ou duas, por infelicidade ele errasse o alvo, Cora, sem dúvidas, estaria perdida.
            Precisava atrair a onça para perto de sua mira.
            - Ir embora agora, Vandersom! Onça já fazer sua escolha e Cora ter velho canivete para cortar-lhe garganta.
            - Gostaria de acreditar nisso, querida, mas em suas atuais condições não creio que sua faquinha possa lhe garantir qualquer proteção.
            A onça já estava chegando bem próximo e não havia mais o que esperar. Vandersom tirou pelo alto da cabeça o colar mágico que estava usando e soltou-o no chão. Teve a impressão, (quase uma certeza), de sentir novamente cair sobre si o peso da maldição. Contudo, seu objetivo também fora alcançado. A onça pareceu perder completamente o interesse pela índia, sua vítima tão mais próxima, e outra vez se voltara para rugir para ele.
            - Isso mesmo. Venha. Não era, no fundo, o que você mais queria?
            Imediatamente a onça começou a escalar de volta pelo barranco, com muito menos cautela em escolher o caminho, o que revelava uma raiva e uma pressa muito mais crescente do que sua fome.
            - Não... – choramingou Cora, ciente de que nada mais poderia fazer.
            Absolutamente compenetrado nos movimentos da onça, Vander nada pôde fazer quando uma pequena e multicolorida ave pousou próximo ao lugar onde se alojara o colar, arrebatou-o no bico e se lançou para o alto, cruzando as folhagens das árvores e ganhando o céu. Dava adeus assim, definitivamente a sua imunidade.


            Dificilmente a onça, naquele momento, desistiria dele e tornaria a se voltar para Cora, mas ainda assim, Vandersom preferiu aguardar que ela chegasse bem perto antes de permitir que ela notasse a arma. O animal imediatamente reconheceu um perigo com o qual com certeza não contara. Rosnou como um grande gato acuado e retraiu-se.
            Vandersom disparou e atingiu-lhe um pouco acima das costas. A onça quase escorregou indo rolar com tudo até as grandes pedras no fundo do barranco, mas conseguiu ainda se firmar no chão graças às afiadíssimas garras.
            Vandersom tornou a engatilhar a arma. A onça ficou imobilizada. Reconhecia, sem dúvida, que sua situação era crítica. Devia ‘conhecer’ bem a fama das armas implacáveis dos humanos caçadores.
            - Sinto muito, amiga, mas é você ou eu.
            Seria ele. Tornou a disparar para ouvir o “clic” seco da arma absolutamente vazia.


            - Não dá para acreditar nisso. Acho que Deus nomeou algum lunático para desenhar meu mapa-astral.
            A onça pareceu entender imediatamente que uma nova virada acontecia. Certamente a tal maldição ampliava a inteligência daqueles bichos.
            Vandersom se pôs novamente a correr, aproveitando a pouquíssima vantagem que tinha antes que o animal enfurecido alcançasse o topo do barranco.
            Desta vez estava sozinho contra a onça e contra toda a floresta e, no entanto se sentia feliz por crer pela primeira vez ter feito a coisa certa.


            Foi questão de tempo, (e não muito), para que a onça o alcançasse. Ele apenas tropeçou em alguma raiz ou pedra e caiu, exausto demais para pensar em se levantar. Fechou os olhos e aceitou tranquilamente a idéia de terminar como banquete. Esperou pela primeira mordida a lhe destroçar a carne e os ossos de qualquer parte do corpo, mas a demora angustiante pela concretização de tal fato fê-lo imediatamente se lembrar de que as coisas costumavam acontecer para ele de forma um tanto... digamos, diferente...


            Abriu os olhos e viu a onça a poucos metros dele; estava caída e tinha uma flecha cravada no meio da testa.
            Uma sombra começou a se formar sobre a fronte de Vandersom e diante dele surgiu seu, (aparentemente ex), desafeto, o índio Inayê, filho do cacique e grande guerreiro da tribo dos Aquanos.
            - Homem branco ter sorte de Inayê estar por perto.
            Era óbvia mentira. Certamente ele fora ali por vontade própria, ou a mando de alguma autoridade da tribo, seu pai, ou o pajé. Não importava. Era mais do que justo que o índio ainda pudesse exercitar um pouco de seu orgulho ferido.
            - Sorte é minha palavra predileta – respondeu-lhe Vander com humor. – Também você, então, já fala a minha língua...
            - Sim. Aliás, cacique achar importante que a partir de agora toda tribo aprender língua, cultura e costumes dos brancos. Principalmente os bons costumes – acrescentou.
            Vandersom compreendia bem aquele desejo. Seu coração também se enchera de respeito e consideração por aqueles a quem já havia considerado meros selvagens, quase como subespécies da raça-humana.
            - Cora está ferida – lembrou-se de súbito.
            Um pouco mais adiante, a própria Cora surgiu amparada nos ombros de seu pai, o pajé.
            - Como vocês nos encontraram? – Vandersom quis saber.
            - Vigiar seus passos desde que os dois deixar aldeia.
            - Quer dizer que em momento algum estávamos verdadeiramente sozinhos com a onça?
            O índio jovem assentiu com a cabeça e mostrou o arco.
            - O tempo todo Inayê ter cabeça de onça em mira de arco.
            - Papai também saber que Cora roubar colar? Cora perguntou ao pajé.
            O velho assentiu complacente, não demonstrando estar aborrecido ou zangado.
           
Inayê concluiu o que tinha a dizer.
- Pajé acreditar que guerreiro branco estar pronto para se libertar de maldição.
- E é verdade – concordou Vandersom – se ainda me for permitido, vou voltar para tribo e arcar com todas as minhas responsabilidades. Juro que acatarei qualquer castigo que me for imposto.
- Vai aceitar viver longe de seu grande amor? – perguntou-lhe incrédulo o pajé.
- Sim. Só gostaria de dizer que não sou nem nunca serei digno de me casar com a valente índia Icoracy. Certamente ela nasceu para viver ao lado do mais bravo guerreiro e futuro líder da tribo, este sim, extremamente digno de desfrutar de seu amor.
Cora e Inayê entreolharam-se. Ela sorriu para ele que embora se esforçasse ao máximo para se manter sério, não conseguia tirar os olhos daquele sorriso.
- Os dois – Vandersom continuou – unidos, sem dúvida, formariam a base da estrutura fortalecida que asseguraria a longevidade plena da tribo dos Aquanos. Será uma honra me tornar um aquano se for preciso, mas não creio ter a menor condição de ser o seu líder.
- Tudo que pai cacique dizer continuar valendo – falou Inayê – Pode seguir daqui seu caminho ou voltar para tribo dos Aquanos. Talvez até conseguir cruzar floresta sem ser morto. Ser difícil, mas não impossível.
Neste exato momento caiu do céu bem aos pés de Vandersom, sem que mais nenhum dos que estavam ali percebessem, algo que tornou o ‘quase impossível’ em ‘muito mais do que provável’: o colar.
Olhou para cima e viu sobre um galho altíssimo a ave que apanhara o colar bem diante dele no penhasco. Lembrou-se do pensamento sobre o mapa-astral e riu.
Ele, que ainda estava caído, quase que por instinto, apoiou as duas pernas sobre o colar, ocultando-o da visão dos demais.
- Quer dizer que se eu quiser ir embora agora vocês não vão tentar me impedir? – perguntou-lhes em um tom de voz travesso.
- De forma alguma, disse-lhe o pajé.
Mais uma vez os bons ventos voltavam a soprar a seu favor. Estava se habituando àquilo. Era como se vivesse numa roda-gigante enlouquecida que ia constantemente do ápice ao total declínio. Mas até quando se estenderia isso: Não seria essa inconstância sua verdadeira maldição, como uma roda kármica inconformada lutando com todas as forças contra a tenebrosa sorte de um filho-da-mãe? Até quando ele e as pessoas com quem se importava continuariam a escapar, (ainda que por um triz), da gana das perigosas confusões que os assolavam?
- Pelo visto, decidiu-se por partir – falou o pajé, interrompendo seus pensamentos.
- Não sem antes lhe devolver isso – respondeu Vandersom, revelando o colar oculto sob suas pernas juntas.
Cora e Inayê se surpreenderam com a revelação. O velho pajé, nem tanto.
- Pode ficar com ele, guerreiro branco, embora não possua mais a utilidade que você pensa.
Vandersom estranhou.
- Quer dizer que o colar não neutraliza mais a maldição?
O pajé sorriu. Parecia estar se deliciando com a surpresa de todos.
- Não há mais maldição. Ela foi quebrada e toda a floresta agora ser sua amiga, assim como os Aquanos.
Isso explicaria a atitude do pássaro, devolvendo-lhe algo que embora não mais necessário, havia-lhe sido tirado. Mas era preciso entender os motivos do término repentino daquela sina.
- O que está tentando dizer é que desde que eu siga com vocês, abrindo mão de Fátima, a maldição estará terminada, certo?
- Nunca lhe dizer que você ter que abrir mão de sua esposa, mas sim do que você mais ama.
- Fátima é quem eu mais amo neste mundo, velho – asseverou Vandersom, aborrecido.
- Talvez agora sim. Desde o momento em que abriu mão da chance clara de escapar para tentar salvar pequena Cora. Porque antes disso, o que sempre você mais amou foi sua própria vontade de sempre se sair bem de tudo.
Vandersom permaneceu mudo, incapaz de refutar o que o velho dissera, afinal, se tratava da mais pura verdade. No fundo, sempre aplaudira aquilo que chamava de sorte, mesmo que algumas vezes reconhecesse que para se dar bem deixara para trás alguém injustiçado. Claro que tal sentimento naturalmente passava e ele podia voltar tranquilamente a levar sua vida normal. Afinal, era a lei da sobrevivência. No entanto, quando percebeu que alguém que tanto fizera por ele, tornar-se-ia mais um de seus muitos sacrificados, questionou até que ponto valia à pena vencer a todo preço. E apesar de todas as suas pseudo-vitórias, somente a última mostrou-se ser a que realmente valeu à pena, pois preservara acima de tudo sua consciência em paz.
- Pode ficar com colar – finalizou o pajé – Ainda ser ótimo amuleto.
- Eu preferiria dar a alguém, se não se importar.
- Claro. Ficar a vontade.
Vandersom aproximou-se de Cora e colocou-lhe o talismã no pescoço.
- Obrigado – disse a ela mais uma vez.
- Ser feliz, Vandersom – ela disse, abraçando-o.
- Você também.
Após o abraço ela sorriu e voltou para os braços de Inayê, onde já se encontrava havia algum tempo.
- Adeus a todos.
- Adeus, guerreiro branco.


Colocara-se numa situação bastante aflitiva, (pra não dizer estúpida). Se ele não chegasse na hora marcada, como saberia se ele estaria bem e apenas desistira dela, os se agonizava no meio da floresta, repleto de insetos pelo corpo a torturá-lo até a morte?
Agora seu louco desejo era ir imediatamente atrás dele, mas e se se desencontrassem?
Caminhou até a portaria e fechou a conta do hotel. Estava na hora e Fátima não tinha a menor idéia sobre o que faria. Apanhou o folhetim local no balcão da portaria. O corpo do policial fora encontrado. Havia sido alvejado bem na testa de longa distância, provavelmente por algum caçador surpreendido com dezenas de peles de onça, ou um grupo de traficantes de madeira-de-lei. Aquilo poderia se tornar um problema se a arma do crime fosse encontrada, pois estava no nome de Vandersom, mas não havia outra solução além de deixar que a polícia se prendesse a tais hipóteses. Bem mais complicado seria fazê-los acreditar que o pobre homem fora morto por um chimpanzé que estava de marcação com o seu marido.

O carro alugado estava na garagem. Deveria ser deixado no aeroporto da cidade.
Fátima entrou no carro e ficou pensativa. Poderia seguir para a estrada que levava à floresta ou para o aeroporto. Baixou a cabeça sobre o volante, absolutamente assolada pela indecisão. Suportaria voltar até a aldeia e reencontrar Vandersom já nos braços da indiazinha? E quanto a achá-lo morto, parcialmente devorado a poucos metros da saída da floresta? Seria melhor opção? Ouviu, então, delicadas batidas no vidro do carro.
Vandersom estava sorrindo e Fátima imediatamente também explodiu num sorriso de puro alívio.
- Não vai me deixar entrar? – perguntou após alguns instantes daquela visível felicidade.
- Claro – ela assentiu, abrindo a tranca do banco ao lado do motorista. Ele deu a volta e se sentou ao seu lado. Tinha nas mãos um embrulho.
- Pra você, disse, colocando o volume em seu colo.
- O que é? – ela perguntou cheia de curiosidade e já principiando a desembrulhar o pacote.
- Sinceramente é uma pergunta difícil de responder.
Era um cãozinho. Um filhote do mesmo tipo do que Vandersom havia acidentalmente atropelado. Aquela raça era extremamente sagrada para os índios.
- Oh, Van, ele é lindo – desmanchou-se ela.
O cãozito saltou do colo dela para o dele.
- Ei! Parece que suas diferenças com os habitantes da floresta estão mais do que resolvidas.
- Sim. E desta vez fiz tudo certo, meu bem. Nada tenho pelo que me envergonhar.
- Estou orgulhosa de você, querido.
- Bem – disse ele, enxugando uma lágrima – podemos ir para casa, então?
- Por que a pressa? Depois de tanto tempo dormindo em redes e se banhando em rios, não gostaria de curtir a hidromassagem do hotel?
Ele a agarrou e os dois se beijaram profundamente.




XV – GÁRGULAS

- Pois bem. Claro que eu não vou ser hipócrita de dizer que aqui no asilo alguém gostava do finado padre Bento. Seria mais justo dizer que a grande maioria o odiava. Isto não quer dizer que eu saiba quem o matou só porque sou o morador mais antigo deste inferno; oh desculpe – censurou-se, mas com um toque de ironia – desta digníssima e acolhedora casa de repouso.
- Não precisa se sentir acuado, seu Antônio – disse-lhe a jovem investigadora – Quero sempre deixar claro que não o estou acusando de nada. Apenas faço umas perguntas para tentar esclarecer algumas coisas, certo?
- O problema não é com você, filha. Definitivamente não. Sou um velho e a resignação parece ser também uma doença típica da velhice. Mas, assim como o corpo, que no decorrer dos anos se enche de chagas, desperta em determinados dias com lampejos de saúde e vitalidade imponderáveis que quase levam muitos velhos alquebrados a correrem para o bordel, nossa alma também às vezes se farta de tanta resignação e regurgita emoções tão vibrantes que fariam sacudir as montanhas do Himalaia.
- O que o senhor quer dizer com isso?
- Quero dizer que o padre Bento, a despeito de sempre ter mesmo falado demais, acabou vendo enfim o dia em que sua linguona comprida e arrogante externou sua resignação de forma atrevida demais.
- Como assim, Seu Antônio? Ficarei muito agradecida se o senhor me contar tudo o que sabe, para que eu possa entender melhor.
- É o que vou fazer, detetive, embora não ache que você tenha motivos para me agradecer por isso. Mas, sei que faz bem o seu trabalho e espero que ele lhe valha os riscos. É católica, Srta. Deise?
- Já fui. Hoje apenas acredito em Deus.
- Faz bem. Talvez vá mesmo precisar Dele se quiser resolver este caso.


- Devo lhe confessar que nunca fui católico, mas quando conheci o padre Bento até passei a simpatizar com a doutrina. O safardana, com aquele jeito atarracado e sua extrema timidez, tornava-se um leão quando defendia os preceitos de sua santa igreja. Inclusive foi dele, junto com mais algumas beatas e herdeiros de velhos empresários da cidade, loucos para se livrarem dos pais que insistiam em manter seguro o ‘freio-de-mão’, a iniciativa de fundarem este asilo, chamado a princípio apenas de casa de repouso, no mesmo terreno da paróquia. Certamente ele não contava de que um dia fosse enlouquecer aqui dentro e acabar também como um interno. Veja bem, ele nunca admitiu que fosse louco e creio que concretamente também nada se pôde provar, mas quando ele se pôs a vomitar em suas missas, ainda que de forma dissimulada, em espécies de parábolas, todos os maiores e mais graves pecados cometidos pelas pessoas da cidade e a ele declarados em confissão, logo todos concordaram que o trancafiarem definitivamente em seu próprio asilo, sentenciando-o de vez como louco, era a única forma de neutralizar as sementes de intrigas que ele lançara.
O velho parou para coçar a barba rala que parecia ter sido esquecida apenas nas turbulências dos últimos dias. Então continuou:
- Claro que ele poderia ter acidentalmente morrido já naquela época, mas isso certamente fortaleceria as sementes para que brevemente germinassem. Assim, o Dr. Valmir Perez, excelentíssimo juiz que, segundo um dos relatos bombásticos do padre, era integrante e um dos cabeças de uma quadrilha especializada em roubo de cargas com assassinato de caminhoneiros, teve prazer em assinar a intervenção mental do padre que desembestara a falar coisas que não devia e que só não seria execrado e excomungado da igreja porque os envolvidos trataram de providenciar um laudo, ainda que forjado, atestando sua loucura e em conseqüência lhe desmerecendo qualquer crédito. E embora padre Bento, ainda que absolutamente ausentado de culpa tenha errado gravemente quebrando o sacro juramento de não revelar sob hipótese alguma confissões, os crimes cometidos contra a ética pelos supostos ofendidos da cidade também se disseminaram numa torrente, ainda que muito bem disfarçados dentro da lei.
“Mas nenhum deles cometeu realmente um crime”, a senhorita poderá dizer. E não mesmo; apenas o de saberem que o padre era inocente.


            - O médico-legista, elaborador do laudo atestando a incapacidade mental do padre, adorava fornicar com os cadáveres das mocinhas que chegavam para a perícia no IML, vítimas de afogamentos, acidentes e até crimes passionais, desde que não estivessem muito desfiguradas, quase sempre durante os seus plantões noturnos; tinha um interesse todo especial pelas pré-adolescentes de sete a doze anos.
“Que criminoso sou eu?” – dissera ao padre, quase exigindo nas entrelinhas a absolvição de sua alma – “Ao menos faço depois que elas estão mortas” – mas se algum dia lhe tirassem os cadáveres, certamente procuraria por alvos móveis.
Era o caso do mais popular e respeitável vereador da cidade, que foi carro-chefe da campanha de interdição do padre. Quase sempre em tempo de campanha, contratava dezenas de meninas e pré-adolescentes carentes para entrega de panfletos. A maioria delas sofria abuso sexual em seu próprio gabinete durante as suas famosas ‘entrevistas particulares’, que geralmente asseguravam além de um empreguinho chinfrim caso ele assumisse o mandato, também uma modesta, (pra não dizer insípida e miserável), ajuda financeira às famílias das vítimas que por necessidade, mas também por medo, viam-se obrigadas a aceitar tudo de bom grado e em absoluto sigilo. No caso de uma ou outra denúncia chegar até a delegacia, era logo abafada pelo próprio delegado que pouco interesse tinha por se envolver nos ‘assuntos’ do rico vereador. Sua principal missão, a que se empenhava com extremo afinco, consistia em dar a máxima cobertura aos grupos rivais que dominavam o tráfico da cidade. Isto, é claro, sem que cada um deles soubesse que a lealdade jurada pelo delegado fosse tão polivalente. Ele também se comprometeu a vigiar de perto o padre e de um jeito ou de outro, assegurar que ele cessasse com aquela perigosa falácia. Até as beatas que o ajudaram na implantação desta casa de repouso e que sempre somente haviam se derretido em elogios, (até demais), ao velho padre, na época, nem tão velho, se auto-proclamaram imperdoavelmente ultrajadas quando veio a lume para correr livre pelas principais rodas de fofocas da cidade a história de que a mais velha delas, tida até como uma espécie de líder das distintas e de conduta irretocável senhoras católicas, teria se declarado ao padre, no ato da confissão, relatando-lhe todos os seus pensamentos pecaminosos que pululavam sua mente fazendo explodir as mais intensas sensações por todo seu corpo, o que invariavelmente culminava em violentas masturbações durante a noite, em pleno leito, tendo ao lado o marido dorminhoco e babão, mas na sua imaginação, apenas a presença do padre, seu amor secreto e proibido. Desta forma, também assim as velhas aplaudiram a reclusão imediata do padreco, com seus impropérios e blasfêmias, a um asilo. Ou seja, poucos existiam na cidade que não haviam tido motivos para querer o tal padre louco fora de circulação. O asilo, ao menos provisoriamente, surgiu como melhor opção. Só que trancafiar o padre Bento aqui foi a pior coisa que eles fizeram, pois justamente aqui estava a coisa que o estava deixando realmente doido, entende?


- Elas começaram a chegar cerca de um ano após o início das atividades da casa de repouso no terreno da paróquia. Nesta época, o padre Bento, com sua empatia já era querido por todos, desde empregados, auxiliares, até os próprios internos, a quem ele sempre parecia ter guardadas sábias palavras de encorajamento e conforto, não às vezes, sem uma boa dose de humor, capazes de ajudar qualquer um a se sentir melhor. Se a Srta. o tivesse conhecido, principalmente nos últimos tempos, levantar-se-ia agora e iria embora, esboçando um sorriso falso de agradecimento, mas sairia daqui dizendo a toda pessoa sã que encontrasse que toda lucidez mental do velho Seu Antônio embarcou há muito tempo num foguete para fora do sistema solar.
- Não é verdade. Até que me prove o contrário, não tenho por que duvidar do senhor.
- Agradeço a sua confiança. Confesso que esperei durante quarenta anos em meu casamento para ouvir estas mesmas palavras que a Srta. me disse e elas nunca vieram.
- Não precisa me chamar de senhorita. Aliás, nos dias de hoje ninguém mais fala assim.
- Os tempos não mudam, Srta. Deise. As pessoas sim mudam radicalmente e esse monstruoso contraste entre o que é e o que elas querem que seja é que nos conduz ao caos em que estamos vivendo.
- Está certo. Mas continue me contando sua história. Falava de pessoas que chegaram depois do início das atividades desta casa.
- Não sei se bem as definiria chamando-as de pessoas. Talvez o termo mais apropriado, embora macabro, seja não pessoas. Isto mesmo – parabenizou-se – As malditas coisas falam, se movimentam, andam, mas não são pessoas; são imagens. Não meros espectros etéreos que talvez nem pudessem nos fazer mal, mas imagens esculpidas de gesso, ou madeira, ou qualquer outro material do inferno. Imagens de santos católicos...


A idéia de alegrar e proteger o asilo, além de ampliar a fé e em conseqüência acalentar a alma dos que vivem neste ambiente por meio de diversas imagens de santo partiu do próprio padre Bento, no que foi muito aplaudido por sua equipe, principalmente pelas velhas “papa-missa” que hoje devem estar saltitando sobre o caixão do pobre homem. Ele acreditava mesmo que as imagens são um estímulo insubstituível à fé dos católicos. Também sabia que justamente daí provem o argumento dos protestantes de que a fé católica é materialista, por só acreditar, como Tomé, no que vê. Admitia ser um argumento forte já que qualquer um, crédulo ou não, costuma acreditar no que vê. Em contrapartida, para ele, a falta de uma visualização concreta que personificasse sua crença, faz com que muitos evangélicos se sintam órfãos e passem apenas a fingir e se apoiar num palavrório vazio. Isto sem falar que algumas imagens, como a de Cristo, ou dos próprios anjos, estão tão impregnadas em suas consciências e em seus corações que mesmo que nem sob pena de morte admitam, ver-se-iam perdidos e desamparados se não pudessem se valer delas em seus momentos de contato íntimo com o divino. Bem; na verdade sei que a detetive não está aqui para debater sobre religião com um ateu velho e desenganado, então deixemos de lado estas concepções pessoais do padre Bento.
- Pode discursar à vontade – ela o redargüiu com simpatia – Tenho bastante tempo para ouvi-lo.
- A continuar a discursar assim, a Srta. logo verá este velho apaixonado.
Ela sorriu e ele retribuiu. Estava estabelecido um grande elo de amizade.


- Pelo que eu soube, elas vieram da grande catedral do Estado. Encontradas em uma velha capelinha nas ruínas de uma micro-cidade que simplesmente sumiu do mapa, talvez devido à expansão econômica e industrial das cidades vizinhas, talvez por algum desses tenebrosos acontecimentos típicos de cidades-satélite, que raramente chegam ao conhecimento de alguém fora dos limites da própria cidade, ou por qualquer outro motivo, as imagens foram endereçadas à capital, onde passaram por um processo delicado de restauração. Estimou-se que elas têm mais de duzentos anos. Demorou quase um ano para que o ofício com a solicitação do padre Bento fosse aprovado, mas enfim, as imagens foram autorizadas a serem liberadas da capital para este nosso humilde asilo.
- Mas por que mandariam para cá, em vez de imagens de santos comuns, outras que foram tão zelosamente tratadas e até com um certo valor histórico?
- Aí é que está, Srta. Deise. Isto seria realmente inconcebível, a menos que quisessem se livrar delas.





            - Quando as autoridades maiores da diocese do Estado autorizaram a liberação de algumas imagens da catedral para a pequena casa de internação e repouso da cidadezinha, não poderiam conceber que o cardeal-mor da catedral se aproveitaria da oportunidade para se livrar das tais imagens recém descobertas e que desde a chegada vinham lhe causando intensas sensações de mal-estar, principalmente durante a noite, fazendo-o tirar todas as imagens, quadros e referências de santo de seu quarto e ainda assim, só conseguindo pensar em tentar dormir após dar a terceira ou quarta volta na tranca da porta do seu quarto. Era a oportunidade que há muito ele vinha esperando, pois se futuramente indagado, poderia simplesmente alegar um equívoco pela dispersão das imagens. Às vezes me pergunto como ficou sua consciência após ter mandado seus maiores pesadelos para cá e a resposta geralmente é que, ao menos nos primeiros momentos, fora para ele a coisa mais fácil do mundo ignorar sua consciência. Quando, enfim, ela o trouxe aqui e ele me contou tudo o que estou lhe dizendo, ao menos para o padre Bento, já era tarde demais.


            - Sem dúvida as imagens foram recebidas com muita alegria por todos os que aqui viviam. Todavia, embora nunca me tenham confessado, aposto que, assim como eu, todos logo começaram a perceber que havia alguma coisa errada com as estátuas. Seus olhares sombrios cercavam o ambiente a nos espreitarem. Comentei certa vez sobre o assunto com o padre Bento e lhe juro que desde meus tempos de travessuras na escola não recebia um sermão tão duro. Certamente ali elas já o aliciavam.


            - O senhor está dizendo que as diversas imagens deste lugar possuem uma espécie de personalidade macabra?
            Só então a detetive Deise pôde perceber claramente que a certa distância, uma das imagens parecia lhes observar. Como não era especialista em santos perguntou a Seu Antônio:
            - Aquela imagem ali de quem é?
            - Aquele é Pedro: o mais famoso deles. Vê as duas chaves que ele carrega? Uma é de ouro e a outra é de prata. A de prata abre para nós os tesouros da Terra e a de ouro nos dá acesso aos tesouros do céu. Escolha a sua, detetive.





            - Elas passam o dia como estátuas comuns de madeira, gesso, ou qualquer outro material de que se fazem estátuas. No entanto, a certa hora da noite, algo lhes acontece e as coisas começam a ganhar movimentos e inteligência. Sim, se tornam extremamente astutas. Acha que parece loucura, Srta. Deise? – ele deu um tempo para que ela respondesse, mesmo sabendo que não o faria – É claro que parece e é loucura – continuou – mas é a verdade. E se estou louco, estou com muita propriedade, pois não hesitei em explodir com um tiro a maldita cabeça de São Sebastião.


            - Sempre fui um ateu conformado, se é que me entende, Srta. Deise. Na infância ia às missas obrigado por minha mãe; fiz a primeira comunhão, da mesma forma, contra minha vontade e justamente por isso, em minha vida adolescente e adulta o catolicismo tornou-se um sinal muito maior de sacrifício e privação da liberdade do que de satisfação espiritual. E isso absolutamente não mudou quando vim para cá sob decisão de minha família.
            - Por que eles não puderam ficar com o senhor? Não me parece, sob hipótese alguma, um homem inválido ou incapaz.
            - Por que ficariam? A família estava crescendo e a casa proporcionalmente diminuindo. A gravidez de minha filha pareceu ser a desculpa perfeita para o meu genro aproveitador explicitar seu desejo de se livrar de mim. Eu confesso que no começo poderia ter simplesmente ido embora, mas não fui porque achei que estando ali, com o cretino debaixo de minhas barbas logo o conseguiria pegar no pulo em alguns de seus muitos desvios de caráter e provaria à tonta da minha filha que ela escolhera como marido um membro da pior espécie de mulherengo sem escrúpulos e aproveitador. Por capricho do destino e também por uma certa astúcia do salafrário nunca pude comprovar nada. Pior do que isso foi descobrir tardiamente que o diabo vinha colocando alguma droga hiperestimulante ou sei lá o que nas minhas garrafas de Wiscky. Sou um apaixonado por wiscky, mas nunca minhas doses diárias me apartaram por mais de um segundo de minha consciência. No entanto, seja lá o que o famigerado colocava naquelas garrafas, deixava-me mais doido do que aqueles hamsters de laboratório perseguindo queijo, e eu me punha a falar e fazer sem qualquer pudor tudo o que eu queria e não queria, podia e não podia. Daí até o canalha convencer minha filha a me trancafiar como alcoólatra foi um pulo. No fundo sempre foi o que ele quis. Não me queria solto por aí usufruindo de um patrimônio que também é meu. Pra isso se casou com minha única herdeira.
            - E quanto a sua esposa?
            - Roberta se foi antes do casamento de nossa filha. E ela é que teve sorte de não ver sua menina ajuntada com um traste da pior espécie. A esta altura estaria aqui comigo, ou o maldito a estaria infernizando tanto que logo a mataria.
            - Sua filha não se recente por deixá-lo aqui?
            - Verônica é uma mimada. Sempre teve tudo que quis. Na única vez que fomos contra a postura de um de seus namorados ela acabou se casando com ele. E ele sabe muito bem como manipulá-la, fazendo-a sempre pensar que é ela quem está por cima. Mas qualquer tentativa para abrir seus olhos de minha parte é vista como um ato de implicância e autoritarismo. Assim, admiti que o melhor é que ainda por duras penas ela aprenda sozinha, mesmo que leve uns vinte anos. Sim porque não vão faltar as madrugadas sozinhas no leito enquanto ele se empenha em contínuas ‘reuniões’ de negócios, ou os recados anônimos na secretária, ou as contas enormes na floricultura, sendo que para ela, raramente chegará até mesmo um botão de rosa. E quando descobrir que ele possui mais mulheres e filhos do que o tio Patinhas, moedas, ou ela vai assumir definitivamente o seu papel de esposa traída e conformada, ou vai chutar a bunda do ex-maridinho pro outro hemisfério. Apesar de tudo, não duvido que mesmo daqui a tanto tempo ela tenha suficientemente coragem para isso. Melhor do que isso só mesmo o milagre de eu estar vivo por pelo menos mais dez minutos e com força suficiente nos braços para soltar uns bons rojões.
            A detetive sorriu. Sem contar a história das imagens assombradas, o velho não dera qualquer demonstração de desequilíbrio.
            Seu Antônio também riu satisfeito por suas palavras terem divertido a moça. Sem dúvida simpatizara muito com ela. Talvez até lembrasse Verônica, sua filha.
            - Mas chega de roer velhos ossos – ele disse -  A senhorita deve estar muito mais interessada nos acontecimentos que levaram à morte o padre Bento, certo?
            - Certo – ela assentiu. Mas, na verdade já não sabia se queria mesmo ter conhecimento da história que Seu Antônio tinha para contar. Não queria terminar por descobrir que o pobre velhinho era mesmo louco. E se não fosse, que outra razão teria para mentir? A menos que fosse o próprio assassino do padre.


            Na verdade, antes do padre Bento, embora pouquíssima coisa se tenha comentado ou saído na imprensa sobre o assunto, mais quatro mortes haviam ocorrido na casa de repouso após a chegada das imagens católicas. Todas apontadas como paradas cardíacas, o que a polícia nem se preocupou em investigar mais afundo, afinal, quem se importa com velhos a desfalecerem num asilo? Se estão aqui é porque geralmente nem a própria família se preocupa. Outra coincidência é a de que apenas cinco dentre os internos deste lugar não eram católicos. Um deles é a pessoa que vos fala e os outros quatro são justamente os que estão comendo capim pela raiz. Eu mesmo creio que só escapei dos santos por milagre.


            D. Helena foi a primeira a implicar com as imagens logo que elas chegaram. Viúva de um ex-bispo da Igreja Batista, chamava a todo tempo a atenção para o claro alerta bíblico de que toda imagem construída por mãos humanas para adoração ultrajavam os desígnios de Deus e toda aquela ladainha de crente. Responsabilizava o padre, que como coordenador do asilo ‘não poderia sujeitar os internos não-católicos, ainda que fossem em absoluta minoria, a conviverem com tamanha heresia’. Seus argumentos foram ouvidos, mas ignorados. Padre Bento lhe disse que ninguém a obrigaria a se ajoelhar ou fazer preces diante das imagens e da mesma forma ela não poderia privar este direito aos outros. No dia em que ela amanheceu falando que a própria imagem de N.Sª. de Fátima entrara em seu quarto e lhe alertara a deixar de lado os traços de rebeldia, todos acharam que era mais um ato de implicância dela com as imagens. Vivia apavorada, acuada em seu quarto com a Bíblia na mão, rezando em voz alta orações de exorcismo. Então, certo dia, amanheceu morta em sua cama, em meio à grande quantidade de seus próprios excrementos. Disseram que foi um enfarto fulminante; muito provavelmente deve ter mesmo sido esta a ‘causa-mortis’ principal, não é como vocês da polícia chamam?
            - Sim – a detetive assentiu.
            - É, mas eu estava lá quando o cadáver foi encontrado e vi as marcas de pequenos dedos no pescoço da mulher. E mesmo que não haja indícios de que a morte da velha fora por esganadura, isso já justificaria a pobre coitada ter batido as botas de tanto medo.


            - Quando o Anjo da Anunciação apareceu para Seu Raimundo, claro que ele mantinha bem fresca na memória a história de Dona Helena. Na época, como todos, ele duvidara da velha bruxa evangélica, mas quando ela morreu, não sabia dizer quanto aos outros internos, mas certamente ele passara a enxergar com outros olhos as imagens deste asilo. E para ele aquilo foi fácil, já que também não gostava de imagens. Não pelos mesmos motivos da velha crente faladeira, mas porque sua ex-mulher era macumbeira e sempre mantivera um monte daqueles troços, com seus malditos olhares de superioridade dentro de casa. Aquilo por muitos anos foi motivo para as mais intensas brigas. E justamente um acidente com uma das peças, provocado por ele foi o estopim que terminou com a separação do casal. Daí para frente projetou sua vida para sempre livre de qualquer imagem e estátua de santo, até vir parar aqui e sua voz de decisão passar a valer menos do que uma goma mascada na sola do sapato. Então, ver a estatueta angelical entrar à noite em seu quarto e ouvi-la dizer que ele deveria esquecer totalmente a mágoa e começar a aceitar como os outros as verdades reveladas que as imagens traziam, mais do que assustado, Seu Raimundo ficou furioso. Pela manhã, a todo vapor, estava gritando a plenos pulmões que assim que suas mãos estivessem empunhando algo consistente, preferencialmente um belo porrete, partiria em incontáveis pedacinhos cada uma das estatuetas metidas a quererem ser gente. Infelizmente, apesar de ele até ter conseguido arranjar o seu porrete, cada um de nós fez um esforço para impedi-lo de fazer isso naquele dia. E nunca mais ele teria outra chance, pois na manhã seguinte estava morto, com o porrete no chão ao seu lado. Alguém, (disseram que ele próprio), golpeara seu peito com tanta força com aquela coisa que seu coração simplesmente parou. Concluíram que foi ele porque apenas as suas impressões constavam na arma do crime. Isso não quer dizer que alguma coisa que não possui impressões não a possa ter usado, se é que a senhorita me entende...


            - Após esta segunda morte, todos os que aqui viviam, (ou conviviam), já sabiam que nossas sacras imagens eram um tanto diferenciadas das de outras igrejas. Isto, porém, não impediu que outras mortes acontecessem e muito menos fez com que houvesse qualquer sinal de um levante para protestar de qualquer forma possível, embora poucas fossem imagináveis. Na verdade, todos começavam a achar que estas coisas eram mesmo sagradas, autênticos instrumentos personificados da própria vontade de Deus. E esta impressão tornou-se para os que vivem aqui uma certeza quando eles começaram a ouvir isso da própria boquinha das imagens, embora dificilmente algum deles vá lhe admitir que os ouviu, por medo de passarem a ser tratados como loucos. Mas sim, detetive Deise, elas falam e a lembrança soturna das suas vozes fica ecoando em sua cabeça 24 horas por dia, como a de uma buzinada estridente em meio a uma brusca freada a poucos centímetros de projetar seu corpo numa longa viagem para a morte.
            Ele então a fitou duramente nos olhos como se quisesse desafiá-la a testar sua sanidade apenas naquele confronto de olhares. Desta forma mesmo lhe falou:
            - Só que eu nunca caí nessa esparrela de instrumentos divinos. Isto é baboseira, ou Deus sentiu que é hora de castigar a humanidade com uma boa dose de sadismo. Pra mim estas coisas são gárgulas. Vindos diretamente das galerias do inferno.


            Seu Antônio fez a pausa mais longa de todo o seu relato e isso indicava que já estava chegando, ou já tinha chegado ao fim de tudo o que tinha, (e queria), a dizer.
            - Já pode se levantar e ir embora se quiser, detetive.
            - Prefiro ouvir tudo, se não se importar.
            - Por que, se não acredita em nada do que eu disse?
            - Não disse se acredito ou não. Preciso conhecer todos os fatos para tirar minhas próprias conclusões. Conte-me tudo sobre os outros crimes.

            Ele suspirou, mas de certa forma pareceu satisfeito por ao menos não se sentir já sendo tratado como doido. E não importava se ela estava acreditando ou não se aquelas estátuas esculpidas em gesso ou madeira podiam andar, falar e pensar; ao menos, ele lhe via através dos olhos que sinceramente em seu íntimo a jovem detetive não caçoava nem tinha pena dele.  Ela era como um cientista infiltrado numa convenção de bruxos, ouvindo tudo atentamente e procurando analisar cada feitiçaria sob os auspícios da ciência.


            - As duas outras mortes foram por punição e não por exclusão. Para punir severamente erros de devotos e não para expulsar incrédulos. Os católicos têm a mania de se apegarem demais às deidades, aos santos com que por um motivo ou outro costumam cultivar uma maior afinidade. Muitos esquecem que para tudo há uma hierarquia e que tal demasiada devoção às classes baixas tende a despertar o ciúme e o despeito das classes superiores.

            Eles também possuem um supremo superior a quem chamam de O Nazareno. Nada mais justo, pois se trata da própria imagem do Cristo flagelado no momento da crucificação. A coisa está lá, no altar principal da capela, com os olhos bem abertos, vigiando a tudo e a todos os que estão aqui, para ao menor deslize enviar durante a noite os seus anjos e mártires vingadores com uma inextirpável sentença de execução.
            - Resta-me uma última dúvida, seguindo a linha de raciocínio de sua história: por que o padre Bento enlouqueceu e por fim foi morto?
            -É muito provável que após essas mortes ele já soubesse, (ou ao menos tivesse grande desconfiança), que havia algo de errado com as estátuas. O que acredito é que talvez ele, como padre, tenha acreditado que poderia vencê-las e não apenas se livrar delas como o cardeal que as enviou para cá. Digo isso porque nessa época o surpreendi várias vezes absolutamente concentrado em sua liturgia sobre exorcismos e combates a espíritos malignos. Certamente ali as imagens já o atormentavam, afinal, ele era o diretor daqui e se elas queriam conquistar a obediência de todos, é por ele que deveriam ter começado, não? O padre se tornou então extremamente fechado e carrancudo. Raríssimas vezes aparecia por aqui durante o dia, embora não tivesse família, ou qualquer vida social além de sua congregação. Em compensação, vinha todas as noites ‘armado’ até os dentes, desde a batina, crucifixos, água-benta, a indispensável Bíblia e diversos outros livros e coisas que certamente constam no “manual contra vampiros e assombrações”. Passou a sempre dormir dentro da própria capela. Trancava-se lá, sozinho, e só o víamos novamente no dia seguinte. Em compensação, muitas coisas ouvíamos, (os que se atreviam a tentar), principalmente palavras quase gritadas do padre em latim. Às vezes ouviam-se vozes diferentes dialogando, embora o padre Bento fosse a única pessoa humana trancada lá.


            - Todas as imagens haviam sido levadas para dentro da capela, por ordem do padre Bento e ainda assim ele não se intimidava em se trancar com elas durante toda noite. Certamente estava tentando evitar que elas fizessem mais vítimas por aqui. O estranho era que todos os internos haviam perdido toda e qualquer simpatia que tiveram por ele. Guardo-me o direito de não lhe revelar de quem, mas até ouvi de alguns daqui do asilo que ficariam muito felizes caso as estátuas o matassem. Antes disso, de alguma forma elas o enlouqueceram. Ele ficou absolutamente convencido de que eram obras divinas de punição pelos excessivos pecados do mundo. Deus havia pegado nossa pequenina e modesta cidade, (nem por isso menos passível de injúrias estrombólicas contra Ele), para que servisse de exemplo para todos os povos e nações. E era preciso que se entendesse que Deus é sábio e justo em Suas decisões e não por acaso fomos alvo de tal implacável sentença. Assim, o padre abilolado se pôs a dar com a língua nos dentes sobre os mais escabrosos pecados de cada um dos habitantes que já haviam passado pelo seu confessionário, o que justificava a punição da cidade. Alguns dias depois estava também enjaulado por aqui, sem a batina e com um monte de gente querendo pintar sua caveira. Só que isso não o fez calar a boca. Ele continuou pelos corredores soltando os podres de todo mundo para quem quisesse ou não ouvir.




            - Pelo que eu entendi, acreditando na sua história, já vou começar a investigação sobre a morte do padre com um bocado de suspeitos – disse-lhe a detetive.
            - Sim. Todos os que tiveram motivos para querer interná-lo aqui e todos daqui que não gostavam dele.
            - Isto exclui... – ela ponderou analiticamente - ...aparentemente apenas o senhor.
            - Talvez sim, mas não se precipite Senhorita Deise. Há ainda um motivo que me torna o maior de todos os suspeitos...


            - Lembra-se de como lhe disse que com um tiro reduzi a quantidade de imagens deste asilo, tendo despachado a de São Sebastião? Pois é; embora não tenha saído ainda o resultado do laudo da perícia, certamente nele constará que a bala partiu da mesma arma que instantes depois acabaria com a vida do pobre padre Bento.


            Aquilo tudo certamente contribuía para aumentar a hipótese de que Seu Antônio estava louco. Totalmente gagá embora não parecesse perigoso a ponto de matar um homem. Talvez o padre também estivesse louco e os dois dividissem a crença em toda aquela história maluca. Sendo o último interno incrédulo na “dádiva das imagens” após as mortes, talvez o padre estivesse tentando convencer Seu Antônio a se converter para que adorasse também as tais imagens supostamente falantes. Irritado, Seu Antônio poderia ter disparado no primeiro santo que avistou e em seguida no próprio padre.
            Mas, tudo isso eram apenas conjecturas e já estando ali, ela ouviria até o fim o depoimento do suspeito. Graças a ele, tinha mais quatro mortes no mesmo local para investigar.

            Seu coração deu um pulo.
            A imagem que os ‘observava’, por um ínfimo instante pareceu realmente piscar um dos olhos para ela.


            Claro que poderia ter sido uma falha num golpe de vista, mas a atenção sobre aquela estátua durante o resto da conversa seria, sem dúvida, redobrada...




            - Eu vou lhe contar como tudo aconteceu, Srta. Deise. Se você vai acreditar ou não, não me compete saber e na verdade, pouco me importa, pois, mesmo que acredite, vai ser muito difícil provar que não fui eu quem atirou no padre Bento, já que as únicas digitais que vão encontrar naquela arma serão as minhas, afinal, estátuas de gesso não possuem digital.


           
            - Aquela parecia ser a derradeira investida do padre contra as coisas endemoniadas. Os ruídos aterradores que vinham da capela podiam ser ouvidos por todos os corredores do asilo. Claro que ninguém queria se meter. O padre puxara para si toda a responsabilidade quando resolveu se confinar com todas as imagens num único e fechado ambiente. No mais, ele sempre dissera que ninguém na cidade merecia o sacrifício que ele estava fazendo. Estavam todos afastados quase que irremediavelmente de Deus e apenas por isso, alguém precisaria lhes dar um exemplo forte de fé e confiança em Nosso Senhor. Parecia que todos haviam se esquecido o quão bom o padre Bento já havia sido para nós e de como ele sempre havia sido um bom servo de Deus, o que tornaria injustificada a ação daquelas coisas contra ele caso fossem realmente divinas. Acho que, no fundo, todos sabíamos que Deus nada tinha a ver com aquilo, mas o medo e algum tipo de força maligna nos repelia. Só que eu nunca me esqueci das primeiras palavras que o velho padre Bento me disse assim que eu entrei aqui, destituído de todos os meus direitos como cidadão por um atestado de maluco com carimbo e rubrica do juiz. Já conhecendo minha história, ele me disse: “Tranqüilize-se, Seu Antônio, pois o senhor não está, em absoluto, perdendo sua filha. Ao contrário, todo amor que vocês sentem verdadeiramente um pelo outro só virá mesmo à tona quando ela tornar a entrar por aquela porta para levá-lo daqui”. E acredite, Srta. Deise; talvez eu jamais viva para ver esse dia, mas esta esperança é só o que me faz suportar os momentos de solidão e amargura que preenchem atualmente a maior parte da minha vida. Assim, naquela noite fatídica, repeli todo o receio e covardia que infestavam este lugar e fui à capela com o único objetivo de salvar mais do que o padre, mas o meu amigo Bento. Claro que, como morador mais antigo deste lugar, eu sabia perfeitamente onde se guardavam as chaves reservas de cada sala, inclusive as da capela.


            - Sem dúvida as criaturas poderiam tê-lo matado antes, afinal, desde o princípio ele, como os demais que morreram, também não simpatizaram nem um pouco pelos desígnios soturnos que as imagens ofereciam.
            - E o senhor faz idéia de quais sejam esses desígnios?
            - Eu sei que lhe cabe mais do que a mim a área das suposições, mas acho que essas imagens se personificaram por sua própria vaidade e agora exigem para si um tipo de adoração muito maior do que a que o ser humano aprendeu a praticar; sim, porque no fundo, todos sabemos que estátuas de santos, por mais sagradas que sejam consideradas, não passam de átomos sem vida. Talvez tenha a ver também com o lugar de onde elas vieram. Não da catedral, mas da sua cidade original. No pouco que pude conversar com o cardeal, ele me contou que ouvira fala, em seus tempos de seminário, de uma pequena cidade que deixara de existir porque os moradores de comum acordo resolveram abandoná-la. Isto porque um grupo de adolescentes de uma gangue, que logo se tornaria uma seita, roubou as imagens do templo da igreja e passou a utilizá-las em pesados rituais da chamada ‘missa-negra’, uma espécie de paródia invertida da missa católica. Ele disse que certa feita alguém ateou fogo no templo dos profanadores enquanto eles lá dentro realizavam sua celebração macabra, o que matou a todos. O culpado, o próprio prefeito da cidade foi descoberto e preso, mas o mesmo não se deu com as imagens que simplesmente desapareceram. Isto bastou para que as pessoas passassem a receber a visita de algumas delas durante a noite. O prefeito foi enforcado e os moradores fizeram um pacto para dizerem a todos que o incêndio no templo fora um acidente; até a polícia do lugar concordou que seria esta mesmo a melhor opção. Por via das dúvidas e prontamente, cada um fez suas malas e partiu para sempre daquele lugar maldito, esperando com ardor que nenhum pesadelo os seguisse. Ao menos pesadelos demasiadamente físicos.
           
            - Isto é tudo fantástico além da conta.
            - Espero que a senhorita não peça minha transferência para o hospício mais próximo. Minhas juntas de velho não suportariam a rigidez das camisas-de-força.
            - Conte-me o que o senhor encontrou na noite em que foi à capela para salvar o padre.
            - Como eu havia dito antes, as imagens já o poderiam ter matado, mas não o fizeram talvez por terem pensado que, convertido, ele serviria muito bem à causa. Isto não aconteceu, mas quando ele começou a falar demais elas devem ter suspeitado que os próprios cidadãos da cidade, que estavam vendo seus podres inenarráveis serem revelados, dariam cabo do padreco falador. No entanto, mesmo internado aqui ele continuava a desafiar as suas vontades, o que representava um perigo a sua autoridade diante dos fiéis. Então, naquela noite, certamente da boca do próprio Nazareno, a sentença de morte do padre Bento já havia sido decretada.

            - Com certeza, a imagem que vi quando entrei lá convenceria não apenas a senhorita, mas até o mais cético dos juízes. Padre Bento estava caído. Gritava ao seu Deus palavras de invocação e súplica insistindo em acreditar que aquilo o protegeria. Por cima dele estava São Sebastião em miniatura. Eu sei que parece inacreditável, mas com suas mãozinhas que devem medir cerca de ¼ das nossas, ele segurava pelos cabelos a cabeça do padre de encontro ao chão impedindo-o de se levantar. Nas pernas do pobre homem, um São Jorge e um São Pedro, estes menores ainda, apoiavam da mesma forma suas canelas contra o chão, privando-lhe também dos movimentos das pernas. Também sobre seus braços havia duas ‘virgens’ com aterradores sorrisos que expunham afiados dentes em seus rostos pequeninos. Não me recordo muito bem, mas me pareceram ser Fátima e Conceição. Além de estarem de pé sobre os pulsos do homem indefeso, cada uma delas tinha na mão um reluzente punhal. E quem observava tudo sentado em seu trono no meio do altar, com um prepotente ar de contentamento? Ele; o Nazareno; o Cristo crucificado, muito mais senhor de Si do que estamos acostumados a ver...


            - Assim que eu entrei na sala, um querubim veio voando em direção a minha cabeça, ao que tive que me abaixar. Ele cumpriu seu intuito que era o de bater a porta e trancá-la com a chave que tinha na mão. Naquele momento, a atenção de todos se voltara para mim, o intruso, e pela primeira vez até então eu tive a franca percepção de que a velha arma que trouxera oculta em minha cintura talvez não fosse suficiente para salvar a minha pele e muito menos a do padre.


            - Após esse desvio de atenção momentâneo, eles voltaram a concentrar as atenções em seu ritual homicida. Eu presumo com quase total certeza que tenham achado que eu fosse dar meia-volta em direção à porta, com minha outra chave na mão, irremediavelmente disposto a dar o fora dali, esquecendo-me completamente do padre que viera ajudar. Jamais conceberiam que um velho alquebrado se atreveria a enfrentá-los. Só se deram conta quando o tiro, modéstia à parte, extremamente preciso, esfacelou a cabeça de pedra de São Sebastião.


            - Houve um grito aterrador, como um estridente grasnar, enquanto o local em que estava o padre e as imagens enchia-se de uma fumaça branca. O santo sem cabeça tombou para trás como uma árvore desterrada pelo golpe derradeiro do machado. Aquilo me provocou uma enorme satisfação momentânea. Todavia, com sutileza de fazer inveja aos mais exímios bailarinos, várias imagens já haviam se aproximado muito de mim sem que ao menos me desse conta e uma delas me golpeou violentamente pelas costas, derrubando-me e levando-me a largar a arma.


            - O padre se aproveitara da confusão e da ausência da pressão na cabeça para livrar também as mãos e erguer o corpo, sentando-se. Ficou assim muito mais vulnerável e nada pôde fazer quando a bala encontrou certeiramente alojamento no centro do seu peito. E certamente eu seria o próximo, não fosse pelas vigorosas batidas que alguém começava a dar na porta.

- Todas as estátuas começaram a correr alucinadamente de volta aos respectivos lugares em que o padre as deixara. Quando a polícia, que por prévia medida eu mesmo havia chamado, estourou a tranca da porta com um tiro e entrou, as imagens já estavam imóveis em sua condição de estátuas, mas haviam cometido seu primeiro e único erro.
- A arma fora deixada no local onde fora utilizada pela última vez, o que era um pouco distante de onde eu estava caído quando a polícia entrou. Isto seria para mim o álibi perfeito, indicativo de que o assassino havia fugido e nos deixado lá trancados, eu ferido, quase desacordado e o padre morto. No entanto, quando o laudo pericial sair e indicara presença apenas das minhas digitais na arma, certamente para a polícia o caso vai estar mais do que esclarecido.
- Um laudo pericial minucioso poderá inocentá-lo neste caso, determinando a sua posição e a da arma no momento do disparo que matou o padre.
- Isto até pode ser possível, Srta. Deise, mas se eles abrirem mão da prova das digitais, o que lhes restará além da minha história? Não havia ninguém humano na capela além de mim e do padre Bento.
- Como o senhor mesmo disse, o assassino, que poderia estar de luvas, pode tê-los trancado lá e fugido.
- Mas as duas únicas chaves existentes para aquela fechadura estavam do lado de dentro...
- Ora, chaves são a coisa mais simples de se arranjar. Uma coisa é certa: se o senhor quiser se livrar da acusação de homicídio terá que esquecer a sua história e tentar algo mais...   ...plausível.
- Está sugerindo que eu minta no tribunal, detetive?
- Não. Longe de mim sugerir. Estou afirmando que será sua única alternativa.
Após um certo tempo de meditação, ele quebrou o tenso silêncio que havia se estabelecido.

- Percebo que a senhorita ao menos acredita em minha inocência, posto que está me dizendo isso. É por que crê na minha versão ou na sua?
- Se o senhor quiser escapar da cadeia, isto não deve ter qualquer importância...


O laudo pericial só confirmou o que ela já esperava. Na noite do crime, a arma havia efetuado dois disparos; um que tingiu a imagem do santo e o outro que matou o padre. As únicas digitais que nela constavam eram as de Seu Antônio, o que o tornava cabalmente o grande suspeito do crime. O trabalho minucioso da perícia, que ela levantara, sobre a distância entre a arma e o atirador nem chegou a ser feito, afinal eles não conheciam a versão original do Seu Antônio e portanto não tinham porque imaginar que não fora ele quem disparara a arma, já que nela constavam suas impressões digitais e mais ninguém havia no recinto naquele momento. Para tentar provar que não fora ele que atirara no padre, seu advogado precisaria de argumentos dignos de alguma credibilidade e sem dúvida, a história das estátuas vivas assassinas lhe seria de péssimo auxílio.

“a menos que ela tentasse ajudá-lo...”

            E por que o faria? Certamente porque, por mais incrível que pudesse parecer, acreditava em Seu Antônio e sua profissão lhe ensinara a geralmente acreditar nas pessoas certas.
            Provavelmente na manhã seguinte a ordem de prisão contra Seu Antônio seria expedida e ela teria poucos motivos para ficar por ali. Então a solução era só uma: passar a noite naquele asilo e ir checar de perto as tais estátuas ambulantes.


            “Aquele padre tinha mesmo que morrer. Foi bem feito para ele”.

            Era o que havia dito a maioria dos internos a quem ainda naquela tarde a detetive Deise Martins solicitara um depoimento informal. Nem todos a atenderam, mas dos que concordaram, todos haviam ficado felizes com a morte do seu tutor e outrora amigo padre Bento.

            “Aquela boca enorme dele começou a falar demais. Primeiro foi sobre nossas imagens, depois, sobre os inomináveis desvios de conduta de todos na cidade. Tinham mesmo que puxar a tomada dele”.

            Tudo indicava que o padre estava realmente lutando contra todos naquele lugar.


            Numa rápida passada em casa armou-se até os dentes, como um típico herói de cinema americano. Ao menos, pelo que contara Seu Antônio, as coisas eram suscetíveis a balas. A tradicional 38 ia no coldre na cintura, absolutamente dentro dos padrões normais. No entanto, sua real e fiel companheira, uma micro 22 ia oculta no coturno. Ambas devidamente municiadas, era óbvio, mas ainda parecia pouco. Somente um doido suicida se lançaria numa missão dessas sem solicitar reforço. Mas o que alegaria? Que tentava bancar a “caça-fantasmas” por conta da história absurda de um velho gagá? O detetive Marcelo, seu parceiro no Departamento de Polícia, certamente se prontificaria em ajudá-la, mas não queria envolvê-lo profundamente naquela história. Pelo menos não até que tivesse alguma prova concreta em mãos. Para isso estava levando também uma micro-câmera digital. Se pudesse registrar o menor movimento das imagens demoníacas, por certo sua voz ganharia mais força para se fazer ouvir.
            Sabia que Marcelo ainda estava de plantão, então telefonou para sua casa apenas para deixar uma mensagem na secretária:

            “E aí, parceiro? Juro que não queria interromper suas mais do que merecidas horas de descanso, mas talvez neste momento em que você ouve esta mensagem eu esteja com alguns pequenos problemas. Creio que os poderei resolver sozinha, mas se você por acaso sentir que poderia vir dar uma espiada só para ter certeza, ficarei lhe devendo mais uma. Espero que já não esteja sob as cobertas e com uma bela companhia. Se estiver, nem pense em mostrar seu traseiro por aqui, ouviu bem? Prefiro encarar sozinha a máfia a ter de agüentar pelo resto da vida choramingos por um motivo desses da parte de um homem. Bem, estou no asilo do padre Bento, aquele velho padre assassinado, que tinha por hobby reunir a imprensa para contar os pecados alheios. Eu sei que o crime já aparenta ter sido resolvido, mas tem algumas coisas que eu ainda gostaria de esclarecer. Para compensar-lhe, se for alarme falso, prometo que você terá sua tão sonhada revanche na sinuca. Só não espere facilitação da minha parte, pois aí já seria demais”.

            Provavelmente ele iria. Restava saber se não chegaria tarde demais.



Sem dúvida, aquele lugar, (como a maioria dos lugares), era muito mais aterrador durante a noite. Toda a sutil melancolia dos corredores praticamente vazios durante o dia se tornava sombriamente mais soturna à noite. E havia ainda as imagens que, talvez por ela agora conhecer a história de Seu Antônio, pareciam prontas para saltarem no seu pescoço e a esganar.
Havia pelo menos uma dúzia e meia de imagens de santos e anjos espalhadas por aquele asilo. A maior parte delas estava concentrada na capela, mas também em cada um dos corredores uma pairava imponente, como uma guardiã. Justamente uma destas foi a primeira coisa que a detetive Deise viu ao chegar e por pouco o simples olhar da estátua não a fez desistir.


Os administradores do asilo, que agora pertencia a um grupo de empresários, torceram os narizes, mas no fim, permitiram que ela pernoitasse no local para concluir as investigações. Mal sabiam que ela não tinha qualquer autorização do juiz, ou mesmo do departamento para fazer aquilo.
Era difícil saber por onde começar. Talvez devesse montar vigia diante das estátuas, mas não poderia ficar na ânsia por movimentos de apenas uma delas. Se era na capela que elas se concentravam, justamente lá ela deveria ficar de guarda, exatamente como fizera o padre, na noite de sua morte.


Todos os internos já estavam recolhidos em seus quartos, mas ainda assim ela não conseguia se sentir verdadeiramente sozinha. Com a cautela de quem toca num artefato repleto de explosivos, a detetive abriu a porta da capela. As imagens aparentemente permaneciam lá, imóveis em seus andores, exceto por uma. Já havia visitado a capela após tomar o depoimento dos moradores do asilo e tivera o cuidado de memorizar a posição de cada uma daquelas imagens prevendo que talvez fosse necessário para confrontar com a história de Seu Antônio. Agora, dava por falta de uma; a mais importante e que ficava no topo do altar central: a do Cristo crucificado. A do Nazareno.

Sempre se considerara uma boa policial, mas somente naquele momento percebeu os admiráveis reflexos que tinha. Num instante, sentiu uma mão pousar repentinamente em seu ombro, no outro, já dera meia-volta, sacara a arma e a tinha engatilhada na testa do agente surpresa. Suspirou aliviada ao reconhecer o rosto de Seu Antônio.

- Faça isso de novo e eu o mato – falou-lhe um tanto aborrecida pelo susto.
- Desculpe – ele respondeu sorrindo levemente – Ao menos está provado que dificilmente seremos surpreendidos.
- O que faz aqui?
- Antes de a senhorita deixar o asilo, pude ler em seus olhos o que tinha em mente.
- Isto não reponde a minha pergunta.
- Responde sim. Não vou deixá-la sozinha com esses gárgulas malditos.
Seria difícil dissuadi-lo e inegavelmente sua presença a fazia se sentir mais segura.
- Pelo que me contou sobre a precisão com que acertou a imagem sobre o padre, o senhor deve ser um exímio atirador, não?
- Modéstia a parte, fui o melhor aluno no curso de tiro de um acampamento de verão no ano de 59.
- Fique com isso – ela disse, entregando-lhe o 38 – Sabemos que por motivos óbvios a polícia ficou com o seu.
Abaixou-se e apanhou a 22 no coturno. Perdia assim o elemento surpresa, mas ao menos ganhava um aliado em condições de se defender.
- O que pensa em fazer, afinal, detetive?
- Vou filmá-los. É a única chance de provar sua inocência.
O velho permaneceu pensativo por um instante, mas certamente pareceu ter admirado a idéia.
- Seria uma ótima idéia, não fosse tão arriscada. De que vai nos adiantar filmá-los se depois eles nos matarem? Não sei como ser preso poderá ser pior do que ser morto.
- Não precisa ficar, se não quiser.
- Sim, eu quero. Mais até do que a senhorita.
Ela começou a caminhar a passos lentos rumo ao altar, com a arma firmemente em punho. Seu Antônio a seguia, parodiando uma cobertura. Quem os visse, apesar da acentuada diferença de idade, não hesitaria em apontá-los como parceiros.
- O senhor também já deve ter percebido que ele sumiu.
- O Nazareno? Certamente foi a primeira coisa que notei desde que cruzei a porta de entrada.
- E todas as demais que nos cercam parecem apenas aguardar algo para nos atacarem.
- Algo como uma ordem...
- Exatamente.
- E quando vamos começar a enchê-los de bala?
- Certamente assim que primeiro dos miseráveis se mover.
- Sou realmente muito agradecido pela senhorita ter acreditado em mim.
- Então pode começar a me chamar de Deise. É pelo nome que amigos se tratam.
- Está bem, Deise. Como a senhorita, digo, como você quiser.
- Agora está bem melhor.

Chegaram ao altar. Permanecia da mesma forma em que estava na noite em que o padre morrera. A polícia técnica ainda não havia autorizado que fosse rearranjado, limpo ou arrumado. Na parede bem acima da mesa estava o andor onde costumava a ficar a imagem do Cristo.
- Os peritos que me perdoem, mas vou subir na mesa para olhar melhor o andor. Talvez eu possa encontrar impressões ou alguma pista de como ele foi tirado, ou simplesmente desceu dali.
Ela depositou a arma no altar e solicitou a ajuda de Seu Antônio para apoiá-la e impulsioná-la para cima da mesa. Por questão de respeito tirou as botas antes de subir. Lá em cima começou a analisar minuciosamente o andor a procura de digitais que poderiam sugerir que alguém, talvez um dos internos, estava tentando fazê-los pensar que a imagem saltara dali sozinha.
- Encontrou alguma coisa? – veio de baixo a voz d Seu Antônio.
- Calma. Tenha paciência – ela respondeu, mas já abrindo um modesto sorriso de satisfação ao reconhecer claras marcas de digitais principalmente nas paredes laterais do andor.
- Sem dúvida, há alguma coisa aqui.
- Digitais?
- Quase que com toda certeza.
- Você é sem dúvida uma ótima policial, detetive Deise.
- Obrigada – ela agradeceu, sem desviar muito a atenção.

- E, além disso, é uma mulher linda, que me lembra muito de minha filha.
- Fico feliz por isso. Talvez seja o que inexplicavelmente me mantenha tão compelida em ajudá-lo. Agora me ajude a descer – ela disse, arrancando cuidadosamente o oratório da parede – Vai ser interessante conhecer de quem são estas impressões.
Ele a abraçou pelas pernas e fê-la escorregar junto ao seu corpo, até pousá-la no chão. Ainda a manteve assim, de costas para ele, apertada num abraço por um certo tempo, aparentando até maior do que o necessário. Suas mãos que inevitavelmente haviam deslizado por sobre os seios dela também haviam aparentado ter permanecido ali mais por deleite do que por prestatividade.
Imediatamente reparou que sua arma não estava no local em que deixara...


Assim que a soltou definitivamente no chão, Seu Antônio já empunhava a arma apontada em sua direção. Logicamente também já estava a uma distância segura.
- Lamento desapontá-la, Deise, mas não verá nenhuma imagem se mexendo hoje. Sugiro que se mantenha à distância ou terei que provar que sei usar muito bem esta arma que você me deu.



Mal podia acreditar que havia pouco tinha se gabado intimamente de suas habilidades como policial. Fora pega como a maior das inocentes.



- Quando nosso padre ficou maluco e inventou essa história de que as estátuas estavam lhe transmitindo mensagens, eu logo previ que aquilo tinha tudo para não acabar bem. Mais ainda quando ele começou a berrar aos quatro ventos os podres de todo mundo que via pela frente. Encontrar-se com ele por acaso, ou por necessidade tornara-se um perigo. Bastava ele olhar para a sua cara para se lembrar de que conhecia cada porção de merda que já saíra de suas tripas. Devo dizer que no começo até achei divertido ver a cidade toda, dos maiorais aos mais miseráveis, correndo e se trombando em polvorosa, aflitos e atônitos, à procura de maneiras de fechar a matraca do padre. Ainda assim, até tentei fazê-lo abandonar aquela conduta tão perigosa quanto maluca, mas não consegui. Ninguém poderia. Louco ou não, ele se apegara a uma convicção absurda. E como não poderia deixar de ser, ele acabou enclausurado aqui até que a poeira sentasse e ele pudesse ser silenciado definitivamente, se é que a senhorita, desculpe, se é que você me entende. Infelizmente para ele, por mais escabrosos que fossem os pecados que ele já havia revelado, justamente aqui, entre os internos de seu asilo, havia um que jamais se poderia permitir que escapasse de sua boca. Ainda que para isso, sua irremediável sentença fosse mesmo a morte.


- Quer dizer que o senhor mentiu o tempo todo...
- Depende do ponto de vista. Não menti, por exemplo, quando disse que a senhorita, quero dizer, que você...
- É realmente senhorita, para você! ela o atravessou quase gritando.
- Que seja; quando disse que a senhorita é bonita e que lembra muito a minha filha.
- Por que será que não consigo mais enxergar gentileza de sua parte?
- Até sua personalidade é igualzinha a dela; geniosa e metida a senhora de si. Justamente por isso ela me colocou aqui sem sentir um pingo de remorso.
- Sinceramente não acredito que tenha sido só por isso.
O olhar dele se tornou firme como ela nunca vira até ali.

- E não foi, embora somente uma pessoa no mundo além de nós dois tenha ficado sabendo do real motivo.
- O padre Bento – deduziu a detetive. Ainda que atrapalhadamente, as idéias começavam a se encaixar.
- Exatamente. Quando cheguei aqui, ele, com sua conversa mole e seu jeito de bonzinho me induziu a acreditar que a confissão me traria alguma paz à alma. Então, de repente, ele pirou, o trancaram aqui e ele estava com a língua coçando para contar para todo mundo sobre os meus... assuntos de família.
- O que fez com sua filha, Seu Antônio?
O homem a fitou como se não esperasse tamanha ousadia de alguém que estava prisioneira e sob a mira implacável de seu revólver. Pareceu aborrecer-se a princípio, mas, por fim, como uma criança pega em flagrante com o dedo na tigela de glacê, sorriu.
- Nada que ela não precisasse vir a saber um dia.


- Começou quando Verônica tinha seis anos. Não o aflorar de meus instintos, que já datavam de muito antes, mas que eu me esforçara muito para reprimir. Mas nossa primeira relação íntima.
- Seu primeiro estupro incestuoso, você quer dizer.
- Silêncio! – ele vociferou balançando a arma - Não está em condições de me interromper e muito menos de me reprimir, detetive.
Ela era extremamente linda e delicada e eu não poderia deixar de me deleitar com tamanha maravilhosa pureza tendo eu mesmo a posto no mundo. A princípio tive que ameaçá-la de morte para que não contasse para sua mãe, mas logo percebi que ela jamais teria coragem de fazê-lo. Embora a amasse muito e prestasse atenção na filha, Roberta jamais conseguiu compreender os motivos da rebeldia e revolta que brotaram no coração de sua menina. Isto porque seria inconcebível para ela que o marido a quem tanto amava vinha a tanto tempo em suas barbas transando constantemente com a filha deles. Assim, precocemente Verônica saiu de casa aos quinze anos, carregando uma mágoa brutal, embora já há dois anos eu não a tocasse, por compreender que ela entrava numa idade em que se tornava extremamente arriscado continuar confiando em seu silêncio. Já ali eu via em seus olhos cheios de ódio que se não parasse logo ela explodiria e tudo viria à tona independentemente de minhas ameaças. Ela se afastou drasticamente de mim e de sua mãe, o que contribuiu para que o mal de que Roberta padecia evoluísse até um estágio irreversível. Quando Verônica voltou a nos procurar, estava noiva, às portas de um casamento que, felizmente minha esposa nem chegou a ver. Seu noivo, um idiota metido a intelectual, a trata como a uma débil mental. Embora eu tenha absoluta certeza de que Verônica nunca tenha lhe contado nada, ele não faz a menor questão de esconder que desconfia seriamente que fomos eu e minha mulher, (principalmente eu), os únicos culpados pelo sofrimento e pela infelicidade de nossa filha. Às vezes chego até a pensar que ele desconfie de algo mais, mas acho que se fosse verdade o cretino certamente já teria me feito alguma insinuação. Quando a mãe dela morreu, Verônica me convidou para morar com eles após se casassem, o que aceitei sem saber de que a convivência com seu marido tornaria minha vida um inferno. Talvez, analisando-o profundamente, ele até seja um bom homem, mas o que mais me atormentava era o fato de que ele estava desfrutando de um prazer que por muito tempo eu achei que fosse ser exclusivamente meu. Quantas noites colei o ouvido à porta só para tentar reconhecer e matar a saudade dos gemidos que por tantas vezes haviam me conduzido ao delírio...
- O senhor é mesmo um pervertido – disse-lhe a detetive, ignorando o alerta que ele já lhe fizera.
- É claro que sou – ele respondeu tranqüilamente – e você sabe que eu pretendo ser muito mais, não é mesmo? Já deve saber que vai morrer, ou eu não estaria lhe contando todas estas coisas. Antes, porém, teremos ótimos momentos juntos, eu garanto.
            - As intensas brigas e discussões tornaram minha convivência com meu genro insuportável, o que me conduziu invariavelmente à decisão de deixar aquela casa. Antes, porém, eu quis ter a minha despedida. Aproveitando de certa ausência de seu marido protetor aborrecido, investi uma última vez contra ela, ameaçando-a com uma faca. Infelizmente, desta vez ela se dispôs a resistir até a morte e naquele momento eu percebi que nunca mais a teria.


            - Todo o ódio que ela acumulara por toda a vida voltou com força total e ela exigiu que eu me retirasse da sociedade e me confinasse aqui, sob pena de que contaria tudo ao marido e inclusive à polícia. E aqui procurei levar minha vida normal até me deparar com esses desvarios do padre e agora com você.
            - O senhor sabe que será preso pelo homicídio do padre Bento. Tudo o mais que fizer só piorará sua situação.
            - Ainda não entendeu, não é Srta. Deise? Mais difícil do que aceitar uma condenação para alguém que cometeu o meu tipo de crime é ter que conviver com a idéia de que todos já sabem o que você fez. Certamente a polícia interrogará Verônica a meu respeito e certamente ela, sabendo que fui condenado por duplo homicídio e estupro, terá prazer em incluir sua saga em minha lista de crimes. Por isso também não tenho mais intenção de deixar vivo esta sala, detetive. Se isto, de alguma forma lhe consola, você será a última mulher que sujeitarei a mim em minha vida.
            - Se tem tanta vergonha do que fez a ponto de preferir morrer a aceitar que outros saibam, por que mergulha tão irracionalmente no mesmo erro?
            - Você não entende? Eu mereço isso. Mereço estar com minha filha ainda que uma última vez.
            - Não sou sua filha, Seu Antônio.
            - Não, mas você vai ser, pois quando eu a estiver possuindo com ardor e violência, vou fechar os olhos e deixar minha imaginação transmutá-la no maior prazer de minha vida.

            Era inútil ponderar. Por sua conduta amadora como policial, estava terrivelmente enrascada. Confiara em um maníaco como um bebê de um ano confiaria que os simpáticos furinhos de plugar a televisão na parede não iriam causar mal nenhum aos seus dedinhos. Deus a guardasse do que ainda estava por vir.


            - Jamais pensei que alguém além daquele padre doido varrido acreditaria nessa história de estátuas assassinas, mas sabe de uma coisa Srta. Deise? No fundo, acho que em seu lugar, também uma outra pessoa teria acreditado, isto, claro, se ainda não conhecesse os meus antecedentes: minha filha Verônica. Até nisso vocês são extremamente parecidas. Ela também possui essa estúpida mania de confiar cegamente na sinceridade das pessoas. Por isso foi tão fácil dominá-la por tanto tempo, já que ela sempre se apegava as minhas falsas promessas de que fora a última vez.
            - O senhor fala como se sentisse o maior orgulho por ter destruído a vida de sua filha.
            - Destruído por quê? O que tirei dela? A honra? Mas eu lhe dei a vida. Alguém quer pesar na balança?
            - Embora seja um pensamento digno de um psicopata, sua frialdade me diz que é uma pessoa normal, abjeta e sem qualquer bom sentimento no coração.
            - Engraçado que instantes atrás estava quase a me pedir a benção, como se eu fosse o seu avozinho.
            - Talvez queira receber as palmas por seu excelente desempenho interpretativo.
            - Na verdade, o que quero mesmo é encerrar com este diálogo que não nos levará a lugar algum. Tenho em mente uma forma muito melhor de aproveitarmos estes nossos últimos momentos juntos.
            Ele estendeu firmemente a arma, apontando para a cabeça dela.
            - Com muito cuidado vire-se de costas e junte os punhos para trás, detetive. E nem pense em bancar a espertinha.
            Ela obedeceu, sem imaginar outra opção. Quase que imediatamente sentiu o metal frio das algemas atando os seus punhos. O velho viera mesmo precavido. Em seguida ele tirou as próprias algemas da cintura dela e usou-as para prender-lhe também os pés. Por fim, tirou do bolso uma grossa tira de pano e deu duas voltas em torno da boca dela, apertando o nó até mais do que o necessário, mas que a impediam de emitir qualquer som além de gemidos surdos praticamente inaudíveis. O velho estava pronto para refestelar-se em seu banquete.




            A cada dia ficava mais impressionado sobre como aquela garota conseguia conhecê-lo tão bem. Mais do que qualquer uma das namoradas que ele já tivera. Talvez mais até do que sua própria mãe. Era certo de que às vezes aquilo se tornava bastante útil, já que ela era sua parceira na polícia e o elo estabelecido entre os dois, além de inquebrantável, tornava-os uma dupla sincronicamente quase que perfeita. No entanto, insistia em recear sobre até que ponto é saudável para um homem que uma mulher lhe conheça tão bem.

            Fora difícil convencer a bela morena, que já estava praticamente despida, (exceto por uma calcinha cuja cor era difícil distinguir se era preta ou apenas transparecia seus pelos pubianos), de que ele teria que se ausentar e conseqüentemente não passariam aquela esperada noite juntos. Provavelmente ela nunca mais iria querer olhar na cara dele e ainda que mandasse flores, bombons, ou outros galanteios com pedidos de desculpa, certamente poderia recolhê-los ainda intactos minutos depois na lixeira do prédio de um dos dois.
           
            Mesmo assim, nem por um instante ele cogitara deixar de atender o chamado de sua parceira, o que, pela primeira vez o fez refletir sobre qual a verdadeira importância dela em sua vida. Depois que estivesse certo de que ela estava bem, voltaria a se fazer tal pergunta e exigiria de si uma resposta convincente.
- Acredito que cooperar comigo seria um golpe muito duro a sua altivez, não Srta. Deise?

            Ela o observou, assustada, mas ainda sem compreender bem onde ele queria chegar, pelo menos até o golpe violento da coronha da arma em sua omoplata lhe derrubar imediatamente no chão.
            - Eu compreendo – ele falou, começando a respirar ofegante – felizmente posso dominá-la causando dor intensa por seu corpo, mas sem provocar grandes hematomas que danifiquem seu lindo rosto, ou suas encantadoras formas de mulher.
            Chutou então com força suas costelas. Era evidente que estava se precavendo para não a deixar com qualquer condição de reagir.

            - É uma pena ter que agir assim. Com minha verdadeira filha tais métodos nunca foram necessários. Claro que eu, e agora você também, sabemos o porquê. Ela foi condicionada a se comportar desde a mais tenra infância, o que infelizmente não pude proporcionar-lhe, não é mesmo, Srta. Deise? Então o melhor caminho é a precaução para evitar que você tente alguma tola reação que por ventura possa atrapalhar nossos momentos que prometem ser tão agradáveis.
            Um novo pontapé na boca do estômago fê-la urrar, ainda que abafadamente, e contorcer-se de dor. Tudo o que poderia fazer seria chorar, mas não o fez. Estava nas mãos de um monstro implacável e impiedoso e imaginou o quanto a própria filha dele havia sofrido em suas mãos. Mas, no fim ela o vencera. Conseguira expulsá-lo da sociedade, enclausurando-o naquele asilo. Isto não o fez se arrepender de seus crimes, mas certamente o fez tomar consciência de que nenhuma pessoa de bem, muito menos ela, a vítima da monstruosa libido do próprio pai, jamais perdoaria sua conduta abjeta. Deise teve vontade de conhecê-la. Apesar do pai que tinha, deveria ser uma garota formidável.
            O velho se agachou junto onde a policial estava caída e a segurou firme pelo queixo, olhando diretamente em seu rosto, procurando analisar por que espécie de reação ainda poderia esperar. Sorriu, na certa por deduzir que ela não pretendia mesmo resistir. Sua outra mão entrou por baixo da blusa dela e agarrou-lhe um dos seios sob o sutiã.
            Então, ouviram as batidas...

O homem recolheu a mão num ríspido movimento. Olhou nos olhos dela com raiva, como se fosse o único garoto da classe a ter seu convite para sair rejeitado pela aluna mais oferecida da escola.
            - Que surpresa resolveu me aprontar, detetive? – ele disse, apoiando o cano do revolver na testa dela.
            Ela meneou a cabeça negativamente, embora a imagem de Marcelo não deixasse de pulular em sua mente. Teria chegado tão rápido?
           
- Pois é o que vamos descobrir.
Ele a forçou a se levantar, puxando-a bruscamente pelo braço. Aos tropeços, obrigou-a a caminhar até a porta, sempre com a arma apoiada firmemente na linha da cintura dela.
“Cuidado, Marcelo” – foi só o que pensou.
- Quem está aí? Seu Antônio perguntou, procurando controlar a voz, mas claramente exaltado.
Não houve resposta.
- Estou com a arma na cabeça dela, então é melhor não me provocar.
O silêncio angustiante perdurou até que num movimento rápido e repentino, o velho abriu a porta, apontando a arma para fora, em várias direções, pronto para atirar sem pensar duas vezes em qualquer alvo móvel que entrasse em sua linha de visão.
Não havia ninguém. A alguns metros, apenas uma imagem de anjo que há muito estava ali.

- Alarme falso. Talvez tenha sido o vento – concluiu ainda um tanto desconfiado, após checar bem as redondezas – Vamos continuar de onde paramos, sem perder mais tempo.
Arrastou-a de volta para dentro da capela e trancou novamente a porta.
O velho asqueroso parecia não querer mesmo perder mais tempo e assim que obrigou a detetive a se deitar, foi-se atirando por cima dela e começou a beijar seu pescoço, suas orelhas e lamber depravadamente o seu rosto. A jovem detetive desistiu de tentar conter o choro. Apertava com força os olhos e as lágrimas fluíam com vontade.
Então, recomeçaram as batidas.


Primeiro foram duas seqüenciais e mais nada. Agora eram intermitentes. Definitivamente não era o vento.

Seu Antônio se levantou, parecendo desta feita mais irado do que nunca.

- Não vá embora, boneca – falou, engatilhando a arma – eu volto já.

E partiu novamente rumo à porta.

O detetive Marcelo entrou no asilo saltando pelo portão, sem querer saber de anunciar-se. Sua condição de elemento surpresa certamente poderia ser útil se sua amiga estivesse em apuros. Arrombou, fazendo o mínimo de barulho possível, a porta dos fundos do recinto e assim que adentrou no local ouviu o grito e o tiro...
Embora suas condições não fossem das melhores, a preocupação com a segurança de seu parceiro era muito maior e a detetive Deise fez um grande esforço para se levantar. O som do tiro fez seu coração disparar e ela ficou apavorada com a possibilidade de inconscientemente ter atraído seu amigo para a morte.
“Talvez mais até do que um simples amigo”, era o que seu impiedoso coração só agora lhe dizia.
Seu Antônio entrou correndo de volta à capela, enquanto efetuava vários disparos contra alguém que estivesse do lado de fora. Quando a munição do 38 acabou, ele a atirou fora e apanhou a pistola na cintura, para continuar atirando. Deise o observava à distância. Sem qualquer noção do comprimento da sala, ele continuava recuando de costas e atirando a esmo para fora através da porta aberta. Acabou trombando com a parede próxima ao altar e foi quando algo inesperado aconteceu: embora o impacto não tivesse sido muito violento, uma grande imagem que se encontrava exatamente acima do ponto onde o homem dera o esbarrão despencou junto com a pilastra que a sustentava, atingindo em cheio a cabeça de Seu Antônio...


Quase que em seguida, o detetive Marcelo entrou na sala, de arma em punho. Vendo o corpo inerte do velho com a arma na mão caído no chão sobre uma grande poça de seu próprio sangue, constatou que sua arma não seria necessária. Sorriu ao avistar sua parceira viva, ainda que aparentando não estar se divertindo muito.



- Foi ótima a sua idéia de atrair a atenção dele, mas permanecer escondido – ela disse enquanto ele abria as algemas com as chaves que apanhara nas roupas do defunto.
- Do que é que você está falando? – ele indagou surpreso.
- Ora, não foi você quem bateu na porta para atraí-lo?
- Lamento desapontá-la, mas acabei de chegar. Ouvi os tiros e vim correndo, mas assim que entrei a situação já tinha encontrado o seu desfecho.
- Quer dizer que não era contra você que ele estava atirando?
- Certamente não. A menos que de tão preocupado, meu espectro tenha chegado primeiro que o meu corpo físico. Mas o que aconteceu aqui afinal, parceira? E como aquela santa fez tamanho estrago nos miolos dele?
- Eu não sei. Ela apenas caiu. Só sei que lhe devo a minha vida.
- Você e muita gente. Não a reconhece? É Santa Rita de Cássia; a santa das causas impossíveis.

  
 

Pouco importava se o pequeno pilar sobre o qual a imagem da santa repousava estava úmido e cheio de infiltrações. Escolhera para Cairo único e exato momento em que salvaria a vida da detetive Deise Martins, que seria absurdamente ingrata se não aceitasse a benevolente proteção da santa. Procurara pelas marcas de bala no corredor aonde Seu Antônio disparara várias vezes antes de morrer. Incrivelmente nada encontrou. Ali havia apenas a imagem imponente de um anjo guardião com uma espada no começo do corredor. E ela, Deise, já não tinha dúvidas de que verdadeiramente as imagens daquele asilo iam muito além do que Seu Antônio acreditara.


Foi fácil para a detetive reconhecer a filha de Seu Antônio no enterro do pai. De alguma forma, reconhecia e compartilhava muitos dos sentimentos dela. Após a cerimônia, Verônica se adiantou ao marido e se pôs diante do túmulo, introspectiva. Parecia triste, mas também aliviada.
A detetive Deise aproveitou para se aproximar.

- Olá, Verônica. Como está?
- Detetive Deise?
- Isso mesmo – disse-lhe, estendendo a mão.
Verônica retribuiu a saudação.
- Soube que ele tentou atacá-la.
- Sim; mas antes disso me contou sobre você, pois achou que me mataria assim como ao padre.
Verônica levou as mãos ao rosto e começou a chorar. A detetive acariciou-lhe ternamente os cabelos.
- Se precisar de ajuda, terei prazer em recomendar alguns amigos meus.
A moça simplesmente se recompôs. Certamente teria forças para em breve superar tudo aquilo.
- Obrigada.
Despediu-se e caminhou de volta para os braços do marido. Sem dúvida era de quem ela mais precisava naquele momento.



  

Intimamente sentia-se radiante. Acabara de derrotar indiscutivelmente seu pretenso desafiante mais uma vez na sinuca. No entanto, dera também a ele motivos para celebrar. Aceitara seu pedido de namoro, feito algumas horas antes. Menos de uma semana depois, já plenamente certos de que sempre haviam se amado desde o dia em que se conheceram, ficaram noivos. Deise solicitou e conseguiu permissão dos diretores da casa de repouso para que pudessem se casar naquela capela. Ela mesma fez questão de participar dos arranjos da igreja e dispôs um lugar para cada uma das imagens.





Sua carreira também parecia seguir para um caminho promissor. Foi convidada a assumir a chefatura de polícia da cidade. Sentiu-se como alguém a realizar gradativamente todos os seus grandes sonhos. No entanto, logo percebeu que para prosseguir naquele cargo teria que fazer vistas grossas para toda a grande podridão que infestava a cidade.
Passou então a esperar ansiosamente por uma visita noturna e quando ela veio, a detetive Deise abandonou a polícia esperando que fosse o bastante...





XVI - PRISCILA




DIÁRIO NACIONAL

Cerca de oitenta anos após assombrar o mundo com a descoberta de um poderoso combustível capaz de gerar a potência necessária para deslocar um corpo à velocidade da luz, iniciando um novo ciclo de desbravamento espacial para além do sistema solar, já não por passivos telescópios, mas através de precisas sondas espaciais, a ciência espacial humana, em recompensa aos seus incansáveis esforços, pôde enfim colher seu maior fruto que figura, talvez equiparado apenas à invenção da escrita, como o maior prodígio da raça humana. Foi divulgado nesta semana pela revista científica americana “THE WORLD”, a mais importante do mundo no gênero, a descoberta pela NASA de um complexo e esplendoroso sistema solar muito parecido com o nosso, dentro da própria Via Láctea, acerca de 28 anos-luz de distância, apresentando vários planetas inclusive mais convidativos do que os nossos vizinhos. Certamente, mesmo na época da descoberta do “supercombustível”, tal distância pareceria quase intransponível a uma expedição tripulada, já que mesmo a tamanha velocidade, (300 000 km/s, que corresponde à velocidade da luz), seriam gastos mais de ¼ de século apenas para cumprir o percurso de ida, o que levaria uma pessoa com uma excepcional expectativa de 100 anos de vida a gastar metade dela dentro de uma nave, caso tencionasse voltar à Terra. Levando-se em conta que a expectativa de vida normal decai em uns trinta anos, teria realmente o impávido viajante de abrir mão de inúmeros privilégios de uma vida tradicionalmente terrestre, a menos que fosse possível construir uma fantástica espaçonave capaz de reproduzir todas as melhores condições de sobrevivência de um planeta.
Tudo isso faria desse novo sistema solar, sem dúvida, uma grande descoberta, mas não de proporções tão singulares quanto dissertamos ao iniciar esta matéria, já que deve haver outros bilhões de bilhões de sistemas solares como este, que poderão quiçá ser descobertos e também até visitados futuramente no caso de alguns. O que faz deste sistema solar então algo tão importante para o futuro do homem?
A resposta é tão simples quanto imponderável: pelo menos dois dos cinco planetas que compõem o complexo oferecem condições favoráveis não apenas à visitação, mas como também de sobrevivência do homem. Dos três restantes, outros dois talvez também ofereçam condições, embora em seus casos seja preciso uma análise ainda mais minuciosa. O que torna possível a composição maravilhosa destes planetas é a presença em suas atmosferas de um novo elemento que se soma aos 118 conhecidos da tabela periódica e que compõem absolutamente todas as coisas que existem. Batizado pelos astrofísicos de Spirit (Sp), tal elemento tem uma característica que o torna mais valioso do que qualquer outro dos elementos conhecidos aos seres vivos, até mesmo do que o vital Oxigênio. Também bastante presente na estrela que é o coração do sistema planetário, tem a incrível peculiaridade de impedir a degeneração da matéria orgânica. Além disso, é perfeitamente respirável, embora seja necessária à sobrevivência regular a presença de Oxigênio livre, ao menos num período inicial de adaptação. Possui também algumas propriedades de outros gases da atmosfera terrestre e pode tal como ela servir como um manto protetor para os planetas.
Em teoria, tudo isso significa que, um ser vivo, vivendo sob a influência desse gás, seria virtualmente imortal. Uma vez desenvolvido, deixaria simplesmente de envelhecer, além de se tornar imune aos efeitos letais de qualquer doença.
E os deslumbres e prováveis vantagens que estes novos mundos têm a oferecer ainda não terminaram: calcula-se que o mais convidativo dos planetas, batizado sugestivamente de “Tomorow”, ou “Amanhã”  possua um diâmetro aproximado de 125 000 km, dez vezes maior do que o da Terra, sendo quase tão grande quanto Júpiter, o maior planeta do nosso sistema solar. Tal descoberta deverá por certo causar um abalo de inigualáveis proporções no modo como passaremos a contemplar o futuro. Certamente, idéias sobre como se conduzir a essa tão cobiçada nova realidade já estão sendo concebidas e até postas em prática. Resta saber se alguém de nossos dias verá tal concretização ou se o privilégio caberá apenas à longínquas vindouras gerações.
A seguir daremos um panorama fornecendo dados a respeito desses fascinantes recantos celestes.


A ESTRELA – O coração do sistema

            Tal como o nosso, o novo sistema tem uma estrela como seu centro e corpo mais importante. Essa estrela possui muitas similaridades, mas também algumas discrepâncias com o nosso Sol. Batizada pelos astrônomos de “Priscila”, a estrela branca tipo A, de 3ª grandeza é, como o nosso Sol, uma estrela madura, provavelmente um pouco mais jovem, (cerca de sete ou oito bilhões de anos – lembrando que o nosso astro-rei possui cerca de dez bilhões de anos). O diâmetro da nova estrela é também cerca de sete vezes maior do que o do Sol, (7.000.000 km),
, mas ainda assim pode ser considerado normal comparado ao de algumas estrelas gigantes e supergigantes conhecidas, cujo diâmetro pode ultrapassar os três bilhões de quilômetros.
            A temperatura na superfície da estrela é de cerca de 9600°C, (+de seis vezes a do Sol). É composta essencialmente, como o Sol, de Hidrogênio (cerca de 89%). Nos outros 11% se faz presente quase que exclusivamente o misterioso gás “Spirit”, cujas alterações que eventualmente poderia ocasionar na estrutura da estrela ainda são uma incógnita, embora já se tenha sugerido que o combustível consumido no interior da estrela não resultaria em cinzas no seu núcleo, (que é o que conduz todas as estrelas, numa linha de tempo astronômica, a inevitável extinção). Neste caso, teria surgido a primeira estrela imortal conhecida...
            Certamente haverá muito tempo para que se estude e se desbrave tais probabilidades caso o homem decida realmente se aventurar rumo ao sistema estelar fascinante de “Priscila”.
            Obviamente, a estrela não é parte única em seu sistema. Mais interessantes do que ela, para o homem, são, sem dúvida, os planetas que a circundam.

OS PLANETAS

            O primeiro deles, por motivos óbvios foi o último a ser descoberto: é o que está mais próximo à estrela, a apenas 800 milhões de quilômetros. Pode parecer muito, já que Mercúrio, o planeta mais próximo à estrela em nosso sistema está a apenas 58 milhões de quilômetros do Sol, mas deve-se levar em conta que “Priscila”  é mais de dez vezes maior do que o nosso Sol. Este planeta possui o modesto, (quase inexpressivo), diâmetro de 1000 km, (menos de 1/3 do de nossa Lua). Por seu reduzido tamanho foi chamado de Little II, já que Little 1 já havia sido descoberto pouco antes. Contudo, nem de longe chega a ser um planeta totalmente desinteressante, já que também possui atmosfera rica em gás Spirit, (cerca de 80%) e também contém razoável quantidade de Oxigênio, (± 10%). A temperatura, de 43ºC, é perfeitamente suportável, ainda que não tão aprazível quanto à de alguns de seus outros “irmãos”, como veremos a seguir.

            O segundo e último “anão” dessa família predominantemente de gigantes foi oportunamente batizado de Little e posteriormente de Little I, após a descoberta de seu irmão menor. Com um diâmetro de 14.000km, Little um é, na verdade, pouco maior do que a Terra. Sua maior e mais frustrante particularidade é a de que ele não possui atmosfera e conseqüentemente não foi detectada pelas sondas espaciais qualquer presença do elemento Spirit em sua superfície. Esta ausência se reflete drasticamente em sua temperatura, que oscila entre 140ºC durante a noite a até 1000ºC durante o dia. É, sem sombra de dúvida, o menos convidativo dos planetas desse sistema para uma excursão humana.

            Os membros gigantes do Sistema “Prisciliano” são compostos por três planetas de proporções realmente descomunais. Future, o menor dos três, é um astro circular com um fantástico diâmetro que totaliza 110.000km, em comparação com o nosso Sistema Solar perdendo apenas para Saturno e Júpiter. Também da mesma forma que estes, Future é essencialmente gasoso. Estima-se que no caso de conter um núcleo sólido, o mesmo não deve ultrapassar uns 5.000km de diâmetro. Tudo o mais que compõe e circunda o planeta é uma mistura de gases e poeira cósmica. A presença do gás Spirit é também preponderante, (cerca de 55% da totalidade). E justamente isso, de alguma forma influencia todos os demais componentes atmosféricos tornando a pressão gravitacional do planeta fenomenalmente baixa, mesmo com essa estupenda quantidade de gases envolvendo o núcleo. Tão baixa que, ao que parece, qualquer corpo capaz de gerar um impulso independente e controlado poderia literalmente flutuar livremente por sobre os milhões de quilômetros acima da superfície do planeta, como um verdadeiro “super-homem”. Tal peculiaridade do gás Spirit  parece aplicar-se exclusivamente neste planeta, já que nos demais não foi encontrada qualquer evidência de que isso ocorra. A temperatura futurianatambém é bastante convidativa aos nossos padrões, aproximando-se dos 30ºC. Um dos problemas teoricamente seria a dificuldade de controlar os movimentos numa atmosfera tão tênue, mas isso poderia ser resolvido valendo-se de mecanismos propulsores. Em outras palavras, ninguém mais precisaria se locomover por veículos automotores ou aviões; todos voariam por si mesmos valendo-se de pequenas máquinas de propulsão.
            Um problema um pouco mais grave no tocante a um processo de colonização se dá pela pequena área sólida do planeta. Menos da metade do espaço da Terra e pouco maior do que nossa Lua. Um lugar absolutamente difícil de se conter uma explosão demográfica.
            A resposta para este dilema se apresenta nitidamente no penúltimo planeta do sistema estelar de Priscila; o nome escolhido foi Tomorrow, o “amanhã” e certamente não por acaso, pois é para ele como a nenhum outro que a humanidade já projeta o seu futuro.


O PARAÍSO ESPACIAL CHAMADO “TOMORROW

            Tomorrow tem um diâmetro dez vezes maior do que o da Terra e seu volume seria capaz de abrigar 770 exemplares de nosso planeta. Excetuando-se o tamanho, todas as demais condições de sobrevivência são espantosamente similares entre os dois planetas, (temperatura, boa presença de Oxigênio livre e água potável, etc.). Some-se a tudo isso o acréscimo em 25% do fantástico gás Spirit, um autêntico “elixir da longa vida”, na atmosfera do planeta e o homem terá finalmente diante de si a grande probabilidade de concretização de seu eterno sonho de viver para sempre. A agradabilíssima temperatura repousa nos constantes 22º e claro que jamais faria alguém morrer de calor ou frio. A água faz seu ciclo de forma idêntica ao que ocorre em nosso planeta e embora os mares não ocupem tanto espaço quanto o fazem por aqui, mesmo assim, a quantidade de água em Tomorrow ainda supera em mais de trezentas vezes a da Terra.
            É certo que os dados quase precisos sobre a distância a ser percorrida para se chegar até lá de fato impressionam, (duzentos e cinqüenta e cinco trilhões, oitocentos e cinqüenta e três bilhões e oitocentos mil quilômetros), mas é bem provável que valha a pena, pois uma vez lá, ter-se-ia literalmente a vida inteira pela frente.

            O último dos planetas do novo sistema estelar é quase tão grande quanto o nosso Sol e bilhões de bilhões de vezes mais denso e pesado. Seu impressionante diâmetro atinge a colossal marca de 900.000km, cerca de 75 vezes maior do que o da Terra e faria certamente o gigante Júpiter, com seus incríveis 141.930km de diâmetro parecer um micróbio. O nome escolhido para esse imensurável mundo pode soar extremamente pretensioso para alguns, mas é absolutamente propício para outros: “God’s Throne” – o trono de Deus. Teria a humanidade descoberto nos céus a morada de seu criador?
            Tão grandiosos quanto seu abissal tamanho são os mistérios que o cercam. Em primeiro lugar, God’s Throne possui uma atmosfera composta quase que exclusivamente pelo gás Spirit, (mais de 99%), contendo apenas 0,02% de Oxigênio. Ainda assim é possível que o ser humano consiga habituar-se no caso de uma eventual transferência para o planeta, desde que tenha feito “estágio” nos seus vizinhos com mais Oxigênio para se adaptar ao novo gás. A temperatura é baixa, entre cinco e 0ºC, mas nada assustador aos nossos padrões. O mais impressionante é que toda essa gigantesca esfera é totalmente sólida, diferentemente dos comuns planetas gigantes gasosos que conhecemos. Felizmente, este Golias sideral transita numa distância de 50.000.000.000, (isto mesmo, cinqüenta bilhões), de quilômetros de sua estrela-mãe, o que lhe impede, mesmo com todo o seu tamanho, de perturbar as órbitas de seus ‘irmãos’ menores.




O SISTEMA PLANETÁRIO DE PRISCILA

ESTRELA

NOME
DISTÂNCIA DA TERRA
DIÂMETRO EQUATORIAL
ESCALA DAS IDADES
TEMPERATURA DA SUPERFÍCIE
TEMPERATURA DO NÚCLEO
COMPOSIÇÃO PRINCIPAL
PRISCILA
28 ANOS-LUZ
7.000.000 de quilômetros
Branca tipo A
9600ºC
±65.000.000ºC
Hidrogênio (89%);
Spirit (10%)



PLANETAS 

NOME
1- God’s Throne
DIÂMETRO
900.000km
ATMOSFERA
99%Spirit;
0,02%Oxigênio
TEMPERATURA CONSTANTE
0ºC
DISTÂNCIA MÉDIA DA ESTRELA
50.000.000.000 de km


NOME
2- Future
DIÂMETRO
110.000km (diâmetro total – núcleo + atmosfera)
DIÂMETRO EQUATORIAL PROVÁVEL DO NÚCLEO
± 20.000km
ATMOSFERA
40% Spirit, 40% Oxigênio, 20% outros gases
TEMPERATURA
29ºC
PARTICULARIDADE
Gravidade extremamente tênue permitindo que os corpos se locomovam livres pela atmosfera
DISTÂNCIA DA ESTRELA
5.000.000.000 de km



NOME
3- Tomorrow
DIÂMETRO EQUATORIAL
125.000km
NATUREZA
sólido
ATMOSFERA
Similar a da Terra + 25% do novo gás
TEMPERATURA CONSTANTE
22ºC
DISTÂNCIA DA ESTRELA
9.200.800.000 de km
DISTÂNCIA DA TERRA
± 255.853.600.800.000 de km



NOME
4- Little I
DIÂMETRO
144.000km
NATUREZA
Sólido
ATMOSFERA
Não possui
TEMPERATURA DA SUPERFÍCIE
140ºC(noite); 700ºC(dia)
DISTÂNCIA DA ESTRELA
998.000.000 de km


NOME
5- Little II
DIÂMETRO
1000km
NATUREZA
Sólido
ATMOSFERA
80% Spirit, 10% Oxigênio, 5% Hidrogênio, 5% outros
TEMPERATURA CONSTANTE
±45ºC
DISTÂNCIA DA ESTRELA
800.000.000 de km






Ainda pouca coisa sabemos sobre a magnitude de tal descoberta, menos ainda aqueles que não são astrônomos servidos pela mais alta tecnologia, mas ainda assim, quase podemos afirmar que esta é sem dúvida uma forte e evidente indicação de que muito em breve, grande parte do espaço deverá estar sendo colonizado pela raça humana.

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DIÁRIO NACIONAL









EDIÇÃO ESPECIAL



Saiba o que é a


R.T.O.


 








INTRODUÇÃO



Após a realização da mais importante reunião do Conselho Mundial de países em todos os tempos, medidas surpreendentes e de certa forma preocupantes foram discutidas e sancionadas traçando os futuros rumos que o amanhã reserva para os seres humanos. Há um ano, a descoberta de um planeta desabitado, mas que oferece plenas condições de sobrevivência, além de ser várias vezes maior do que a Terra, despertou no espírito do homem sensações sem precedentes devido principalmente à possibilidade de chegando lá poder viver para sempre. Muitas polêmicas começaram a surgir; algumas ganharam esclarecimento na reunião do Conselho, outras permanecem cintilando nas mentes de muitos, já que o assunto envolve os interesses de cada ser vivo na Terra. Talvez a maior dessas polêmicas seja a acusação de que os EUA, em confabulo com outra, (ou outras), grande potência, já tenha enviado, ou esteja prestes a enviar uma expedição colonizadora ao planeta “Amanhã”, sem o conhecimento e a autorização do Conselho. Os americanos, assim como as demais potências, foram categóricos ao negar terem tomado qualquer iniciativa no sentido de remeter qualquer tecnologia que não meramente de pesquisa e não tripulada ao planeta Amanhã, ou a qualquer outro pertencente ao sistema da estrela Priscila. No entanto, tal afirmativa vem sendo altamente desacreditada, principalmente por seus tradicionais inimigos do oriente, sem que, todavia, qualquer prova concreta contra eles tenha sido apresentada.
Nesta edição especial, o “Diário Nacional” apresenta aos seus leitores os principais tópicos aprovados pelo Conselho Mundial da ONU. Cremos que cada criatura viva com interesses e apreço por seu futuro merece, em inextirpável direito, total acesso a estas informações.

O editor


CAPÍTULO UM – O CONSELHO MUNDIAL


     Composto por líderes e representantes de 193 países, o Conselho Mundial da ONU (Organização das Nações Unidas), teve há poucos dias a mais importante reunião de sua história, onde todas as pautas se direcionaram a um senso comum: o futuro dos aproximados 6,5 bilhões de humanos que povoam a Terra.
            Ainda que muitos afirmem não se sentirem vislumbrados pela possibilidade de recomeçar a vida literalmente em um novo mundo, certamente qualquer ser humano na face da Terra terá sua vida direta ou indiretamente afetada pelas decisões tomadas por esse supremo Conselho.
            Era de se esperar que estando a humanidade preparada ou não, o “amanhã” viria. Cabe a cada um, e rapidamente, agora ponderar sobre como se enquadrará neste novo alvorecer. Grandes “dicas”, (pra não dizer “sentenças”), já foram pré-estabelecidas pelo Conselho. Eles a chamam de “passos” e são, na verdade, requisitos necessários, se não indispensáveis a uma colonização segura e pré-sustentada do novo universo. Deixaram claro também que novos “passos” poderão eventualmente surgir no decorrer das necessidades. É certo que já mesmo estes, (alguns mais, outros menos), conseguem polemizar e dividir radicalmente opiniões por todo o mundo.
            Antes de falarmos mais detalhadamente dos “passos” em si, vejamos como se pretende por em prática este audacioso projeto.







CAPÍTULO DOIS – AS EXPEDIÇÕES   


            Já frisamos que os dispêndios de se enviar uma expedição tripulada ao planeta Tomorrow, mesmo se valendo dos novíssimos supermotores capazes de atingirem a velocidade da luz, seriam enormes. Além disso, com nossa atual tecnologia não há a menor possibilidade de se estabelecer qualquer tipo de contato com um planeta a uma distância tão longínqua. As únicas ondas de rádio que nos chegam com regular precisão provêm obviamente da gigantesca estrela Priscila, coração do sistema, e certamente também está muito além de nossa capacidade tecnológica reproduzir semelhante forma de propulsão de energia. Assim, ao menos por enquanto, caso uma nave tripulada pousasse sobre a superfície do planeta Tomorrow, tudo o que poderíamos fazer seria monitorar seu sistema, (e isso até um certo tempo), não dispondo de qualquer outra forma de comunicação direta. Como dificilmente tais astronautas cativariam algum desejo de se aventurarem na longa viagem de regresso à Terra, jamais chegariam também ao nosso planeta notícias de suas impressões. Uma possível solução para este problema talvez fosse a instalação de diversas bases pelo decorrer do percurso, o que encurtaria a distância às informações a serem transmitidas, mas isto também teria altos custos e demandaria um tempo muito maior do que o que a humanidade parece estar disposta a esperar para chegar ao novo mundo. Está mais do que claro que ninguém quer preparar este “admirável mundo novo”, parafraseando Huxley, para as futuras gerações. Todos querem estar lá o mais rápido possível, porque cada minuto a mais longe da milagrosa atmosfera do planeta “Amanhã” pode representar uma diferença mortal no sonho dos que querem viver eternamente.
            Foi absolutamente dentro desta visão que o Grande Conselho optou por, em vez de desperdiçar preciosos custos e esforços enviando pequenas expedições pré-colonizadoras, exigir que todos concentrem a mais maciça e total dedicação no maior processo cooperativista de todos os tempos: o mundo inteiro empenhar-se-á na construção de uma grande e única espaçonave capaz de transportar com absoluta segurança e conforto toda a população terrestre. Pelo menos aos que couber o merecimento e justamente para esta definição foi criada uma “cartilha” com diretrizes julgadas e aprovadas pelo próprio Conselho a qual resumidamente transcreveremos no próximo capítulo. Vejamos primeiro um prognóstico hipotético sobre a construção da tal nave segundo um parecer dos próprios cientistas representantes do Conselho.
            Em sua viagem inicial, a super-espaçonave ainda não batizada deverá transportar pelo menos a quantidade absurda de cem milhões de pessoas. Ainda que composta verticalmente dividindo-se em andares, deverá ter pelo menos vinte quilômetros de extensão, sendo preferencialmente ideal que tenha de trinta a cinqüenta quilômetros, podendo ultrapassar o peso de 1.000.000.000 de toneladas. Certamente, a primeira das dificuldades será fazer algo tão pesado e imenso atingir já de início a impressionante velocidade de 11 km por segundo, velocidade de escape da Terra, (velocidade necessária para se superar a força da gravidade do planeta). Todavia, a resolução deste e dos demais problemas de ordem técnica caberá aos físicos, engenheiros, cientistas, mecânicos e todos os gabaritados profissionais envolvidos diretamente na concepção e construção da nave. Aos leigos caberão outros esforços e também aceitarem os diversos sacrifícios que tudo isso acarretará.
            A previsão, (otimista, diga-se de passagem), é de que se leve de dez a vinte anos para a nave estar concluída. Caso os principais responsáveis permanecessem aqui após o término do projeto, certamente, em função da experiência adquirida, este tempo provavelmente cairia pela metade em se partindo para a construção de uma nova nave. Infelizmente é quase que certo que estes gênios da tecnologia certamente quererão estar incluídos já na primeira leva de viajantes. Isto quer dizer que além dos cem milhões que partirem, poucos dos que atualmente já nasceram serão privilegiados a conhecerem o novo planeta.
            Por isso e por outras coisas mais é que neste imponderável e inflexível processo de seleção repousam os problemas mais difíceis de serem contornados pelos que anseiam partirem para este novo mundo.
            Para tentar definir isso da melhor forma possível foi montada uma verdadeira operação: a R.T.O..

CAPÍTULO TRÊS
R.T.O. – ROUTE TOMORROW OPERATION


1º PASSO
“PROPORCIONALMENTE AO SEU TAMANHO, O NOVO PLANETA SERÁ DIVIDIDO SIMILARMENTE À TERRA”

            A princípio não serão questionadas se melhores condições são oferecidas por determinadas regiões em detrimento de outras, a mesmo que tal dissonância atue de forma gritante para elevar excessivamente o padrão de determinado país, ou países, simultaneamente prejudicando em similar proporção o padrão de outro(s).
            Por razões de etimologia histórico-religiosa, as divisões entre oriente e ocidente pertinazes aqui em nosso mundo deverão perdurar também no planeta Tomorrow. Passado um período de instalação e adaptação, as mudanças e melhores distribuições que se fizerem necessárias deverão ser sancionadas por este próprio conselho.

2º PASSO
“AO SUPREMO CONSELHO MUNDIAL CABERÁ O STATUS DE AUTORIDADE-MOR NO NOVO PLANETA”

            Cada país indicará seu representante no Conselho, que desfrutará de autoridade idêntica a dos demais. Todas as decisões serão firmadas sempre após votação, levando-se em conta à vontade da maioria. A nação que descumprir tal diretriz poderá ser sumariamente extirpada do conselho, podendo inclusive ser dissolvida pela força conjunta dos demais membros, ou mesmo expulsa do novo planeta.

3º PASSO
“NINGUÉM ESTARÁ AUTORIZADO A GERAR FILHOS ANTES QUE O 1º SENSO NO NOVO MUNDO SEJA CONCLUÍDO”

            Para uma perfeita organização de uma nova sociedade é elementar que o Conselho possua absoluto conhecimento e controle dos membros que irão compor essa população e para isso, antes de acolher a inclusão de membros novos recém-nascidos é preciso um registro geral e organizado de todos os já existentes. Desde já frisamos que o descumprimento de qualquer uma destas normas regidas sujeitará o infrator a penas severas e irrevogáveis.

Nota editorial: os três primeiros passos tratam de doutrinas coletivas ou gerais. É uma espécie de pré-constituição que visa apenas dar os primários passos na organização social do novo planeta. A seguir, o fator chave para a concretização desta sociedade: os requisitos exigidos a cada ser humano para ser aceito como membro. Eis o perfil dos “tomorrianos”.


CAPÍTULO QUATRO


4º PASSO: DIRETRIZES PARA O ENQUADRAMENTO NO PROJETO”


            Visando livrar a espécie humana nesta nova ‘gênese’ de problemas cruciais que neste mundo primitivo foram e são sempre determinantes para contribuírem com o sofrimento, a infelicidade e a falta de harmonia da espécie, este Conselho adota medidas radicais que poderão ser vistas a princípio como excessivamente drásticas por alguns, mas que futuramente deverão ter reconhecidos os bons frutos de tamanho sacrifício. Embora o planeta Tomorrow possa comportar tranquilamente uma população mais de 100 vezes maior do que a da Terra, (+ de 600.000.000.000 de habitantes), nem todos os que estão aqui terão permissão para seguirem rumo ao novo planeta. Alguns não irão simplesmente por exceder-se a capacidade máxima da espaçonave, mas talvez tenham outra chance em uma outra viagem que já é estudada, todavia, a outros é vetado mesmo sonhar com tal possibilidade, pois não lhes caberá nenhuma.
            O Supremo Conselho Mundial assume total responsabilidade pelas medidas estabelecidas. Penosas, por um certo ponto de vista, todas elas visam única e exclusivamente o cumprimento dos maiores sonhos de nossa espécie que são a perpetuidade e a expansão pelo universo. Que os que ficarem na Terra compreendam e também abracem a nossa causa, afinal, também eles poderão construir um mundo novo e muito melhor aqui mesmo neste planeta e até, quem sabe um dia, encontrarem um espaço tão bom ou melhor do que esse nos bilhões de trilhões de galáxias que existem.
            Deus nos arremessou para longe do Éden, mas, por nós mesmos, nós redescobrimos o caminho e estamos prontos para recuperarmos a vida eterna que nos foi tirada.






CAPÍTULO CINCO


            Ficam de antemão excluídos de serem selecionados para seguirem ao planeta Tomorrow:

1- ativistas adeptos ou simpatizantes de regime não democrático;
2- qualquer líder, monarca ou governista de idéias ditatoriais ou retrógradas;
3- qualquer criminoso de guerra pelas normas da Convenção de Genebra;
4- qualquer suspeito ou condenado ainda não quite com a justiça até a data prevista do embarque espacial;
5- qualquer fanático incapaz de prestar juramento de obediência às normas do Conselho por convicções pessoas impertinentes;
6- qualquer portador de doença considerada incurável ou de difícil tratamento sobre a qual paira qualquer nebulosidade nos conhecimentos da medicina moderna. Também o portador de doença congênita que o coloque à margem de uma sociedade ativa e vigorosamente saudável. Ainda os que carreguem nos genes traços das referidas doenças mesmo não as tendo desenvolvido diretamente;
7- qualquer pessoa com mais de 45 anos;
8- qualquer pessoa com QI abaixo de 110.



            Por fim, cada um dos selecionados deverá contribuir com a quantia de 200.000 U$ (duzentos mil dólares) que serão empregados nos custos para a construção da super-espaçonave.







CAPÍTULO SEIS
DISPOSIÇÕES FINAIS



            Conhecidas as exigências, os que preencherem os requisitos deverão se cadastrar e aguardar a lista de convocação após uma minuciosa seleção dos mais gabaritados dentre os diversos aspectos que serão analisados por representantes nomeados pelo Conselho e por fim, pelo processo de sorteio. Os que simplesmente excederem a capacidade da nave serão incluídos em listas de espera para futuras viagens.
            Deixa-se claro que aos admitidos será expressamente proibido:

·         Pleitear por parentes, amigos ou qualquer um que não se enquadre no padrão de seleção;
·         Transportar sobrecarga de peso além do que será rigorosamente pré-determinado, o que poderia prejudicar o bom funcionamento da espaçonave;
·         Conceber filhos dentro da nave durante todo o decorrer do percurso, o que da mesma forma poderia conduzir o veículo a uma danosa superlotação;
·         Cometer qualquer crime, insubordinação ou desvio de conduta durante a viagem;
·         Encabeçar ou mesmo apenas participar de qualquer manifestação contrária as determinações expressas pelo Conselho.

Os que violarem qualquer uma destas normas antes do embarque serão imediatamente expugnados da lista de selecionados; os que violarem as normas após o embarque serão julgados e se condenados poderão ser punidos com a morte por lançamento no vácuo espacial.


Assim determinou o SUPREMO CONSELHO MUNDIAL da ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS



FIM



NOTA EDITORIAL FINAL


A proposta desta edição especial do DIÁRIO NACIONAL foi de relatar com imparcialidade as radicais mudanças que se avizinham no futuro de todos em nosso planeta. Ressaltamos que em nenhum momento intencionamos influenciar opiniões, mas sim garantir a todos o direito inquebrantável de ter acesso à informação. Confiamos plenamente que nossos leitores são perfeitamente capazes de analisarem e concluírem por si mesmos o que é válido e o que é prejudicial ao mundo em que vivem, ou viverão.
















Quinze anos depois...


DIÁRIO NACIONAL

            Alguns anos antes do limite de data previsto, foi anunciado pelos cientistas do Supremo Conselho Mundial que a primeira “super-espaçonave”, batizada de “Vitória I” teve sua produção concluída. Com capacidade para oferecer conforto e segurança no espaço sideral para até 800.000.000 de pessoas por pelo menos cinqüenta anos, é sem dúvida o maior e mais inacreditável empreendimento da história da humanidade. Tendo um custo estimado de dois quatrilhões de dólares (2.000.000.000.000.000 U$), a nave pode certamente ser considerada como um mini-planeta artificial. Contém praticamente tudo o que um ser humano precisa para dispor de uma vida, no mínimo, perfeitamente tolerável. Todas as necessidades básicas e intermediariamente básicas de todos os tripulantes poderão ser largamente supridas graças ao avançado investimento humano e tecnológico que foi empregado na construção da nave Vitória I. A previsão é de que ela pouse no solo do planeta Tomorrow daqui a vinte e sete anos, duzentos e quatorze dias, dezessete horas e três minutos. Talvez, cerca de um ou dois anos antes disso o milagroso gás Spirit, bastante presente em quase todo o sistema estelar já possa estar exercendo seus efeitos sobre os passageiros da nave, inclusive o mais importante deles: a neutralização do processo de degeneração celular.
            Estima-se que para esta primeira viagem cerca de três bilhões e meio de pessoas se inscreveram em todo o mundo. Infelizmente, destes, apenas cerca de um bilhão e duzentos milhões cumprem os critérios exigidos no processo de recrutamento. Destes ainda, cerca de vinte milhões desertaram alegando motivos pessoais, que na absoluta maioria das vezes se refere à exclusão de algum ente querido. Comportando a nave 800 milhões passageiros, torna-se fato que da primeira leva de inscritos deferidos, apenas 380 milhões ficarão excluídos por excesso de lotação. Especula-se que para estes, uma nova nave Vitória já teve seu processo de construção iniciado com total autorização do Supremo Conselho. Com a experiência adquirida espera-se que o novo projeto leve menos da metade do tempo para estar concluído.
            Isto sem dúvida deve representar uma grande esperança aos que não couberem na primeira lista de embarque.


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DIÁRIO NACIONAL

            Hoje, eu, há 20 anos editor e redator deste Diário, um dos mais importantes do nosso país e que acompanhou bem de perto os acontecimentos que mudaram a história da humanidade desde a divulgação do descobrimento da grande estrela ‘Priscila’ e seus planetas habitáveis, venho uma última vez a exercer minha função profissional amada e abraçada com afinco no decorrer de todos estes anos. Amanhã pela manhã a grande espaçonave Vitória I parte rumo ao novo mundo e a mim, este humilde editor e redator, coube a graça de estar entre os inscritos que superaram o rígido processo de seleção e terminaram aptos para seguirem viagem com a Vitória I.
            Vim, embora certamente não mais precisasse, para agradecer aos que sempre me acompanharam, aos quais sempre procurei retribuir tal fidelidade com o mais absoluto e dedicado empenho dentro das minhas funções. Mas, vim principalmente para tentar, dentro das humildes limitações da minha razão, justificar o que ainda agora, às portas da grande expedição espacial da humanidade parece injustificável: ‘por que muitos têm de ficar e somente alguns têm de ir?’
         Considerada sob um frio olhar científico, é certo que tal pergunta poderá ser facilmente respondida. Mas como ser tão frio diante do destino de cinco bilhões e meio de semelhantes? Disseram que nós, os oitocentos milhões de separados, somos como uma experiência e que jamais haverá evolução sem experiências. Há até bastante lógica em tal ponderação, mas que se perde totalmente quando se sabe que apenas a própria experiência sentirá os benefícios da ação em vez dos experimentadores. Porque se o que está para ser feito é pelo bem da humanidade, como explicar que apenas dez por cento dela será beneficiado? Não seria mais fácil crer que os que ficam, (não os que partem), é que estão sendo vistos como mero experimento em prol da minoria?
            Ainda assim e com tudo isso, quantas famílias não se despedaçaram sob a pressão desta insana seleção? Quantas sinceras e longas amizades não se apartaram para sempre e quantos amores não se converteram em ódio mortal por conta de um prestígio tão arbitrariamente herdado apenas por alguns?
            Não há qualquer justificativa aos que partem, mas também não há aos que ficam argumentos plausíveis para condená-los apenas por não poderem estar no lugar deles. A maioria absoluta das religiões diz que o homem nasceu para viver para sempre e logicamente ele nunca se separou deste desejo.

            Desejo profunda e sinceramente que cada um encontre o seu melhor caminho. Adeus a todos.

O editor









  
Uma
Semana
Depois






DIÁRIO NACIONAL




            Saudações a todos.
            Após a conturbada semana que sucedeu a partida da super-espaçonave Vitória I, levando 800.000.000 de pessoas rumo à primeira tentativa humana de colonização espacial, conseguimos com alguma dificuldade devolver à circulação o Diário Nacional, noticiário de confiança da maioria da população de nosso país. Muitos vão estranhar que este redator, que há uma semana veio a público se despedir, ainda esteja neste momento no exercício da sua função. Confesso que não foi mesmo uma decisão fácil, mas desisti de meu sonho de viver para sempre. Agora que tudo passou, creio que provavelmente tomei mesmo a melhor decisão. Não há e talvez nunca haja como ter certeza, mas neste momento não reconheço em mim qualquer traço de arrependimento. Por mais difícil que seja de acreditar, ouso dizer que até me sinto feliz por aquele a quem coube o direito de embarcar para suprir minha ausência. Não pretendo ser espelho para ninguém e nem creio que o simples ato de abdicar do próprio acesso à nave contenha qualquer ato de heroísmo. É, sobretudo uma decisão pessoal de cada um.
            Agora, embora muitos ainda prometam dedicar toda a vida no desmedido esforço de perseguirem o objetivo dos que partiram, parece-nos ser muito melhor acreditar que o “novo mundo” deve ser iniciado por nós aqui mesmo...











DOZE
ANOS
DEPOIS








DIÁRIO NACIONAL

            Partiu hoje, da central espacial da ONU, a segunda expedição tripulada rumo ao planeta Tomorrow. Lembrando que a primeira expedição aproxima-se de cumprir apenas metade do percurso, ainda que viajando com extrema regularidade dentro dos limites da velocidade da luz.
            De proporções menores do que sua antecessora, Vitória II transporta desta vez cerca de 350.000.000 de pessoas, sendo que alguns ainda deverão ter sua permanência avaliada pelo Supremo Conselho. Vale lembrar que o mesmo Conselho deixou claro que uma terceira expedição está absolutamente descartada pelo menos até que as duas primeiras estejam estabelecidas no planeta e seja desenvolvida alguma forma de manter contato com os que ficaram na Terra, o que pode levar bastante tampo. Isto fez surgir por todo o nosso mundo muitas facções rebeldes que sonham em agrupar uma força suficientemente grande para, nas próprias palavras deles, “invadir o planeta e suplantar o arrogante Conselho”.
            Outros querem apenas se esquecer da parte que lhes foi arrancada...










16 anos depois








DIÁRIO NACIONAL


            Há cerca de 30 anos o dia de hoje vem sendo esperado para se tornar o grande marco na história das conquistas da humanidade; certamente, o novo e mais expressivo dos divisores da ‘linha do tempo’.
            Por ironia, a confirmação de tal imensa expectativa acabou por se apresentar da forma mais nefasta possível.
            Tudo começou com a descoberta em nossa galáxia de um novo e singularíssimo sistema estelar, dentre todos os outros já conhecidos. Em torno de “Priscila”, a estrela-mãe, foi reconhecido um grupo de planetas, alguns aparentando condições mais do que favoráveis à colonização humana, entre elas a fascinante possibilidade do homem se tornar imortal. Após alguns anos de árduas pesquisas sobre a nova descoberta, o homem engendrou uma série de drásticas medidas para se lançar nesta fantástica corrida espacial, medidas que como nunca antes, dividiram nações interna e externamente, dispersaram famílias até mesmo lançando pai contra filho, irmão contra irmão... Tudo pareceu encontrar um desfecho imutável, ainda que não unanimemente justo, quando pouco mais de um bilhão de humanos embarcaram em viagem de mão única para este universo de maravilhas. Aos que ficaram aqui, muitos deveras ressentidos com os que partiram, coube esquecer o passado e o futuro outrora vislumbrado e valer-se de cada minuto do presente como se também vivesse eternamente.

            Hoje, vinte e oito anos após o embarque, Vitória I, a primeira das chamadas “super-espaçonaves”, pousou no solo do planeta Tomorrow, ou simplesmente Amanhã. Também hoje, após alguns anos de minha aposentadoria, retorno como convidado à redação deste Diário tão querido e tão presente em minha vida, para falar, certamente com alguma propriedade, sobre tal assunto, já que fui um dos poucos no mundo que abri mão do justo direito de estar lá.

            De forma que talvez jamais se possa explicar, nossos irmãos, já com os pés sobre o sonho da imortalidade, encontraram neste sonho sua própria ruína. Poucos instantes após se instalarem sobre a superfície do planeta, Priscila, a estrela central e alma do sistema, temperamentalmente resolveu contrariar de forma inacreditável todas as escalas conhecidas, ou em outras palavras, simplesmente enlouqueceu.
            Primeiro, deixou de ser uma estrela branca tipo A normal estável e passou deliberadamente a variar, inclusive retrocedendo às condições de estrela nova azul tipo B e O. E justamente nesta última condição, a estrela expandiu-se numa supernova implacável, devastando tudo o que pôde encontrar pelo caminho, a começar pelos fragilíssimos planetas que a acercavam. Embora mesmo “God’s Throne”, o maior deles fosse quase tão grande quanto o nosso Sol, também junto com os outros, foi desintegrado numa ínfima fração de segundo pelo poder devastador da explosão da estrela. Este mesmo fluxo descomunal de energia deve expandir-se ainda com razoável força por um raio de pelo menos dez anos-luz, o que significa que não há qualquer chance de Vitória II, a segunda nave expedicionária que partiu da Terra, mas ainda não havia chegado ao planeta escapar da rota mortal oriunda da estrela.
            Quanto a Priscila, ainda está lá, muito mais visível inclusive: tornou-se uma anômala supergigante vermelha, com um assombroso diâmetro de 2.500.000.000 de quilômetros, altamente exaurida e envelhecida pelo esforço na liberação de energia e talvez prestes a se tornar uma estrela anã branca e agonizar até a ‘morte’ daqui a alguns milhões de anos.
            Dificilmente os efeitos da explosão chegarão ao nosso sistema com força suficiente para provocar algum dano; no entanto, é possível que a enorme quantidade do misterioso e intrigante gás Spirit chegue um dia ao nosso planeta ou aos nossos vizinhos no Sistema Solar, atribuindo-lhes novas e imprevisíveis características.

            A questão com que devemos nos preocupar desde já é “o quão bem vinda será a chegada desse novo gás?” A esmagadora maioria de pessoas intelectuais e bem sucedidas dentre nós se foi nas duas fatídicas expedições colonizadoras extraterrestres o que, apesar de tudo, nivelou não apenas a condição da população humana na Terra, mas como também sua consciência coletiva.

            Estamos ou estaremos realmente prontos para encarar um novo sonho de imortalidade e auto-suficiência?







“Bem, amigos; foi demais essa idéia de reunirmo-nos para contar histórias apavorantes aqui neste cemitério e certamente precisaríamos combinar para repetirmos isso muitas outras vezes, mas enfim, acho que nos desligamos demais do horário. Não sei quanto a vocês, mas se eu me demorar mais para chegar em casa, logo terei uma nova história de terror para contar a meu próprio respeito.
Muito bem; mas antes de irmos embora, tem alguém aqui mesmo neste cemitério que eu quero que vocês conheçam...”

















XVII – O HÍBRIDO




Fora justamente de Ben a tal instigante idéia de se reunirem ao cair da noite em um cemitério para contar histórias arrepiantes que conheciam. Também fizera ele absoluta questão de ser o primeiro narrador, por estranha coincidência, falando sobre uma criatura perambulando nos sombrios corredores de um cemitério. A árvore sob a qual todos se sentaram também fora indicação de Ben. Mas, sem dúvida, o mais estranho e preocupante e que só agora, junto com uma certa dissimulação característica nos olhares de Ben, eles se davam conta, fora a inacreditável expansão das grossas raízes daquela árvore sem que nenhum dos aventureiros se apercebesse. Praticamente todo o solo do lugar estava tomado pelas raízes gigantescas que muito mais agora se assemelhavam a tentáculos.

- Tem alguma coisa errada aqui – murmurou Fábio para Vânia, que estava ao seu lado. Notava-se claramente uma preocupação crescente nas feições de todos; menos em Ben Hudson. Este, ainda que disfarçadamente, sorria.
Elizabeth foi a primeira a se levantar. Aquilo tomava um rumo mais sério do que qualquer um deles poderia ter concebido no início.

“quando um a um foram aceitando o aliciante convite de Ben”

            - Vou dar o fora daqui – foram as últimas palavras de Beth. Na verdade, nada mais a menina teve tempo de fazer ou dizer antes que um forte cipó descesse velozmente da árvore, se enrolasse com extrema agilidade em torno de seu pescoço e a projetasse para cima como uma marionete lançando-se num vôo violento.
            Keyla, a mais próxima dela, estando quase aos seus pés, fez o que a pobre Beth nem ao menos conseguiu: gritou.


            Todos tentavam se levantar, mas era tarde demais. As raízes definitivamente haviam adquirido vida e envolviam suas pernas, cinturas e braços, impedindo-os de se movimentarem. De trás deles, um pouco afastado, ouvia-se o tenebroso gargalhar do único que permanecia de pé e totalmente livre: Ben Hudson.

            - Não lhes contei o final da história, amigos? O morto agarrou os jovenzinhos e os manteve para sempre em sua companhia. Rárárárárá!



            Pedro tirou um canivete da cintura. Fora um bom escoteiro em sua infância. Tentou decepar as raízes que o prendiam, mas rapidamente seu punho foi envolvido e sofreu uma pressão descomunal que simplesmente mutilou sua mão, que voou longe, ainda segurando o canivete. Ele gritou com vontade e uma outra raiz entrou velozmente em sua boca, atravessando-lhe a garganta e saindo pela parte de trás da nuca.
            Todos gritavam desesperadamente, além de fazerem esforços sobre-humanos, mas vãos para tentarem se libertar.
            Fábio foi erguido pela cintura por um dos tentáculos e jogado no chão, ainda preso a ele, por diversas vezes. A cada impacto ouvia-se o estalar dos ossos se partindo, mas na segunda ou terceira pancada ele já cesso de gritar, certamente morto.

            - Ajude-nos, Ben! – gritou Rogério, já com uma raiz também a estrangulá-lo.
            - Não posso – sentenciou Ben prometi minha ajuda a ele primeiro.
            - E a troco de que você fez isso? – gritou para ele Paula, enquanto seu namorado Rogério também não resistia ao enforcamento e tombava morto.

            - Eu vou ser famoso, garota Ben respondeu com desdém – Desde a infância fui fascinado por histórias de horror e sempre as escrevi, embora, nunca, ninguém tenha dado a qualquer uma delas o merecido valor. Mas aqui neste mesmo cemitério encontrei a minha mais fascinante história. Eu o chamo de O Morto, mas, quando vivo, ele era um escritor também. Somos muito parecidos; tivemos os mesmos problemas de aceitação, mas infelizmente ele morreu de um ataque, sem que nenhuma de suas obras tivesse sido publicada. Seu coração, única companhia que tivera em toda sua vida além dos personagens que criara, o traiu em sua própria casa e ele acabou aqui, neste cemitério frívolo, absolutamente desconhecido, como o mais reles dos indigentes.

            Todavia, ele teve forças para não se conformar e se dedicou a provar que poderia viver e melhor sem o seu estúpido coração.
            Quando passei despretensiosamente pelas portas deste cemitério, senti, como nunca havia sentido, uma certeza de que aqui dentro se ocultava a maior história de minha vida. Aí mesmo, sob essa árvore, eu soube o que fazer.

            - Mas em que nos matar o tornará famoso? Paula perguntou, entre lágrimas.
            - Vocês tolos não perceberam, mas ele manipula nossas mentes. Tanto que expandiu suas raízes sob suas vistas sem que sequer notassem. Assim, quando ele estiver de volta neste plano, exercerá seu domínio sobre todas as mentes do mundo e obrigará a todos a respeitarem e admirarem os meus contos.
            - Ele o matará também, seu idiota – vociferou Hugo.

            Como um enorme braço de madeira, um grande galho desceu da árvore, apanhou Hugo pelo pescoço e ergueu-o. A ponta de uma raiz elevou-se e penetrou em sua barriga, perfurando-a. Ele deu seu último grito. Quando a raiz saiu à altura do peito, exibia o coração ainda pulsante do rapaz.

            - É assim mesmo – continuou Ben, contemplando a cena, indiferente – muitos têm que morrer para que se faça a justiça.
            Estava louco e não se apiedaria de qualquer um dos ex-colegas. Mas, mesmo que o fizesse, nada mais estaria ao seu alcance fazer por eles.
            Estela começou a gritar mais do que todos quando sentiu que a pressão que as raízes exerciam sobre o seu corpo começou a aumentar incontrolavelmente e a imobilizaram por completo. Próximo dali, as maléficas extensões da árvore removiam com facilidade a pesada tampa de uma das campas. Mais algumas raízes envolveram os tornozelos de Estela e ela foi arrastada violentamente pelo chão para dentro do túmulo. O tampão foi posto de volta e por alguns instantes todos ainda puderam ouvir os abafados gritos de desespero vindo de dentro daquela cova...

            Mauro, o próximo, também imobilizado, percebeu os finos filetes de raiz entrando em suas narinas, ouvidos e pelo canto de seus olhos que logo o fizeram chorar autênticas lágrimas de sangue. Sentia as micro-raízes descerem-lhe pela garganta e até correrem por sua cabeça. Todo seu corpo aparecia estar sendo corroído por dentro. Milhares de vasos enegrecidos saltaram às vistas em sua pele enquanto ele gritava no mais pleno estado de desespero. Quando ele tombou morto, os filetes já lhe saíam pelos poros e ele já se assemelhava mais a um monstro-planta do que a um ser humano...

            As irmãs Bruna e Cristina tiveram o seu final juntas, por capricho ou sadismo da criatura. Foram postas sentadas uma de costas para a outra e enroladas pela cintura e pela garganta. Lentamente a pressão foi aumentando até elas desfalecerem numa morte até certo ponto tranqüila...
            Vitor não teve a mesma sorte, tendo braços e pernas expandidos além dos limites da resistência humana, sendo então, brutalmente arrancados de seu corpo com ele ainda vivo...
            Vânia teve a vasta e bela cabeleira loira também arrancada de sua cabeça por um único e violentíssimo puxão. Depois, uma chicotada tão forte em suas costas praticamente a dividiu em duas partes...
            Uma imagem com cerca de um metro e meio de puro bronze foi erguida como se nada pesasse pelas raízes. O golpe sobre a cabeça de Saulo foi tão violento que parte das vísceras de seu cérebro se projetaram a até oito metros de distância...

            Realmente o cenário era aterrador. Um a um aqueles inocentes contadores de história iam sendo assassinados com impressionantes requintes de brutalidade. Restavam quatro pessoas e ao que tudo indicava, aquele horror só cessaria quando todos perecessem.

            Paula resolveu apelar abertamente a sua fé.

            - Oh Deus, isto é tão injusto e sem sentido! Por que concedes ao demônio o direito de rematar nossas vidas?

            O corpo de Paula foi erguido e levado para bem diante do tronco central da árvore maléfica. Lá, pela primeira vez, uma feição meio humana, meio monstruosa se revelou figurando-se na madeira.

            “MANHA CAAAAJA!” – urrou. Tinha um olhar aparvalhado, mas cheio de ódio e uma mandíbula ameaçadora repleta de presas afiadas.

            A cabeça de Paula foi forçada a entrar no orifício da boca do monstro que a mastigou com vontade, largando no chão o resto do corpo decapitado.

            - Finalmente meu mestre se revela – festejou Ben. Estava mesmo bastante excitado com aquela matança.
            - Já se perguntou para que mais essa coisa precisaria de você, Ben? – gritou para ele Rafael, o último homem sobrevivente, além do próprio Ben.
            Ben pareceu não compreender a insinuação. Tanto que, por um instante, seu olhar se tornou vago e estúpido.

            - Do que você está falando?
            - Tá na cara que ele precisava de sacrifícios humanos para ressurgir. E foi o que você lhe deu, contando com uma gratidão que não parece em absoluto ser típica da natureza de uma criatura tão rancorosa e vingativa.
            Ben enfureceu-se.
            - Cale a boca, seu maldito! Você é apenas um covarde desesperado diante da morte.
            - Só que eu sei que vou morrer, Ben. Já você crê mesmo que o monstro vai admitir dividir alguma glória quando dominar o mundo?

            Rafael foi apanhado como um boneco e cravado de costas nas lanças do portão de entrada do cemitério. Ficou lá pendurado como um espantalho, esvaindo-se em sangue e gritando inutilmente...

            Restavam duas jovens; Daniela e Keyla; e Ben Hudson, que recuperara toda sua soberba e convicção de que estava do lado dos vencedores.

            - Obrigado por me livrar das intrigas de nossos inimigos, mestre e sei que fará o mesmo com estas duas que faltam, mas antes peço que lhes conte que tudo o que fiz será mesmo digno de sua gratidão e recompensa.

            A árvore viva urrou cheia de ódio para seu pretenso servidor e logo as suas raízes envolveram também os pulsos e tornozelos de Ben, que pareceu ficar estupefato com o que acontecia.
            - Não pode ser! Eu fiz tudo o que você mandou!
            Dezenas de raízes começaram a chicoteá-lo por todos os lados, fazendo surgirem inúmeros talhos por sua pele. Logo seu corpo se tornou uma massa ensangüentada que não encontrara como os outros o rápido alívio da morte. Tudo o que fazia era gritar “não!” em meio à saraivada de golpes desferidos. Enfim, quando cessou de gritar, já morto, foi cravado ao lado de Rafael nas lanças do portão de entrada, compondo o macabro cenário, mas absolutamente ideal da fachada daquele ambiente.

            - Seremos as próximas – lamuriou-se Daniela para Keyla, chorando. Realmente só restavam as duas.
            - A não ser que aconteça alguma coisa – ponderou Keyla.
            - Que diabo você acha que pode acontecer ainda? – explodiu Daniela, chorando ainda mais – Estão todos mortos, não vê? Chegou a nossa vez.
            - Lembre-se dos contos, Dani. Nos contos sempre acontece alguma coisa...
            - Sim, acontecem; - a outra concordou como se estivesse conversando com a maior das idiotas – estupros, homicídios e toda a sorte de tragédias. É o que acontece e é o que também está reservado para nós aqui.

“Sim.”

“Era isso...”
            Numa velocidade incrível, Daniela foi conduzida pelas “raízes-tentáculo” até o pequeno e modesto banheiro que servia aos visitantes. Sua cabeça foi afundada na latrina enquanto ela se debatia em vão, buscando o precioso ar da superfície. Logo seus movimentos foram se tornando débeis até cessarem por completo e ela ser abandonada ali, de joelhos, com a cabeça mergulhada no vaso.

            “Adeus, Dani” – pensou a jovem e bela Keyla “Todos merecem o que têm” havia dito em seu conto.

            Imediatamente os tentáculos a agarraram.
            Ela procurou ao máximo se controlar.

            - Está furioso porque seu plano não deu certo, não é? – falou ao léu, mas absolutamente certa de estar sendo ouvida.

            - De nada lhe valeram os sacrifícios. Conseguiu retornar a este plano, mas não na forma humana que era o que você mais queria, certo?

            O monstro a conduziu vigorosamente para junto de si, como fizera com Paula e passou a fitá-la nos olhos. Não esperava que a petulante mulher retribuísse o olhar. E mais do que isso; ela parecia ter um trunfo na manga.

         - MANHA CAJA! – falou-lhe o monstro, num tom que soava quase como uma súplica.
            - Eu sei – ela sussurrou, procurando soar extremamente sensual – e em breve poderá ser “nossa casa”.

            Novas raízes vieram e começaram a acariciar todo o corpo da jovem, enquanto ela e o homem-árvore se mantinham rigidamente ‘olho-no-olho’. Lentamente os tentáculos começaram a despir as suas roupas e nua ela foi arrebatada até ficar colada ao tronco vibrante da árvore. O hálito daquele rosto no tronco era horrível, como o de um animal em avançado estado de decomposição, mas ela aceitou seu destino.

            Fechou os olhos e imediatamente sentiu-se penetrada por algo pronto para fecundá-la e que certamente a mataria se não lhe permitisse renascer...






FIM

Arquivemos os processos.
Não há evidências que comprovem estes crimes.
Já pode partir, senhora Coisa Invisível, mas passaremos a vigiar os seu passos. É bastante fácil encontrá-la apesar de sua condição de “não-visível”.
Estamos devolvendo também o seu diário.
Não precisamos mais dele para reconhecê-la...












BIBLIOGRAFIA

POESIA

O poder das palavras (1994)
Novas poesias (complexos sintetizados de um abstrato) – (1994)
Estranho Poente (1994/95)
Tempos Felizes (ou O sincronismo do mundo) – (1995)
Pulchra Puella (poemas sentenciosamente líricos) – (1995)
Cidadão do Império (1996)
O Extermínio dos Enfermos (2004)
Suco de queijo (2005)



PROSA

O Labirinto vivo – biografia (1996)
O deletério do amor – roteiro teatral (2004)
Crimes sob suspeita (ou “The Invisible Thing’s Diary) – contos (2005)