FABIANO
SANTOS SOUSA
CRIMES
SOB SUSPEITA
(ou “The invisible thing diary”)
VOLUME I
“Esta é
uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com a vida real nos
mostra que ‘quem diz que a realidade também não o é?...’
A
Stephen
Por seus
constantes brindes à Coisa Invisível
Sumário
Introdução
I- Indiscutivo
II- O mestre de arena
III- Ondas transmissivas de morte
IV- Os fins da guerra
V- Latências
VI- Ficando-se a vontade
VII- O legado
VIII- O jardim
IX- Pânico no inferno
X- Dia de cão
XI- Elos flexíveis
XII- Maldição das sombras
XIII- ODIBIL, o
demônio
INTRODUÇÃO
Os contos são
excêntricos.
Independentemente
de quem os escreva, tal forma narrativa é carregada de excentricidade. Num
romance, obra e autor são obrigados a encontrar um consenso, sem o qual se
tornaria impossível o desenrolar das idéias. Como em todos os relacionamentos,
o confronto de gênios e idéias torna-se inevitável e é onde parceiros aprendem
a sintonizar a essência das convergências em meio aos confrontos num
denominador comum.
Quanto aos
contos, não há qualquer compromisso pré-estabelecido. Há sim uma espécie de
relação poligâmica, sem qualquer diretriz inflexível. Ouso dizer que os contos
geralmente detestam os seus autores; chegam às vezes a conduzi-los num regime
extremamente ditatorial. E podem simplesmente se livrar deles, impondo a si
próprios um remate repentino inconclusivo e intransponível, muito aquém das
expectativas de seu pobre frustrado criador. Este, por sua vez, tem uma única
alternativa para livrar-se de um conto impertinente, além é claro de
terminá-lo: lançá-lo no lixo. Sim, pois é inaceitável um conto forçado a
encontrar seu final antes do tempo. Até mesmo os aparentemente concluídos às
vezes voltam para assombrar, como sequências indesejadas de filmes, que chegam
para tapar pequenos furos só tardiamente descobertos e inadmissíveis. Há os que
começam e terminam num único lampejo; outros podem durar uma vida inteira...
Um simples
conto de poucas páginas, todavia, pode satisfazer tanto quanto ou mais do que
um volumoso romance.
●
Nenhum destes
contos deve realmente assustar, mesmo o leitor mais despreparado para se
deparar com situações um tanto incomuns.
Se tal ocorrer, certamente terá sido um acidente de percurso já que nunca lhes
coube tal pretensão. No entanto, o mesmo leitor não deverá estranhar se começar
a olhar desconfiado para coisas e situações perfeitamente corriqueiras, pois
assim como não há singularidade nos dias, em todas as situações há um crime
sob suspeita.
F.S.Sousa
“... então eu
disse a ela: ‘Mas como você pretende me matar se eu já estou morto? ’...”
(CARLOS SIMÕES DE
ALMEIDA NETO)
I – “INDISCUTIVO”
O
morto se levantou e abriu os olhos. Seus olhos saltaram ao verem a luz. Seus
movimentos eram claramente dificultados por uma rigidez mórbida, mas ainda
assim, com algum sacrifício ele pulou para fora do seu sepulcro destampado.
Tropegamente começou a se movimentar. A cor de sua pele alcançara o auge da
palidez e seu corpo seminu e curvado lembrava um imenso cisne depenado.
Seu
olhar idiota percorreu o cemitério, que deveria ser sua última morada, e
encontrou o portão de saída. Arregalaram-se ainda mais os seus olhos e
brotou-se-lhe no semblante um largo sorriso débil e desdentado. Seus braços
compridos se estenderam em direção à saída e ele tentou falar, mas apenas
grunhiu algo como:
“manha
caja, manha caja”
Depois tentou
correr, mas tropeçou comicamente nas próprias pernas e caiu de cara no chão,
numa cena típica dos humoristas de televisão.
Levantou-se
já nem tão animado e caminhou lentamente, como que receoso, até o portão de
saída. Estava fechado. Ele empurrou e puxou-o durante alguns minutos, como uma
criança que insiste aos pais para a levarem ao parque fora do horário do
expediente, depois desistiu e pôs-se a perambular cambaleante por entre os
túmulos como um autêntico zumbi.
Às vezes
resmungava lamuriosamente:
“manha caja, manha caja!”
Quem o visse,
naturalmente diria que ele não sabia que estava morto. Bem, talvez ele
soubesse...
Talvez ele
quisesse que outros também soubessem.
Só existe
razão ao que não é permitido. Do permitido encarrega-se o Tempo...
Tropeçou
novamente em um dos jazigos e desabou, batendo a cabeça contra o cimento do
solo, provocando um ruído similar ao de um côco se partindo. Levantou-se e seu
crânio estava rompido e com uma fresta enorme um pouco acima da testa. Vermes
brotaram rapidamente da rachadura, como guerreiras
abandonando o formigueiro em busca de possíveis invasores. Ele sorriu; um
inexplicável sorriso triunfante e seu maxilar desabou como uma caveira humana.
Os vermes logo lotaram o seu rosto, penetrando-lhe pelos olhos, nariz, orelhas,
descendo para o pescoço e nadando na saliva constante e espessa que sua boca
irremediavelmente escancarada produzia.
Seu corpo
começou a arquear ainda mais e suas pernas se partiram nas juntas dos joelhos,
não suportando o próprio peso. O morto foi pela última vez ao chão e começou a
se contorcer loucamente, como um fio desencapado. Seus movimentos tornaram-se
rápidos e sua silhueta começou a assumir uma nova forma; os pedaços de carne
putrefata que haviam sido o seu corpo se uniram como uma simbiose de ficção
científica. Sua massa diminuiu aceleradamente até, não se sabe porquê, só
restar uma antiga pena gráfica e, sem carga ou tinteiro, a pena vazou, deixando
apenas uma mancha escura no chão.
A mais alta
estrela que se podia contemplar a olho nu brilhou sobre essa mancha e ali uma
planta nasceu sem raiz ou flor...
≈
II – O MESTRE DE ARENA
O
animal emitia um ruído louco e desesperado; nas devidas proporções de seu
tamanho, era algo como um rugido furioso. Arreganhava suas presas para tentar
intimidar o inseto pequeno, mas petulante que o afrontava. Não demorou em
sentir a mortífera picada do outro inimigo, cuja presença ele já se parecia ter
esquecido.
Ainda
mais louca de raiva, a ratazana avançou para o arisco escorpião, tendo o outro
em seu dorso. Seus dentes fortes esmagaram o pequeno animal, mas o esqueleto
cheio de protuberâncias ósseas rasgou o interior de sua boca e a saliva
misturada ao sangue começou abundantemente a jorrar. Sacudindo de forma
ensandecida a carcaça de um dos escorpiões, o rato contorcia-se violentamente,
tentando derrubar o outro de suas costas, mas a tal altura, já se encontrava
fraco e entontecido por causa do veneno. A morte “pós agonia” evidenciava-se em seu instinto infeliz.
O
rato cambaleou e tombou no chão, debatendo-se por repetidas vezes; o aracnídeo
saltou de seu corpo e habilmente se afastou. O outro escorpião, completamente
esmagado, também se remexia em vão, saboreando seus últimos instantes de vida.
Por fim, o rato também endureceu. Não esboçava mais qualquer reação. Então, seu
algoz triunfante se precipitou a se retirar, até ser, de súbito, esmigalhado e
retorcido por um grande coturno negro.
“Seu prêmio, campeão dos estúpidos” –
disse o jovem general, o propagador de tudo, com um sorriso meio sádico, meio
alucinado no rosto. À noite, na proteção de seu aposento privativo recém
adquirido, aquele era um costume que o vinha cativando intensamente.
Despejou
querosene sobre as carcaças, (tudo o que restara), ateou fogo e ficou por
instantes observando a cena, satisfeito. Depois foi dormir pensando no que se
poderia fazer com prisioneiros de guerra caso não houvessem tantas malditas
convenções...
≈
III- ONDAS TRANSMISSIVAS DE MORTE
Figuravam-se
sombras nas calçadas, emoldurando o cenário lúgubre e soturno. As ruas estavam
desertas, mas o silêncio não incomodava. Ao revés, nele as sombras
perfeitamente acomodadas pareciam falar; pouco, mas suficiente para divagar seu
senso de expressão.
Uma
flama de faróis junto com um roncar de motor irrompeu a tranqüilidade da
planilha natural.
“Ora, é de praxe a afinidade entre carros e
ruas”, pensou Daniel, um tanto ressabiado.
Não!
Não pouco, mas realmente muito ressabiado. Vivificando um dos muitos momentos
da vida os quais a lógica jamais se atreverá a explicar, Daniel soube que iria
morrer. Não por mãos de inimigos, dos quais até sentia falta, ou por qualquer
outro motivo que reconhecesse; apenas porque o momento, ainda que não o fosse,
far-se-ia ser. Aquele instrumento desconhecido trazia o remate de sua vida tão
cheia de perspectivas. Nesse tipo de circunstância, há um bucólico lampejo de
fantasia retrospectiva. A mente, vaidosa até o fim, exige a bel prazer de Deus,
do destino, ou de qualquer deus do Destino, que se prolonguem seus derradeiros
momentos até que caibam as boas e (por que não?) também as más lembranças que
compuseram toda vida. É até possível que tal extravagância seja concedida, mas,
sem dúvida, seu tempo dar-se-á não por contagem humana, pois para estes só há
os tempos de se estar vivo, morrendo e morto.
Aos
esperançosos, há ainda entre esses, o tempo de rebuscarem e se apegarem as suas
convicções de ressurgirem, mas além da esperança, é preciso estar atento...
Conceitos
teológicos e científicos a parte, é impressionante como a morte quase sempre se
manifesta singularmente no homem. Como se a morte do ser humano fosse dotada de
vida. Ainda que o homem domine a medicina, a genética, a religião, quem
realmente pode explicar a morte?
O
automóvel vermelho não chegou a parar. Apenas passou e da janela alguém despejou
os tiros que ecoaram pelas ruas. Talvez fossem adolescentes bêbados, ou
pistoleiros profissionais exercitando a pontaria, não importava. Mesmo que
fossem anjos do Senhor cumprindo uma divina sentença, a quem vai, nunca faria
sentido...
Apesar
de suas percepções se alterarem profundamente, Daniel sentiu a primeira bala
atravessar-lhe a garganta. Viu e engoliu, com quase nenhuma dor, o sangue e
lamentou; era o fim. Um novo disparo alvejou-lhe na cabeça, estraçalhando-lhe o
crânio e uma terceira explodiu seu estômago.
O
carro já ia longe, num estridente fritar de pneus pela noite.
Sempre
se procura, para tudo um sentido. Antes disso, é preciso estar atento...
≈
IV – OS FINS DA GUERRA
Já
iam seis quilômetros de uma correria impetuosa pela deserta rodovia naquela
noite. Uma leve garoa parecia fortalecer os motivos para que o rapaz
continuasse aquele impropério insano. Vez ou outra, um farol surgia de um ponto
longínquo da estrada, até o veículo passar, sem tomar conhecimento do pobre
rapaz e dos seus motivos.
Sua
penúria começara há vinte minutos, enquanto perambulava tranqüilo e
desobstinado pela avenida de uma cidadezinha, que a tal altura já há muito ficara
para trás. Seu olhar encontrou, de repente, o olhar daquela enorme fera surgida
de lugar algum. Os primeiros instantes foram de imobilidade e silêncio, até que
o cão começou a rosnar e intimidar o já seu oponente, com suas enormes presas.
Antes que o grande dálmata se precipitasse, o rapaz se lançou a correr pela
estrada, bem sabendo que o animal vinha em seu encalço.
Chegavam
assim àquela condição de perseguidor e caça. Obviamente, o homem já percebera
que aquilo se tratava de um jogo. Indubitavelmente, o animal já o poderia
ter alcançado se quisesse, graças a sua
agilidade natural. Acontecia, porém, que o cão corria apenas o suficiente para
ditar-lhe o ritmo. Não tinha qualquer pressa de pegá-lo, assim como não parecia
estar se cansando. Queria vê-lo apenas seguir em frente; continuar fugindo.
O
pior do percurso eram as subidas da serra, onde o asfalto molhado facilitava os
escorregões. O que parecia ser uma luz tornou-se uma grande frustração quando
uma viatura da polícia rodoviária passou em alta velocidade sem tomar
conhecimento do homem que gesticulava desesperado na tentativa de demonstrar
estar sendo perseguido por um louco e imenso cão-de-guarda.
Enfim,
sua esperança se foi junto com a viatura e em sua mente aproximava-se o momento
em que se veria fatalmente obrigado a atracar-se com o cachorro, numa luta de
sobrevivência. Suas pernas já demonstravam claros sinais de fraqueza. Talvez
fosse isso que o bicho quisesse, afinal ele já deixara claro ser dotado de uma
inteligência que embora sádica, parecia estar bem acima da média de sua
espécie.
Sem
fazer a curva para uma nova subida, o rapaz deu de frente com um precipício. O
cão, naturalmente, o seguiu. Ambos diminuíram a marcha, sabendo que aquela saga
insana estava por terminar. O homem parou diante do abismo e fitou-o. Era tão
profundo que não se podia enxergar o chão lá embaixo. Olhou então para trás e
estava, outrossim, o cão parado a uns cinco metros de distância a latir
ameaçadoramente. O homem bradou:
- Venha me pegar, seu miserável!
O
cachorro soltou um último latido e inacreditavelmente começou a se dirigir de
volta à serra, parecendo perder qualquer interesse que, por ventura já tivesse
cativado por aquele estranho. O homem, todavia, não se sentiu aliviado. Ao
revés, sentiu-se furioso. No fundo do seu âmago buscou e encontrou forças para
perseguir o cão, numa inversão dos papéis, atirando-lhe pedras. A certa altura,
o animal foi ferido e cheio de fúria tornou a se voltar para a loucura do homem
que então se abaixou para pegar uma vara de madeira para intimidar o grande
dálmata.
- Não queria me pegar, vira-lata cretino?
Pois o que está esperando? Estou aqui.
O
animal, latindo furioso, precipitou-se vorazmente rumo ao homem. Este,
atirou-lhe a vara sem nem mesmo prestar atenção se acertava e correu de volta
ao precipício, saltando em seguida. O cão parou ao chegar à beira, olhou para
baixo e ganiu de medo. Parecia estar bastante confuso. Deu uma recuada de
costas e deitou-se no chão, permanecendo assim por breves instantes. Por fim, virou-se
para ir embora quando viu que atrás de si lhe espreitava uma grande onça. Ela
arreganhou os dentes, como que o desafiando para um confronto, talvez por ter
ele invadido seu território de caça. Numa única e última ação, o cão saltou
também rumo ao desfiladeiro, livrando-se da onça e do remorso...
≈
V – LATÊNCIAS
“Na volta do baile, o carro me aborda e eu os vejo. São três. A carona
é oferecida. O do lado esquerdo atrás brinca com uma arma.
Recuso. Meus passos prosseguem tensos e mais rapidamente. O veículo se
afasta; o temor permanece um pouco mais. Bonita sim, e sabedora disso. Cabelos
pretos, longos, escorridos; de pouco brilho, mas bem tratados e perfumados. A
pele morena clara, olhos muito verdes e lábios grossos, indiscretamente avermelhados
por batom. Visto uma mini-blusa e um short de lycra preto. Os tênis são brancos
e caros, mas não são nem de longe a maior preocupação... Moro longe, mas a
diversão é grande. Sou popular; tenho amigos, namorado e incontáveis
pretendentes.
Ha incalculáveis quilômetros entre a segurança e a diversão
evanescente, ouço os pneus queimarem até a freada brusca que quase me toca o
veículo. A porta abre e a arma é prontamente apontada após a expressão: ‘Não
grite!’. Mesmo que o fizesse, quem iria ouvir?
A arrancada foi ainda maior. Entre lágrimas e dois deles, sou agarrada
fortemente. Nós apertados com trapos são feitos entre meus tornozelos e mãos e
uma mordaça é improvisada em minha boca. Minutos depois, um matagal de um
grande terreno baldio. Sou carregada no colo por um deles; outro nos acompanha
e o terceiro parte com o carro. Jogada no chão, tento arrastar-me. Mato e pedra
me ferem e provocam arranhões por todo o corpo. Um deles joga-se sobre mim e me
agarra pelos cabelos. Sou beijada com violência, mesmo sobre a mordaça e ele me
imobiliza, vencendo meu espernear. A arma dele está na cintura. Entrega-a ao
companheiro e recebe um pequeno estilete afiado. O trapo na minha boca agora
esta manchado de batom. Corta-me ambas as alças da blusa expondo meus seios
para serem imediatamente sugados por uma língua impetuosa e enlouquecida. Sinto
mãos me agarrarem o short até o arrancarem pelas pernas que ainda se debatem
inutilmente. O homem sobre mim despe-se afobadamente procurando não aliviar a
pressão que me imobiliza. Corta-me então as amarras todas, enquanto o outro
engatilha a arma e a encosta na minha cabeça após a expressão: ‘não grite’. Com
o estilete ele talha a minha calcinha e suas mãos percorrem minhas coxas até
seus dedos se aninharem em minha vagina, invadindo-a sem dificuldades. Após uma
pequena dor inicial, a umidade instintiva flui e seus dedos passam a deslizar
tranquilamente para dentro e fora de mim, evidenciando para a mente louca do
maníaco que aquele corpo ofertava-se completamente para a violação. A “coisa execrável” é rapidamente acomodada
entre as minhas pernas e a impulsão dada é mais do que a necessária para
penetrar-me totalmente. Meu grito sai quase como um gemido, o que deve
excitá-lo ainda mais. O peso dele sobre mim, aliado à tensão gerada pela arma
pressionada contra minha cabeça aumenta progressivamente a sensação de
impotência e desprezo por minha própria fragilidade. Após cerca de não muito
mais do que um minuto, mas que desfilou como a própria eternidade, ele gozou,
acelerando o ritmo de vai-vem, até o interromper bruscamente. Sinto-lhe a
deslizar lentamente para fora de mim, ainda gotejando sêmen pelo seu membro
nojento.
Como fora fácil prever, o outro homem, até então mero expectador
passivo, prepara-se para assumir a posição do comparsa.
Durante a troca, ambos estão descuidados da arma, deixando-a no chão,
um pouco acima de minha cabeça. Neste momento, em minha cabeça entorpecida,
todos os faróis da oportunidade se acendem...
Num esforço descomunal, livro um dos meus braços do domínio displicente
que exerciam e apanho a arma. Vocês devem saber que a partir de agora o rumo da
história mudará. E muda.
O primeiro tiro é, devido a minha dificultosa posição, no ombro, mas é
mais do que suficiente para fazer o desgraçado voar longe, concedendo-me todo o
espaço de que preciso para doravante assumir com clareza as rédeas da situação.
Levanto-me, completamente nua; meus lábios inchados sangram, mas oportunamente
o gosto me fortalece. A arma firma-se cada vez mais em meus punhos. Posso ser
frágil e descontrolada, movida apenas por choque, pavor e raiva impulsiva, ou
posso ensinar-lhes realmente uma lição. A sensação de impotência afasta-se
totalmente. Se quiser, até posso sorrir. Pasmem se quiserem; alguém acha que me
importo?
A essa altura, o outro já está tentando fugir. Não posso descrever o
jubilo que sinto ao ver o covarde tentando escapar com as calças na mão,
abandonando o companheiro como se nunca o tivesse conhecido. Abato-o pelas
costas, como ao animal de pior espécie que ele é, posto que no caso dos animais
verdadeiros jamais o teria coragem de fazer. Ele vai ao solo após um grito
reconfortante.
- Não gritem – brado com clareza para ambos ouvirem e desta vez não
contenho a gargalhada.
Dirijo-me ao primeiro, o meu já “amante compulsório”, que jaz encostado
numa árvore, sem forças, ou talvez sem coragem para tentar fugir. Ele,
logicamente, está vomitando incessantemente palavras de súplica e
arrependimento. Isto me provoca náuseas. Preciso calá-lo. Nunca havia pegado
antes numa arma em toda a minha vida, mas também como em poucas vezes em minha
vida confiei em alguma coisa, confio agora em minha mira. Aproximo-me e viso
sua mão direita. No alvo! Ela explode, lançando fragmentos de ossos, sangue e
tripas pelo ar e chão. Ele berra como um bebê e eu disparo mais dois tiros, um
em cada uma das juntas dos seus joelhos. Ele começa a contorcer-se e girar pelo
chão como uma lacraia decapitada. Tudo isso continua a me divertir.
Volto minhas atenções ao outro. Ele ainda pode se arrastar, então, por
que não o obrigar a ir para junto de seu companheiro? No começo ele se recusa,
protesta, mas são deveras fracos os argumentos dos covardes. Ele sabe que vai
morrer, mas se recusa a aceitar dignamente tal possibilidade. Prefere se
agarrar a sua mísera e vã esperança de que de dentro da menina frágil, vítima
potencial que reconheceram a princípio, eles ainda vão conseguir extrair alguma
piedade. Contudo, ele cede e acata minhas determinações. Ótimo! Matá-lo por
insubordinação, certamente não seria tão divertido. Coloco-os lada a lado. O
que aleijei e decepei a mão está apenas semiconsciente. Praticamente desmaiado.
Praticamente morto. Espero sinceramente que ele agüente só mais um pouco.
O outro continua a implorar, então vou agraciá-lo primeiro. Acerto-lhe
na região da virilha; repito a ação em seu colega, que desmaia, (ou morre de
vez). Não sei quantas balas ainda me restam, mas espero que sejam suficientes.
Chego perto deles. Não tenho mais o menor pudor por estar nua na frente
de desconhecidos. Talvez já nem sejam mais desconhecidos. Apenas amigos não
muito queridos, mas que, apesar de tudo, divertem-me. Certamente algum ramo da
Psicologia terá um nome para isso.
Viro de bruços, com algum esforço, o que ainda está consciente. Apesar
de ele já estar bastante debilitado e não oferecer qualquer resistência, o
diabo é pesado como um porco. Felizmente, jamais precisarei torturar um porco.
Compensando-me pelo esforço, consigo virar-lhe de costas e lhe enfio o
cano do revolver pelo orifício adentro. E como há dias em que nem tudo pode ser
perfeito, puxo decididamente o gatilho, mas a arma falha. Há apenas um “clic”
silencioso no ar e o homem emite algum som que interpreto como um suspiro de
alívio. O ódio emerge pela minha garganta, parecendo me inundar o cérebro.
Arranco abruptamente a arma do rabo do desgraçado e com a coronha passo a
golpear repetidas vezes sua cabeça até sentir minhas mãos se afundarem numa
poça de sangue. Cada som de osso partido soa para mim como uma suave nota
musical. Após me satisfazer não sei por quanto tempo com essa tarefa, troco de
alvo e passo a investir contra o rosto do outro já sem tanto júbilo; parece
evidente que nenhum dos corpos é capaz de sentir mais os meus estímulos de dor.
Largo, por fim, a arma ensangüentada e me entrego ao silêncio e ao
vazio. É o fim?!
Um detalhe, então, ilumina-me a mente: o terceiro homem! O que
nos trouxe e partiu no automóvel, provavelmente para deste se livrar. Pouco sei
dele e ele idem sobre mim, mas sei que ele é um deles, o último deles; que foi
também parte disso e é o que me importa saber...
Torno a apanhar a arma, (descarregada sim, mas só eu e você sabemos
disso, não é mesmo?), deito-me ao lado dos corpos e começo a me masturbar com o
cano do revolver, desejando e esperando pelo terceiro deles...
≈
VI -
FICANDO-SE A VONTADE...
“Abro o
portão, com vontade de matar alguém.
alguém: Pronome Indefinido Masculino Singular
Assim
deixo a minha casa; com o espírito da morte pesando sobre meu outro eu. Ora,
não me venha perguntar analiticamente se sinto ódio. Ódio por quê? De que me
adiantaria andar por aí cansado por carregar um sentimento tão pesado? Também
não me perguntem se me defendo. Nada temo. O ódio, o medo, são abstrações que
não me permitiriam manter-me sempre harmônico com a Natureza e isto é o que
mais cativo. O que menos cativo, cativo pouco, mas feliz ou infelizmente, o que
vem de mim nunca deixa de ser eu mesmo; com uma tórrida vontade de matar
alguém.
A
noite está fria. Chove; em conseqüência, o ar está úmido. Algumas ruas estão
‘semidesertas’, outras, desertas.
algumas: Pronome Indefinido Feminino Plural
outras: (idem)
Belas
mulheres não temem bailar na noite fria. Aquela – paira tranqüila em frente às
vitrines na galeria do shopping Center
aquela; Pronome Demonstrativo Feminino Singular
Pronto,
já estou a segui-la; com passos marcados, firmes e decididos, mas acompanhando
a sua leveza. Seu inconsciente testa minha paciência. Ela vaga furtiva,
vislumbrando coisas desinteressantes, como se pretendesse me dispensar de meu
súbito ofício.
Enfim,
saímos do shopping; renascemos para as ruas; desertas, ou mesmo as semi
desertas. E para um mar profundo de mórbidas possibilidades, onde, agora mesmo
eu poderia abordá-la, dominá-la, possuí-la e libertá-la para a vida; bela, mas
um pouco mais dura, mais negra...
Possibilidades
insanas, apenas! Não sou maníaco, tarado, ou mesmo um homicida. Deixei de ter e
passei a ser apenas uma vontade de matar alguém. Então não me julgue.
Disponha-me a tua vida pela de outrem. Eu sou como o suspiro de alívio que você
dá quando sabe que o ônibus atropelou o filho do seu vizinho e não o seu, já
que ambos brincavam juntos de soltar pipa na rua. Ou quando, em meio a centenas
de mortos carbonizados, toda a sua família entra na lista de sobreviventes de
um desastre de avião.
Definitivamente
eu não sou o bombeiro herói que se lança ao perigo e morre para resgatar a
vítima.
A
morte, eu como desejo, o bom bombeiro, soamos apenas como ideais.
O
ponto de ônibus; a eventual parada do tempo e da amargura. Mais duas mulheres
que lembram princesas; mais duas vidas que se irão qualquer dia.
qualquer: Pronome Indefinido Masculino Singular
Ir-se-iam...
Não!
Esvaiu-se a diva de minha vista, embora eu já estivesse prestes a descarregar
as armas de meus pensamentos. Ah! Lá está ela! O que se esvaiu foi, na verdade,
a primeira, a vontade. Tomou o seu lugar a vontade de estar vivo, eterna
opositora da anterior. Outras nascem também a todo tempo; herdadas, concebidas.
Todas igualmente voluntariosas; algumas, pretensiosas, outras, esquizofrênicas
e senis. Até quando me aceitarão a inteligência? O que sobrará de sua luta com
o físico?
Luta?
É
o meu sangue que sempre vira nitroglicerina.
Minha
bomba pulsa para morrer à lua.”
≈
VII - O LEGADO
Assim
que saiu da prisão por bom comportamento após cumprir 80% de sua pena de 40
anos por homicídio, David foi para casa. Pediu na delegacia para que nenhum
parente fosse avisado. Iria fazer uma surpresa a todos.
Passou
em frente a um bar e resolveu matar uma vontade que trazia há
anos. Podia voltar finalmente a tomar uma cerveja. Degustou lentamente cada
gole, pagou e matou o dono do bar, cortando-lhe a garganta com o fundo da
garrafa quebrada.
Depois
de tanto tempo na prisão, estava completamente desorientado. Era muito estranho
poder caminhar de novo pelas ruas.
Lembrava-se
vagamente do seu antigo endereço. O velho chalé de madeira construído pelos
avôs. Ninguém o esperava. Se tivesse ainda qualquer parente vivo, certamente
estaria rezando para que ele apodrecesse na cadeia.
As
ruas estavam mudadas; os ônibus também e os bondes tradicionais não mais
circulavam pelos trilhos.
David viu um mini-posto policial e
resolveu pedir informações. Caminhou até lá e constatou que estava vazio.
Espiou pela janela da cabine e viu o cinturão com o revólver na prateleira de
uma pequena estante. Olhou para o outro lado e viu o guarda anotando infrações
num caderninho, na esquina de uma avenida.
David
entrou tranquilamente na cabina, apanhou a arma e várias cápsulas de munição.
Acomodou tudo na cintura, sob a camisa e então caminhou até o guarda para
pedir-lhes as informações desejadas. Após o contato extremamente cordial com o
desatento agente da lei, David agradeceu-lhe pela gentileza, despediu-se de
forma cortês e em mais um momento de distração do guarda, empurrou-o para o
meio da avenida assim que passou o primeiro infrator em alta velocidade.
Acomodando
melhor a arma no coldre na sua cintura prosseguiu com seu trajeto, ajudado
pelas últimas informações da vida do guarda.
A
alguns metros dali acompanhou a ação de uma criança que acabava de arrebatar a
bolsa de uma senhora e agora debandava em sua direção. David esperou o pivete
se aproximar e agarrou-o violentamente pelo pescoço, comprimindo sua garganta
até que perdesse os sentidos. Tendo o garoto inconsciente em suas mãos, manteve
a pressão do estrangulamento até que a respiração cessasse definitivamente. Só
então largou o corpo no chão que caiu como um boneco.
A
dona da bolsa observara toda a cena horrorizada e via agora o seu “benfeitor” vir em sua direção com a
bolsa na mão. Seus olhos mostravam medo e raiva do desconhecido com radical e
distorcido senso de justiça. Ela começou a se afastar e num ímpeto pôs-se a
fugir antes de ele a alcançar; não pareceu razão para ele se preocupar. Apanhou
o revólver e alvejou-a certeiramente pelas costas. Jogou a bolsa sobre o
cadáver e seguiu seu destino.
●
A
polícia chegou ao paradeiro de David através das informações de transeuntes e
motoristas que testemunharam seus diversos crimes. E pode-se dizer que
chegaram, como de praxe, tardiamente, já que, como quem passeia cantarolando
alegremente numa bela tarde de domingo, o assassino não fazia qualquer esforço
para ocultar seus rastros.
Próximo
ao velho chalé de sua família foi cercado por várias viaturas. Até ali, David
já havia assassinado mais dezoito pessoas. Sempre lhe espantara a fragilidade
do corpo humano. É extremamente fácil retirar a vida de alguém desprevenido. É
como roubar um banco vazio.
Mas
enfim, a polícia o alcançara e o teriam que matar, pois ele jamais se
entregaria.
Recarregou
sua arma e abriu fogo contra os policiais. Foi fuzilado sem acertar nenhum...
Antes que a
polícia chegasse até o seu corpo mortalmente ferido, um veículo se interpôs às
viaturas. A porta se abriu e o corpo foi colocado para dentro, numa velocidade
indescritível, (até sobre-humana, talvez). O carro vermelho saiu em disparada,
atropelando ainda vários guardas e transeuntes antes de desaparecer sem deixar
a toda a frota de policiais atônitos qualquer chance de lhe perseguirem.
Com a
consciência já bastante debilitada, David olhou para o motorista do carro. Era
na verdade uma bela jovem de longos cabelos loiros. Ela, ainda que a dirigir
velozmente, retribuiu-lhe o olhar por um longo instante e por fim sorriu. David
compreendia pouco a situação, mas achou muito bom deixar-se levar. Sentiu-se
muito feliz e seguro por estar ali sendo transportado pela linda jovem. E de
alguma forma, aquele sorriso dela preenchera o seu espírito com toda a
tranqüilidade de que ele precisava.
Após tossir e
se engasgar com a própria respiração, pediu à mulher um cigarro. Ela apanhou um
maço no porta luvas e tirou um. Colocou na própria boca, acendeu-o e o
transportou delicadamente para os lábios de David. Ele agradeceu e deu uma
tragada profunda. Como que se despedindo de seu próprio instinto, lamentou não
ter mais forças para matar aquela bela jovem. Poderia talvez ter sido a
verdadeira obra de sua vida...
Fechou os
olhos, que é a forma mais digna de morrer.
E ele
realmente morreu no carro, ao lado da moça, porém, quando tornou a abrir os
olhos, a mulher ainda estava lá. Ela parou o carro e começou a cuidar dos
ferimentos que ele trazia por todo o corpo.
Assim, por
veneração, (e por que não dizer, talvez até amor), David se casou com a própria
Morte. Jamais falaram em filhos: seria inconcebível! Sua fama se alastrou pelo
Universo, mais ainda quando ele assassinou a própria esposa sem deixar de
honrar-lhe o ofício. E se no transcender da imaginação, pode a criatura superar
sempre o criador, uso agora as últimas energias que me sobraram após o meu
fatídico encontro com David para concluir esta história com um alerta:
“OLHE-O BEM AÍ, ATRÁS DE VOCÊ...”
≈
♣ JARDIM
“In
memorian de um passado que nunca existiu.”
“Era
exatamente isso, filho. Um enorme, vastíssimo jardim! Nele, uma indescritível
variedade de plantas e flores. Muita luz e cores sugerindo uma paz e harmonia
sem fim. No centro do jardim, tranqüilamente corria um grande lago de águas
esverdeadas, mas absolutamente cristalinas. Talvez algo muito próximo das
concepções que se costumam traçar sobre o paraíso.”
Fez uma
pequena pausa reflexiva e continuou:
- Mas não
havia ninguém lá. Embora o ambiente pulsasse de vida, era um imenso deserto sem
fim.
O filho, que
claramente não gostava dos rumos daquela conversa, tentou apressar o fim do
assunto.
- O que o
senhor precisa, pai, é de uma vida mais agitada. Vou levá-lo comigo a umas
festas e bailes tão quentes que vão lhe sacudir até nos sonhos.
Parecia
claro, no entanto, que nem tão facilmente o homem estava disposto a se desligar
daquele sonho.
- foi o sonho
mais real que já tive. Eu sei que à primeira vista ele parece de mau agouro,
mas sinto que a mensagem que me foi dada na forma deste sonho é muito
importante para a minha vida.
- Ótimo! –
asseverou o filho – Desde que nada tenha a ver com “bater as botas”. Agora vamos, que se nos atrasarmos de novo para o
jantar, o jardim de casa será realmente o lugar onde dona Marinalva nos fará passar
a noite.
●
O pai se
chamava Odair Almar. Tinha 64 anos e havia 30 que abrira a loja, pequena a
princípio, mas que logo prosperou. Vendia carros usados. O pequeno galpão do
começo transformou-se num gigantesco armazém. E o melhor era que tivera
condições de se livrar do aluguel, comprando o prédio.
O filho se
chamava Marcus e tinha 32 anos. Há dezoito ele e o pai trabalhavam juntos. O
garoto começara aos trezes, sob os ardorosos protestos da mãe, que o queria se
dedicando exclusivamente aos estudos. Como prova de que uma coisa não
necessariamente atrapalhava a outra, nunca repetiu nenhuma série. Todavia,
também nunca cativou grandes pretensões quanto a sua formação educacional,
mesmo por que, a loja rendia um bom dinheiro que plenamente satisfazia seu
ímpeto consumista adolescente.
Com o tempo,
o movimento da loja crescera consideravelmente. De forma curiosa, porém, o
retorno financeiro parecia cair na mesma proporção. Tornava-se a cada dia mais
difícil manter as portas da loja abertas, mas devido à credibilidade e confiança
adquirida em tantos anos de tradição, Seu Odair vinha, com muito esforço,
conseguindo contornar as situações mais críticas.
Marcus
casou-se e comprou um luxuoso apartamento para viver com a esposa. Separou-se
um ano depois, após diversas e intensas brigas, voltando para a casa dos pais
com uma singela dívida judicial na bagagem, por conta do apartamento, além de
dívidas bancárias e no mercado comercial. Aos poucos, com a ajuda do pai
conseguiu mais uma vez ter o seu nome limpo, embora seu espírito gastador
sempre lhe rendesse cobradores em seu encalço.
Seu grande
segredo, no entanto, era uma robusta conta secreta nos Estados Unidos, fruto de
desfalques e grandes desvios de dinheiro na loja em que administrava ao lado de
seu pai. Tal conduta de sua parte começara ainda na adolescência, época em que
o pai, até como uma forma de educá-lo e sedimentar sua personalidade, era bem
mais rígido na administração do dinheiro, permitindo que coubesse ao filho
apenas a parte pré-determinada de seu salário. Assim, gastando muito mais do
que recebia, o jovem começou a aplicar os primeiros golpes na contabilidade da
loja. Vendia carros por preços muito acima do teto estabelecido, comprava-os
por verdadeiras ninharias, aproveitando-se invariavelmente de grandes dificuldades
financeiras dos proprietários e sempre fraudulando os valores na hora de
contabilizá-los nos balanços semanais. Além disso, inventava diversas despesas
inexistentes e aumentava propositalmente os valores das existentes em muitas
declarações. Valendo-se da absoluta confiança que seu pai lhe depositava, nunca
fora descoberto, ou pelo menos, nenhum funcionário jamais se atreveu a censurar
sua conduta.
Aconteceu que
em certa época Marcus detectou uma relativa e repentina mudança no
comportamento de seu pai, coisa que seu Odair parecia fazer muito esforço para
não deixar transparecer. Imediatamente, Marcus deduziu que seus roubos haviam
sido descobertos e chegou até a pensar em fugir; sumir por uns tempos até que a
poeira assentasse. O dinheiro que agrupara era mais do que suficiente para
desaparecer por uns bons tempos, levando uma vida de rei. Quem sabe, um dia
talvez voltasse, afinal, os pais sempre irão perdoar os filhos...
Tudo mudou
quando seu pai resolveu lhe procurar e lhe contou sobre aquele estranho sonho.
Embora lhe parecesse meio mórbido no dia, aquele sonho trouxe a Marcus uma
profunda sensação de alívio. Era sinal de que seu pai estava preocupado com uma
possível proximidade da morte, (preocupação típica quando se atinge uma
determinada idade), e que não tinha qualquer relação com as transações
irregulares do filho na empresa.
Amava seu
velho pai, mas preferiria vê-lo morto a que descobrisse tudo.
●
O jantar
naquela noite, apesar de decorrer na forma tradicional de sempre, também
pareceu, de alguma forma, diferente. Uma certa melancolia pairou no ar, embora
em nenhum momento se tivesse tocado em qualquer assunto triste à mesa.
Após o
jantar, Seu Odair se retirou para o seu quarto mais cedo, coisa que raramente
fazia, já que costumava acompanhar assiduamente o noticiário noturno. Apenas
alegou uma leve indisposição e foi-se deitar.
D. Marinalva,
mãe de Marcus, demonstrou-se preocupada com o marido, mas foi tranqüilizada
pelo filho que lhe garantiu que tudo estava bem e que o pai levantaria muito
melhor pela manhã.
Mais uma vez,
a idéia de ter sido descoberto passou pela mente de Marcus, mas ele a expulsou
com muita força de vontade. No entanto precisaria dar um jeito de obter a
certeza de que seu segredo estava seguro...
●
Pela manhã, tudo parecia mesmo ter melhorado
como ele preverá. Seu pai acordara bem mais disposto e como sempre, os dois
foram juntos para a loja. Tudo pareceu normal até o momento em que Seu Odair
ergueu a porta da loja. Marcus acabava de estacionar o carro quando percebeu
que algo com o seu pai não estava bem. Seu Odair permanecia em pé diante da
porta entreaberta da loja, olhando apalermadamente para o interior do recinto,
sem sequer se mexer. Subitamente levou as mãos ao peito e começou a cambalear
dando passos lentos para trás.
Rapidamente
Marcus saiu do carro e correu para ampará-lo, mas só teve tempo para ouvir suas
últimas palavra:
- O...
jardim...!
O homem
desabou no chão, morto.
●
Se a
recomposição da família foi difícil, a administração dos negócios sem a
presença do pai, para Marcus foi ainda mais difícil. Ele sabia que dificilmente
teria condições de suportar as pressões contornáveis apenas pelos bons
administradores.
Um mês após a
morte do pai, uma grande revelação lhe veio a lume. Em meio a alguns objetos
pessoais do pai, guardados na loja em um cofre secreto, Marcus encontrou uma
carta escrita por seu Odair, com o título “confidencial”
e destinada a ele próprio, Marcus.
Suas
suspeitas se confirmaram: o pai sabia de tudo. Todos os desfalques e rombos nas
contas da empresa, inclusive de sua conta secreta no exterior. No entanto,
embora tivesse também a esposa e os outros filhos a quem prestar contas, jamais
passara por sua cabeça denunciar, nem mesmo recriminar seu filho. Confiava em
que tudo se esclareceria da melhor forma possível um dia e a família poderia
comemorar o retorno das coisas aos eixos.
●
A verdade,
porém, é que sem Seu Odair, os negócios vão cada vez pior e todo o patrimônio
da família é perdido, devido principalmente à má administração de Marcus Almar.
Sua mãe, Dona Marinalva, adoece no pior momento, já que a miséria bate às
portas da família. Apenas Marcus teria condições de ajudá-la, mas isto significaria
ter que revelar aos irmãos sobre seus bens escondidos e principalmente ter de
explicar suas origens. Assim, para Marcus, a melhor solução, apesar de tudo,
ainda era a omissão.
Nessa mesma
época começaram os sonhos...
●
Precisamente
igual à descrição de seu pai, a imagem de um vasto jardim passou a freqüentar a
mente de Marcus em todos os sonhos que tinha.
E exatamente
como se sucedeu com o pai, a história se repetiu com o filho. Certo dia, ao
abrir a loja e olhar para dentro, em vez dos habituais carros usados, o que ele
vê é o jardim de seus sonhos, dividido pelo grande lago de águas esverdeadas.
Entretanto, a calmaria peculiar do lago o abandonara, dando lugar a uma
torrente de águas revoltosas.
Da mesma
forma que Seu Odair, Marcus começou a recuar andando de costas, bastante
assustado. Afastava-se lentamente, sempre a fitar o jardim, quando viu surgir a
imagem de seu pai, de pé sobre as águas agitadas do lago. O homem tinha uma
expressão de preocupação desesperada. Gritou para o filho:
- Filho! O
jardim!
Marcus tinha
os olhos cheios de lágrimas. Sentia medo, ódio e principalmente vergonha.
Respondeu ao pai, aos prantos:
- Não! Você
está morto! Morto, ouviu?! Volte para o inferno e não queira me levar para lá
também!
- O jardim,
filho! O jardim! – continuava seu Odair a gritar desesperadamente.
- Não! –
respondia-lhe o filho, continuando a andar de costas, sem se aperceber de que
já estava no meio da rua.
O pai abaixou
a cabeça e a balançou negativamente, num profundo gesto de lamentação.
O filho então
parou, olhou para o lado e viu que a Kombi branca já estava tão próxima que não
poderia frear mesmo se quisesse...
≈
IX –
PÂNICO NO INFERNO
Foi tudo
extremamente rápido.
A coisa
asquerosa, repleta de escamas úmidas, caiu sobre ele na cama, fazendo uma
pressão tão violenta que quase o esmagou. Imediatamente, um dos tentáculos lhe
envolveu a garganta, absolutamente determinado a estrangulá-lo.
Recuperando-se
da surpresa e tensão inicial, o garoto agarrou firmemente o corpo pegajoso do
monstro, ergueu-o afastando de seu corpo e como se nada pesasse, girou-o
velozmente no ar, arremessando-o em seguida violentamente contra a parede.
Logo em
sequência, uma mão enorme cheia de garras, com um poderoso murro, irrompeu uma
grande cratera no chão. De lá saiu uma criatura de encorpada musculatura e com
garras afiadas e reluzentes. Avançou para o garoto e com um novo golpe colossal
destruiu completamente a cama, instantes após o jovem ter conseguido escapar
com um ágil e habilidoso salto. Com extrema facilidade, o garoto ergueu o
pesado armário de seu quarto e jogou-o para cima da criatura. Todavia, com um
simples golpe das garras, o monstro partiu o objeto ao meio, escapando ileso.
O garoto
partiu destemidamente para o confronto e com sucessivos golpes devastadores
nocauteou a criatura.
O próximo
inimigo que surgiu foi uma fera. Tinha duas cabeças, uma de tigre e outra de
leão e de sua boca brotavam poderosas labaredas. Pego desprevenido, a primeira
rajada desorientou o garoto. Isto foi mais do que suficiente para a fera saltar
sobre ele, procurando cravar-lhe os dentes na garganta. O garoto a conteve,
segurando-lhe pelo pescoço e com o impulso de uma das pernas projetou-a para
trás. Então, de seus olhos, o garoto emitiu uma intensa rajada laser que
desintegrou completamente a criatura.
Por fim, o
garoto foi agarrado por trás por um esqueleto vivo, num abraço mortal. Tentou
infrutiferamente se livrar e a cada instante que passava, a pressão beirava
cada vez mais o insuportável. Num último e derradeiro esforço, conseguiu abrir
os braços, esfacelando a criatura, espalhando seus múltiplos fragmentos ósseos
pelo ar.
Com a
sensação de dever cumprido, saltou pela janela e cruzou os céus num vôo
esplêndido.
Durante o
vôo, ouviu o mais aterrador de todos os ruídos...
●
O ruído
novamente se repetiu e isso fê-lo forçosamente despertar.
E ele
conhecia muito bem aquele ruído. Tornara-se uma constante em suas madrugadas.
Eram os gritos do pai ecoando pelos corredores do prédio. Quase todas as noites
chegava bêbado em casa, provocando e ameaçando os vizinhos, que nada faziam a
respeito, pois tinham muito medo. Talvez não pelo simples fato de ele ser um
policial arrogante mesmo quando sóbrio, mas certamente por que, no fundo, todos
sabiam que era ele o líder do implacável esquadrão
da morte.
Os berros
pelos corredores e às portas da casa eram só o começo. O som seguinte era o de
peças de louça, móveis e outros objetos da casa sendo destruídos.
Mas era para
a própria família que o veterano ébrio guardava seus maiores ímpetos de
violência. A esposa era geralmente agredida primeiro, quase sempre por se
interpor entre o marido e o único filho do casal. Por diversas vezes precisara
ser hospitalizada, tendo inclusive, em certa ocasião, dado entrada na UTI com
hematomas por todo o corpo. Há muito desistira de procurar por justificativas;
seu único intuito era o de tentar ao menos amenizar, à custa do próprio
flagelo, o sofrimento do filho.
Como sempre,
após os gritos da mãe e os sons de socos e pontapés, o homem chegara ao quarto
do garoto. Mais uma vez a mulher tentou arrastá-lo para fora, puxando-o pelo
braço, mas recebeu um violentíssimo soco na face, caindo em seguida. O homem se
voltou ainda para ela, chutando-lhe fortemente as costelas. Ela gemeu e ficou
jogada no chão, incapaz de se levantar.
O garoto
tentou passar pelo pai, na intenção de ampará-la, mas também recebeu um
fortíssimo tapa no rosto, fazendo-o bater a testa na quina da cama.
- Vocês dois são a família mais ingrata e
arrogante que um homem pode ter – falou o homem, com voz de bêbado.
Por isso, uma bela surra diária é o mínimo
que merecem para entrarem nos eixos.
Começou a
avançar para o garoto, enquanto desafivelava com dificuldade o cinturão.
A mãe,
tentando inutilmente se erguer implorava ao marido:
- Não, Jorge! Por favor, pare!
- Você cale a boca, que será a próxima.
O garoto
permanecia de costas para o pai, ajoelhado e recostado na cama. Tinha um enorme
hematoma na testa e um corte profundo na língua. O sangue transbordava-lhe na
boca e escorria abundantemente pelo queixo.
Tudo estava
claro: mais uma vez a cena se repetiria. Seriam minutos intermináveis de
tortura física e humilhações, que mais pareceriam horas. Cicatrizes fechadas e
nem tão fechadas tornariam a desabrochar por todo seu corpo, dando boas vindas
às novas que certamente surgiriam. Depois seria a vez da mãe e ele teria que
ouvir tudo, absolutamente impotente.
Talvez por
isso ele sonhasse, mas de que lhe valia ser onipotente em sonhos se sua vida
real era tão miserável?
A não ser que...
●
O pai lançou
a mão no ar para aplicar a primeira cintada. O garoto, então, agarrou-o pelo
pulso e arremessou-o como um projétil através da janela.
Após alguns
instantes de silêncio meditativo da parte de ambos, a mãe conseguiu se levantar
e caminhou até o filho, envolvendo-o num terno abraço.
- O papai escorregou e se machucou, mas a
mamãe está aqui e nunca mais vai deixar que alguém machuque você, certo?
- Certo – ele assentiu...
≈
X- DIA DE CÃO
Sou despertado
por uma estranha, mas boa sensação; como se acariciassem delicadamente a minha
testa. Demoro ainda alguns segundos para abrir os olhos e quando o faço, o que
me invade é um espasmo indescritível de dor.
Reconheço
imediatamente o meu dedicado enfermeiro: é Scooby,
o sarnento vira-lata que perambula moribundo pela vizinhança. Por várias vezes
já fora quase morto em surras intensas, por ser considerado o ‘terror dos sacos de lixo’ residenciais
em todo o bairro, sendo sempre salvo por algum morador antigo e moribundo como
ele, que se compadecia e intercedia, interrompendo a brutal execução.
Suas
carícias, na verdade, são frenéticas lambidas na minha testa que parece sangrar
o suficiente para oferecer a ele um delicioso motivo para continuar me
lambendo.
Vou afastar o
petulante com um safanão e tenho outra surpresa nada agradável: o máximo que
consigo emitir é um ruído débil, como o de um último suspiro agonizante. Isto
foi suficiente para que o animal recuasse receoso, afinal, seu lombo já estava
calejado o bastante para saber que se aquele “bicho-homem” levantasse enfurecido iria precisar estar a uma boa e
segura distância para evitar maiores danos a sua magra e quebradiça carcaça.
Recuou mais
alguns passos, esperando esboços de movimentos, que o fariam sair prontamente
correndo em direção à porta da rua e só parar quando se enfiasse no porão do
grande depósito abandonado que, nos dias de chuva, costumava usar como casinha,
mas os instantes passaram, suas previsões não se concretizaram e a voz da fome
em sua barriga voltou a ecoar em sua cabeça como badaladas de um grande sino,
dizendo que se ele não voltasse para aquele grande maná com formato de ‘bicho-gente’
e continuasse a satisfazê-la, ela passaria o resto da semana lhe causando
espasmos tão fortes que pareceriam descargas de 200 volts. Apesar de sua inteligência de vira-lata faminto não ser
muito boa com números, isso deveras lhe pareceu inconveniente e, devagar, pé ante pé, ele foi se chegando até
retornar ao seu posto e recomeçar tranquilamente a desfrutar de meu sangue em
sua dieta.
Bem,
abandonando os pensamentos metaforicamente traduzidos do animal e retornando a
minha aflitiva situação, o que fica claro é que: 1°) estou desprovido de todos
os meus movimentos voluntários, (provavelmente algum fio soltou-se em meu
cérebro, deixando-me mais rígido do que picolé no inverno antártico); 2º)
exceto pelo meu fiel enfermeiro canibal, estou completamente sozinho; e 3º)
apesar do rico valor calórico e nutritivo do sangue humano, é muito provável
que o apetite do cachorro logo reclame por algo mais consistente, (um nariz, ou
uma orelha, por exemplo).
Aos poucos,
vou me lembrando de como tudo começou...
Estou no
depósito que fica nos fundos da loja de móveis onde trabalho. E era onde eu
estava, um pouco depois de ter aberto a loja às 8 horas da manhã como faço
todos os dias, (bem, colocar aqui entre oito e cinco e oito e vinte seria muito
mais honesto da minha parte e já que esta pode ser uma das últimas ações da
minha vida, é melhor não desapontar mais ainda quem estiver me julgando). Estou
aqui procurando um maldito espanador de pó que esqueci em algum lugar no dia
anterior. Lá estava ele, esbelto e faceiro, com seu corpinho magro e seus
largos quadris, como a “Olívia Palito” dentro de uma grande
saia rodada. Estava sobre uma pilha de escrivaninhas de aço empoeiradas e sob
uma mesa tombada de cabeça para baixo, pequena, mas feita da mais pura madeira
maciça. Alguém, (que obviamente não fui eu), na pressa de fechar a loja ao fim
do expediente a colocou ali, sem nem mesmo se preocupar com o desnível que “Olívia” ocasionava com sua cabeça e seu
tronco sufocados sob a mesa e apenas a saia para fora, provavelmente expondo
suas calcinhas.
Mesmo sem o
mesmo interesse que “Popeye” teria em espiar aquelas calcinhas, subi na maior
banqueta da loja e agarrei-a pela barra da saia, puxando bem devagar, tentando
não arrastar junto seu chapéu de quatro gordos pés apontados para cima. A
altura dificultava bastante o trabalho e, para encurtar a história, a banqueta
tombou, fomos todos ao chão e a mesa fez uma excursão da cabeça de “Olívia” para a minha. Houve um
estrondo; tudo ficou vermelho, depois negro e provavelmente eu apaguei, pois,
daquele momento minha consciência pula imediatamente para este, com Scooby sentado ao meu lado, de garfo e
faca nas mãos, como uma nuvem de gaivotas sobrevoando um barco pesqueiro.
Viro
delicadamente os olhos, por causa das ondas de dor que me inundam e vejo a mesa
a poucos metros de mim, inteira obviamente, (muito mais do que a minha cabeça),
e o espanador um pouco adiante. Isto significa que infelizmente não estou
vivenciando algum pesadelo, pois pesadelos não costumam guardar tantos
detalhes.
Olhando
diretamente para cima, desviando um pouco da cara magrela e do focinho gelado
do Scooby, percebo que a situação
poderia ter sido bem pior. Uma das escrivaninhas, (a que está no topo da pilha
e sobre a qual tive a infeliz idéia de esquecer o espanador), foi deslocada,
provavelmente quando tombei esbarrando nas de baixo que a sustentavam. Num giro
de quase 180 graus, metade dela perdeu o apoio do tampo da debaixo e flutua
pendendo perigosamente na direção da minha cabeça e do meu amigo “cão-de-drácula”. Aparentemente por hora
ela não deve cair, mas eu não esqueceria nem mesmo o espanador em cima dela
nestas circunstâncias se soubesse que minha cabeça iria estar aqui embaixo.
Afinal, se os oito quilos da mesinha de pés gordos me reduziram ao estado de
tira-gosto de cachorro, é fácil imaginar o que me faria os quase 90 quilos de
puro aço da escrivaninha: patê de miolos moídos e carne magra de cachorro.
Meus
agradáveis pensamentos são bruscamente interrompidos por algo que se transforma
numa revigorante chama de esperança: uma voz humana. Parece longínqua,
mas é uma voz humana, sem dúvida. Uma voz de mulher. Claro! As portas da loja
estão abertas desde as oito... (‘tá bom,
‘tá bom, oito e quinze, mas esta não é uma boa hora para me dar sermão sobre a
pontualidade britânica). Hoje sou eu o encarregado da limpeza, o que quer
dizer que Eurico, o outro funcionário, só vai chegar por volta das treze horas,
que é quando começa realmente o movimento de carga e descarga de mercadorias.
Portanto, a loja está vazia e assim como eu estou “dando meu próprio sangue”
para bem atender nosso primeiro cliente, outros com aparências melhores podem
chegar a qualquer momento.
A voz de
mulher retorna, agora mais nítida. Familiar. Bate no balcão e chama por alguém
que possa atendê-la. Chama por Seu Pedro, o proprietário da loja. “Ele está de férias, não sabia, senhora?” Reconheço
enfim a voz. Pertence a Dona Valéria, uma das mais antigas clientes da loja.
Seu Pedro sempre diz que ela foi sua primeira cliente. Assim que ele levantou
as portas, no dia da inauguração, ela entrou. E ela concorda, cheia de orgulho
e carinho por essa longa amizade. Embora pareça ter muito dinheiro, é uma
pessoa simpática e gentil. Sempre nos tratou, (patrão e funcionários), de forma
bem educada, ao contrário de alguns clientes que entram na loja com o nariz tão
empinado que chega a balançar os lustres. É também uma das nossas melhores
pagadoras. Jamais atrasou alguma prestação, coisa quase tão comum no comércio
quanto os famosos cheques “borrachudos”.
Mas sua principal característica é a de gostar de papear e repetir muitas vezes
os acontecimentos de sua vida.
Mais uma vez
meus pensamentos são atropelados por uma manada galopante de dor. Só que desta
vez, a dor não é interna. Abro os olhos devagar e percebo que o vira-lata desgraçado acaba de aplicar
uma caprichada dentada no lado esquerdo de minha face, próximo ao queixo.
Obviamente ele também ouviu a voz e quer encher a pança o máximo possível,
antes que chamem o sádico e exibicionista homem
da carrocinha para tentar laçá-lo e erguê-lo pela pata traseira ou pelo
rabo, como já fizera algumas vezes. E desta vez, tinha um palpite de que
ninguém iria intervir.
Tento
desesperadamente gritar, mas não consigo. Scooby
me olha como se lamentasse profundamente a situação, mas na atual
circunstância, fosse para ela a voz da culpa um pio e a voz da fome, um trovão.
Continua, portanto a mastigar o seu novo ‘Buballoo’ sabor bochecha.
Dona Valéria
continua a chamar insistentemente na recepção. Se eu estivesse me escondendo já
teria me aborrecido e gritado: “não tem
ninguém!” Mas, é infelizmente o oposto o que preciso fazer. Minha maior
preocupação é que, apesar de seus quase setenta anos e da paciência ser uma
virtude inevitável dos idosos, ela acabe desistindo. Será tão difícil imaginar
que há alguém aqui nos fundos da loja, servindo de “self-service”?
O já bastante
desinibido Scooby monta em cima de
mim, farejando cada centímetro de pele descoberta, procurando uma parte bem
mais macia de se abocanhar. Sua respiração é quente e seu hálito tem um cheiro
horrível, como o de alguém que bebeu todo o conteúdo de uma fossa, teve uma
disenteria e depois bebeu tudo de novo, para não perder as calorias. Sinto um
calafrio enorme quando sua língua gelada lambe rapidamente os meus lábios.
Parece que ele encontrou o que queria.
Inspiro
profundamente, fecho os olhos e faço uma última e desesperada tentativa; num
esforço descomunal grito, abro ao máximo o meu maxilar e cravo os dentes sobre
a língua saliente do bicho. O animal urra de dor e pânico e põe-se a correr em
disparada em direção à saída. Cuspo o grotesco pedaço de carne amputada que me
ficou na boca e tento mexer o meu corpo lentamente. Apenas a cabeça responde,
embora lateje como se equilibrasse toneladas de concreto. Mas houve o grito.
Certamente D. Valéria deve ter escutado...
Mal concluo
esse pensamento e ela entra correndo e com uma expressão de medo e preocupação
no rosto. Leva um susto maior ao me ver esparramado pelo chão, a testa bem
inchada e um baita buraco do lado esquerdo da cara. Ela grita espantada, (um
grito grave, de velha, que só seria ouvido por alguém que não estivesse a mais
de cinco metros de distância e isso, tendo um atestado recém adquirido de ótima
audição).
Ela corre
para mim e entra em prantos. Agacha-se ao meu lado e sorri ao perceber sinais
de vida em meus olhos abertos. Faço um grande esforço para retribuir o sorriso.
Mais difícil ainda é desfazê-lo. Ela começa a alisar minha testa e a tagarelar
simultaneamente, o que não me parece ser uma atitude sensata em tal situação.
Tento transformar meu sorriso em carranca para demonstrar meu descontentamento,
mas o meu maxilar insiste em manter aprisionado um petrificado sorriso débil,
como o de quem, em um chá beneficente, sorri apenas para disfarçar o intuito de
tornar a atacar em um intervalo exageradamente curto o prato dos biscoitinhos.
Diante do meu
forçado interesse, ela continua a falar sobre como já havia alertado o
proprietário sobre o perigo de abrir a loja tão cedo por causa dos assaltos, da
necessidade de se contratar mais funcionários; de como os tempos mudaram desde
a época da inauguração e dezenas de outros assuntos que quase me fazem sentir
saudades dos beijos molhados bom e velho Scooby.
Diante disso,
o falatório enfadonho, meu estado deplorável, o cansaço inevitavelmente vai me
abatendo e aos poucos, a voz da mulher vai sumindo...
●●●
Abro os
olhos. Dona Valéria continua aqui. E pior; continua falando ao léu. Tem uma
expressão triste.
Minha cabeça
está sobre seu colo. Louca! Não sabe que pode ter causado danos irreversíveis
aos ossos esmigalhados de minha coluna?! Obviamente não adianta procurar pelos
bombeiros ou a polícia. A velha esclerosada não chamou ninguém. Passou não sei
quanto tempo, (talvez horas), conversando com um moribundo em seu colo, como se
suas palavras fossem algum ritual de exorcismo. Ela continua a acariciar a minha
testa, mas agora ela está usando luvas. Talvez já estivesse antes, mas meus
sentidos estavam entorpecidos demais para perceber. Isso não importa, afinal,
no chão deste como no de qualquer outro maldito galpão faz um tremendo frio.
Ela percebe
que eu acordei, sorri e volta a falar diretamente para mim. Seus olhos estão
bem vermelhos. Deve ter chorado bastante.
Ela me diz
que tem se sentido muito solitária desde que seu único filho morreu num
acidente de carro, há três meses. Há menos de dois anos já havia perdido o
marido e esse segundo golpe foi mortal para sua alegria de viver.
Lembro-me bem
do filho dela. Já a acompanhara à loja algumas vezes, sempre com ternos
elegantes e um ar extremamente esnobe. Herdou do pai uma micro-empresa com dez
anos de tradição, que possuía até uma boa credibilidade e em pouco mais de um
ano a frente dos negócios, afundou-a em dívidas e desfalques que o levaram a
ser processado várias vezes, até que, com a firma já falida, vários processos
por emissão de notas frias, cheques sem fundo e diversas outras formas de
estelionato, foi condenado a 8 anos de reclusão. Apelou e conseguiu aguardar um
novo julgamento em liberdade. Tentou fugir do país e próximo à fronteira com a
Bolívia, foi perseguido por policiais e despencou com o carro de um barranco de
20 metros.
Além da perda
do filho, Dona Valéria teve que arcar com as várias dívidas deixadas pelo
pilantra. Quase todos os seus bens e propriedades foram a leilão e pouquíssima
coisa lhe restou da herança do marido. Com este pouco que sobrou começou a
reconstruir sua vida. Mudou-se para uma casa mais modesta e cortou a maioria
das regalias que possuía, embora sempre conservasse a aparência de uma senhora
de fino trato, andando sempre bem vestida e dispondo de uma elegância que poderia
levá-la a ser convidada para qualquer evento da 1ª classe.
Cultivava
também uma paixão forte pela arte.
Do patrimônio
da família conseguira salvar poucas coisas, mas após saldar como pudera as
dívidas deixadas pelo filho e desde que se viu sozinha no mundo, seu grande
passatempo, (pra não dizer fixação), era passear por galerias, brechós e lojas
de antiguidades da cidade e da periferia à procura de algum quadro ou objeto de
expressivo valor artístico, mas, claro, que estivesse dentro de seu limitado
poder aquisitivo. Sinceramente, não teria problema algum em sacrificar-se,
passar meses financeiramente apertados para comprar um determinado objeto que
lhe agradasse muito, afinal, fora o único prazer que lhe restara. Era o que ela
chamava de amora à primeira vista. E é justamente de uma dessas peças que ela
está falando agora. A que mais faz seus olhos brilharem, apenas por se lembrar
dela, como ela mesma diz. Está chorando de novo. Tem os olhos vidrados.
No momento, a
peça é o que ela mais deseja, pois é exatamente igual ao presente que ganhara
do marido, no início do noivado, há mais de cinqüenta anos e que fora roubada
junto com jóias de menor valor, coincidentemente num período em que, tendo ela
e o marido partido numa viajem, a casa ficou sob os cuidados do filho do casal.
Então, anos
após a morte do marido, essa nova peça, idêntica a outra, aparecera trazendo de
volta maravilhosas recordações. Não se importaria, de forma alguma, em passar
meses a fio economizando, comendo pão e água, se preciso, só para adquirir a
tal peça. Talvez o valor dela nem seja tão alto. Ela diz que não é esse o
problema. Infelizmente para ela, o objeto não está à venda; pertence a um
grande amigo que cativa pela peça um apreço tão grande quanto o dela, pois
pertencera a sua esposa também já falecida.
Os olhos de
Dona Valéria vagueiam delirantemente pelo ambiente e se fixam na escrivaninha
pendente sobre nós. Ela parece não se incomodar com o risco iminente e continua
a falar sobre seu apreço pela misteriosa peça.
Fecho os
olhos e já iria me aprontar para apagar de novo quando a ouço revelar
finalmente qual o objeto que ela tanto deseja. Uma boneca de porcelana, com um
longo vestido rodado; as bordas majestosamente cobertas com filetes de ouro e
decorada com diversos pequenos detalhes de ouro e pedras preciosas. Pertenceu à
esposa de um senhor viúvo, que nunca teve filhos e, por isso, agora guarda o
artefato como uma das últimas lembranças de seu grande amor.
Torna-se
muito fácil, então, a visualização da tal peça em minha mente. Ela está muito
mais próxima do que eu poderia ter imaginado. Para falar a verdade, a menos de
30 metros daqui. E seu legítimo dono também é um velho conhecido meu; chama-se
Pedro e é meu patrão. A boneca fica guardada dentro da cristaleira ao lado da
mesa dele e já está ali desde que sua esposa faleceu, há quase vinte anos.
Percebo a
intenção de Dona Valéria pouco antes de ela dizê-la.
- Que pena que vocês jovens sejam tão
imprudentes. Não devia ter jogado todo seu peso nas escrivaninhas quando caiu,
pois assim é inevitável que uma delas despenque sobre você.
Ela
cuidadosamente deposita minha cabeça novamente sobre o chão e se levanta,
sacudindo as mãos e o vestido, como se quisesse se livrar de qualquer vestígio
de mim. Dá a volta por trás da pilha de escrivaninhas, usa a de baixo como
apoio para poder subir, alcançar a de cima e dar-lhe um empurrão brusco que a
faz despencar na minha direção.
Sem realmente
saber como, apanho a mesa de centro, que felizmente está ao alcance do meu
braço e ergo-a a frente do meu rosto, como um escudo. Há um estrondo horrível e
a mesa se parte com o impacto do choque. Ainda consigo ouvir os passos de Dona Valéria fugin...
∞
Abro
os olhos e quase de imediato percebo que não morri. Estou num hospital. Meu
chefe e o outro funcionário que trabalha comigo estão sentados ao lado da minha
cama. Tento movimentar meus membros e suspiro aliviado quando todos os meus
dedos respondem, embora alguns estejam tão doloridos que se emancipariam do
resto do corpo caso eu os tentasse mexer de novo.
Eles
me contam que fui encontrado pelo carteiro que entrou na loja vazia e ouviu
gemidos. Tive o nariz e alguns ossos da face, próximo aos olhos, quebrados pelo
impacto. Se a quina da escrivaninha me tivesse atingido um dos olhos, muito
provavelmente essa vista essa vista estaria perdida e eu estaria procurando ver
o lado bom de tudo com uma perspectiva a menos. Pra falar a verdade, além de
uma bruta sorte, o que eu tive mesmo foi a ajuda de alguma mão divina que estendeu meu braço e me fez apanhar aquela bendita
mesinha e me livrar de um, (possivelmente irrecuperável), traumatismo craniano.
Até
agora, ninguém me perguntou o que aconteceu. Isso porque eles já têm uma
concepção de tudo, que parece estar até bem mais definida do que a minha. Ambos
estão aliviados por eu estar vivo e nisso eles são muito sinceros, mas Seu
Pedro parece estar muito abatido. A princípio imagino que seja por causa de sua
porcelana de estimação que fora roubada, mas acabo descobrindo que o descuidado
ladrão, (ladra, eles não sabem), que
entrou na loja e me atacou, provavelmente na pressa de ir embora, pegou a peça
desajeitadamente e a espatifou no chão. Então, deve ter se assustado com algum
barulho e fugiu sem levar mais nada, (era
a única peça que ela queria, eles não sabem). Lamentei, pois sabia da
profunda estima que Seu Pedro tinha pela peça, mas ele me surpreendeu e me
encheu mais ainda de admiração quando disse que ao chegar à loja, depois de ter
sido avisado pela polícia, sua única preocupação fora com a minha saúde. Qualquer
outra coisa não tinha importância. Agradeci comovido e ia-lhes contar quem era
o tal ladrão, quando, após uma pausa breve, mas carregada de tristeza, Seu
Pedro me contou por que, apesar de estar feliz pela minha recuperação, está
também muito abalado e triste com uma notícia que recebeu pouco antes de sair
de casa para vir ao hospital me visitar. Ele me pergunta se me lembro de Dona
Valéria, cliente muito antiga e prezada de nossa loja. A indagação me espanta.
A princípio acredito que ele já está a par de tudo. Confirmo, fazendo sinal com
a cabeça. Antes de contar o que houve, Seu Pedro se derrete em elogios à
bondosa senhora. Até mesmo uma lágrima ele derrama enquanto fala dela e de sua
inacreditável amizade e dedicação. Um sorriso irônico tenta me escapar dos
lábios, mas me esforço para conseguir retê-lo e eles não percebem. Antes mesmo
de Seu Pedro concluir seu discurso de exaltações às prendas infinitas de sua
melhor freguesa e amiga, é fácil prever o que ele realmente tinha a dizer: Dona
Valéria suicidou-se. Provavelmente sucumbiu à solidão, (ou ao remorso, eles não sabem), e tomou 5 caixas de veneno para
ratos. Ainda agonizava quando a encontraram em seu quarto, mas seu organismo
fraco e debilitado não resistiu à alta dose de intoxicação. Uma nova lágrima
desce com vontade pelo rosto de Seu Pedro. Ela lhe era uma amiga realmente
muito querida. Teria lhe dado, sem dúvida, (e de bom grado), a maldita boneca
se soubesse que ela tanto a desejava. Mas ela teve medo de sequer lhe
perguntar. Preferiu guardar para si aquela fascinação que se transformou em
cobiça e acabou por consumi-la por inteiro. Tornou-se no fim, uma psicótica
assassina.
Claro
que não vou contar a ele. Ninguém ganharia nada com isso. Por que tirar dele o
que uma amizade pode deixar de mais precioso que é a confiança? As boas
lembranças que temos das coisas importantes que perdemos é uma prova da
sabedoria da Mãe Natureza.
»»»»»»»»»»»»
Estou
aproveitando muito bem as minhas férias.
Seu Pedro as
antecipou em alguns meses, assim que deixei o hospital. Brincou que não quer
nenhum funcionário seu estressado, cansado e fraco na hora de enfrentar
ladrões. Eurico deu pulos de alegria ao saber que será o próximo a ter férias
antecipadas.
As feridas em meu
rosto estão quase cicatrizadas.
A propósito, a
polícia atribuiu a marca da dentada em meu rosto a um suposto cachorro que o
bandido teria trazido consigo, para intimidar quem estivesse na loja. O próprio
cão teria me derrubado e no tombo tudo teria despencado por cima de mim.
Foi ótimo não
precisar ficar inventando desculpas já que a polícia bem o fazia por mim. Eu ia
apenas confirmando tudo com certa indiferença, querendo deixar logo todo esse
assunto para trás. Só para ter algo divertido para lembrar futuramente,
disse-lhes que o cão que o bandido trouxera fora um grande e feroz pitbull. Os peritos acharam pouco
provável que o ferimento modesto em meu rosto fosse proveniente da poderosa mandíbula de um pitbull, mas ninguém tinha motivos para
duvidar da minha credibilidade, principalmente porque eu estava apenas dando o
meu aval para que eles criassem sua própria história; seria o início de uma
nova onda de assaltos, onde a máquina mecânica de matar era substituída pela
máquina biológica?
Aluguei uma casa
de campo para curtir meu breve período de férias. Como Seu Pedro dissera, fugir
do estresse e da violência urbana fez muito bem a mim e também ao Scooby. Ah, esqueci de dizer: Scooby agora mora comigo. Depois que
deixei o hospital, percebi que ele havia sumido da vizinhança. Dei um pulo até
o canil da cidade e lá estava o sacaninha
a poucos dias da sua execução. Arquei com alguns custos, que incluíram um belo
banho com sabonetes, xampus e medicamentos contra pulgas, carrapatos e todas as
hordas de parasitas, além das vacinas necessárias e tratamento contra vermes.
Atualmente a aparência dele está muito melhor; não parece mais um zumbi
putrefato de cachorro. Confesso, sem falsos pudores, que algumas vezes,
principalmente no início, tive vontade de servir-lhe um belo prato de bistecas
envenenadas e depois sentar na minha poltrona preferida para vê-lo agonizar,
mas nunca tive realmente determinação suficiente para fazer isso. Além do mais,
ele revelou-se um ótimo companheiro quando a voz da fome não lhe está
sussurrando que humanos paralisados são ótimos quitutes.
A última surpresa
ficou por conta de Dona Valéria. Foi encontrada uma “carta-testamento” em sua casa, escrita por ela própria pouco antes
de se suicidar. Nela, especificava que os poucos bens que ainda lhe restavam
deveriam ficar com o único amigo que ela tivera realmente na vida, depois que
seu marido partira: Seu Pedro, é claro. E numa nota de rodapé, deixou também
uma vultosa quantia para ser repartida entre mim e Eurico, que sempre havíamos
sido dedicados e cuidadosos e atenciosos para com todos os clientes da loja,
segundo ela. Isso aumentou a admiração de Seu Pedro pela mulher, não pelo
dinheiro, mas pela sincera demonstração de amizade. Também me fez sentir-me bem
por não ter dito a verdade sobre a história do assalto. O fato de Scooby estar agora comigo, ao meu lado,
é a maior prova de que a grande lição disso tudo é a de que por mais terrível
que seja uma situação, pior ainda é se dela ficamos com a raiva e os
sentimentos negativos que nos mantêm perpetuamente ainda presos nas mesmas
dificuldades. O melhor de tudo é perdoar e esquecer, mesmo que esquecer
signifique apenas seguir em frente.
≈
XI –
ELOS FLEXÍVEIS
Lídia se matou
exatamente às onze e quinze.
Luciana e Débora
se certificaram conferindo os batimentos cardíacos e a respiração. Logo em
seguida, as onze e vinte e três, foi a vez de Luciana. Esta, a princípio não
morrera. Tudo bem; um mero acidente de percurso. Apesar dos olhos de Luciana
ainda brilharem quando Débora despejou entre eles o terceiro tiro da arma de
seis balas, aquilo foi apenas para apressar as coisas. As portas da morte já
estavam escancaradas e seria virtualmente impossível que ela não as cruzasse.
Débora se viu só,
então. Ela era a última e era a sua vez. Embora já tivesse repassado aquela
cena em sua mente por dezenas de vezes, preparando-se a cada uma delas para se
sentir absolutamente dona da situação, todos os seus esforços pareciam estar
indo, numa velocidade assustadora, por água abaixo. O grande medo, que afligira
as três a princípio, mas que a certo ponto pareceu-lhes plenamente superado,
voltou, mais sólido do que nunca. Milhares de pensamentos pareciam invadir seu
cérebro, como o avanço impetuoso de uma manada enfurecida. Se errasse o tiro,
ou não fosse ele suficiente, ninguém mais haveria para aplicar-lhe o golpe de
misericórdia, como acabara de fazer com Luciana. Poderia morrer lenta e
dolorosamente. Era um pensamento atrevido e teimoso, pois bem sabia ela que era
remotíssima a possibilidade de erros. As três haviam estudado durante muito
tempo a anatomia e descobriram os exatos pontos no tórax, na face e na cabeça
que são a perfeição para qualquer executor profissional.
Olhou para o
relógio na estante: eram onze e meia. Haviam combinado a data da funesta
cerimônia seis meses antes. Eram amigas de faculdade e se conheceram no 1º ano,
mas só a partir do segundo estreitaram bastante as suas relações. Lídia tinha
24 anos, Luciana 26 e Débora era a mais velha, com 28. Pertenciam todas à
classe média e viviam razoavelmente bem. Luciana e Lídia eram filhas de
empresários e o pai de Débora era médico. As três, todavia, optaram pelo curso
de Direito e nele se conheceram e se tornaram amigas. Cada uma, na época,
namorava sem maiores pretensões um garoto da mesma classe, o que facilitava e
muito quando queriam sair juntos. Com o tempo, porém, a relação entre as três
amigas estreitou-se de tal forma que assustou os rapazes, (possessivos, como a
maioria o é), incapazes de admitir ter de dividirem as atenções com aquela
amizade inquebrantável. Sentenciosamente os namoros terminaram sem que isso
abalasse, de nenhuma forma, o elo que as unia.
Outro fato que
fortaleceu ainda mais a relação entre elas foi a religiosidade. Quando se
conheceram, apenas Lídia era uma espiritualista convicta, embora pouco se
apegasse a qualquer religião. Acreditava em Deus como o sentido e a solução
para tudo, mas achava que nenhuma das religiões existentes apontava a estrada
absolutamente certa para chegar até Ele.
Luciana era, por
sua vez, a católica típica, que quase
nunca vai as missas, uma vez feita a primeira comunhão, salvo em dias santos e
ocasiões especiais. Todavia, sempre que questionada, sabia defender com extremo
afinco sua religião.
Débora também era
um caso a parte: era espírita. Principalmente porque seus pais eram espíritas,
assim como os seus avôs e a maioria de seus tios. Seu avô e sua mãe eram
médiuns extremamente sensitivos e conversavam com espíritos o tempo todo. E ela
acreditava piamente em sua mãe e em seu avô, acreditando também assim na presença
constante e maciça daqueles espíritos. Mas, morria de medo deles e isso ninguém
sabia. Ocultara por toda a sua vida aquele pavor brutal que sentia para não
desapontar os pais e a família. Por muito tempo, todos chegaram até a acreditar
que ela possuía um grande potencial para se tornar uma ótima médium. Mal sabiam
que se algum dia, algum espírito lhe falasse, ou pior, lhe aparecesse, sairia
imediatamente correndo e se enfiaria sob a saia do primeiro padre que
encontrasse.
E fora justamente
esse medo a gênese da louca idéia de suicídio coletivo que culminaria por
deixá-la na atual situação.
Assim que se
confessou às amigas sobre o medo que desde a mais tenra infância a corroia,
elas prontamente se dispuseram a livrá-la daquele trauma, mostrando-se irredutíveis
apesar da relutância inicial de Débora.
Começaram as três,
assim, a estudar minuciosamente diversas religiões, seitas e misticismos
antigos e contemporâneos, atrás de respostas jamais encontradas
satisfatoriamente pela humanidade. Por
que temer a morte e conseqüentemente os mortos?O que ela representa, na
verdade? Um fim? Uma passagem? Será humanamente possível algum dia deveras a
decifrar?
O que poderia
parecer utópico e enfadonho para muitos, tornou-se para elas uma motivada
obsessão. Adquiriram pilhas de livros religiosos, filosóficos e esotéricos e em
pouco tempo já haviam construído uma respeitabilíssima biblioteca sobre o
assunto. Somando-se isso às minuciosas pesquisas nas bibliotecas públicas e na
internet, logo se tornaram profundas conhecedoras desde as principais até as
mais diversas concepções sobre a possibilidade de vida após a morte já
formuladas desde o surgimento do homem na Terra. Claro que, daí até aceitar um
desses conceitos como definitivo havia uma enorme distância. Todos pareciam
falhar em algum ponto. Mas, todos tinham também um importante ponto em comum.
O grande pilar que
sustentava a veracidade de cada um deles era invariavelmente a fé que lhes era
atribuída pelos que neles acreditavam. Assim, a ressurreição era verdadeira
porque os cristãos a tornavam verdade, a reencarnação existia porque os
espíritas, hindus e vários outros grupos fundamentavam sua existência; podia-se
até, segundo alguns, viver eternamente, manipulando forças desconhecidas pela
maioria da humanidade. De fato, assim era com islâmicos, judeus,
confucionistas, nativos indígenas e qualquer outro segmento onde a humanidade
procurasse justificar a idéia do fim da vida. Todas as doutrinas eram
pertinazes e respeitáveis enquanto grupos se predispusessem a acreditar nelas.
Aos inadaptados, por que então não desenvolver sua própria doutrina?
Foi o que as três
jovens fizeram...
●
Fundamentada
plausivelmente ou não, a idéia era simples.
Obviamente
pareceria excêntrica e pedante para a maioria dos analistas de plantão, mas que
fossem todos eles à merda. Qual já voltara do reino dos mortos com um dossiê
completo de suas impressões de lá? Nada era a absoluta expressão da verdade
sobre o assunto, mas todas as doutrinas pareciam ser parte de um grande
quebra-cabeças chamado ‘pós-vida’.
Havia
a vida, obviamente; em conseqüência havia a morte. E havia um espaço entre
ambas que elas chamaram de limbo. Instantes após a morte definitiva, o espírito
se transpunha do corpo físico, para acolher o seu destino. Esta permanência do
espírito à deriva pode ser claramente sentida pelos que estão no mesmo ambiente
em que se constatou o óbito, pois este mesmo ambiente sofre alterações sutis
causadas pela presença do espírito desencarnado. O ar parece se tornar mais
frio e mais denso, podendo até chegar a dificultar nossos movimentos. Além
disso, a presença do espírito parece desestabilizar completamente a aura
humana, provocando-nos sensações bastante variáveis para cada indivíduo, mas
que geralmente nos transmitem impressão de fragilidade. Esse espaço de tempo,
ou “limbo”, também variava muito, mas
nunca ultrapassava o período de uma hora, após a desconexão entre corpo e
espírito.
Conseguindo-se,
então, segundo as três pesquisadoras, pela rígida meditação, um intenso
controle da própria vontade, pessoas que desencarnassem dentro da mesma hora e
do mesmo espaço poderiam encontrar-se e partilhar exatamente do mesmo destino.
Estava assim destituído o conceito de “até
que a morte os separe”.
“Se abdicarmos de nossas vidas dentro da
mesma hora e tivermos força suficiente para manter uma intensa concentração
quando desencarnarmos poderemos seguir juntas para o mesmo destino no
‘pós-vida’” – (havia dito uma delas).
“...e se este destino for, digamos, não
muito agradável?” – (retrucara outra).
“...enfrentaremos juntas, ou a ele também
juntas nos oporemos. Ou passa pela sua cabeça que alguma de nós conseguira
viver em paz no paraíso, enquanto outra sofre perpetuamente no inferno?”.
“...não, é claro que não!” (era difícil
recordar agora de quem foram as falas, mas certamente fora dela esta última).
Daí
para frente os estudos continuaram, mas não houve mais questionamentos. A cada
uma importante tornou-se apenas o sentimento que nutriam entre si. Muito mais
do que uma amizade; um vínculo, uma atração irresistível.
Débora
voltou a olhar para o relógio. Faltavam dez minutos para o meio-dia. Ficou
alarmada. A cada minuto que se passava distanciava-se mais da possibilidade de
reencontrar as amigas. Não podia conceber, no entanto, que pudesse fraquejar.
Acreditava que o seu medo era passageiro e em questão de segundos se
dissiparia. Mas, longos minutos se passavam e em seu coração continuava a
reinar um desejo louco de sobreviver, de deixar aquilo tudo para trás, embora
para isso tivesse de esquecer completamente de sua consciência, o que era tão
ilógico quanto querer, da noite para o dia, trocar de personalidade.
Mas
o que poderia ser mais ilógico do que disparar aquele gatilho? Naquele momento,
talvez apenas o não o fazer...
Tentou
lembrar-se de seus pais e de seus amigos que permaneciam vivos, mas não foi
possível. As únicas pessoas que povoavam a sua mente eram Lídia e Luciana,
cujos corpos jaziam esparramados em meio a uma grande poça de sangue no tapete
do chão da sala. Na noite anterior, estavam todas excitadas, escolhendo a arma
que seria instrumento de seu mais obsessivo desejo de libertação. Compraram-na
no “câmbio-negro” da faculdade, sem
maiores problemas, nem qualquer necessidade de explicações. Mesmo por que,
desde que pagassem, obteriam a arma da mesma forma, ainda que confessassem seus
reais propósitos.
Assim,
com a arma em mãos, partiram para sua última noite neste plano. Naquele
momento, sobre suas decisões pareciam não pairar nenhuma dúvida... ...mas
pairavam. É claro que milhares de dúvidas pairavam na mente de pelo menos uma
delas, (talvez até na das três, mas não mais havia como ter certeza quanto a
isso), e por agora ser ela a única a permanecer viva, essa insegurança se
multiplicara por mil.
Mas
por que não deixara que as tantas dúvidas que tinha transparecessem na noite
anterior?
Pior
do quer isso: agira de forma absolutamente contrária, com palavras de
encorajamento cheias de certeza que induziam as amigas a se fortalecerem nas
convicções de que o que faziam estava realmente correto. Com a eloqüência de um
sadismo inexplicável, mas que se revelava inerente a sua alma, ela conduzia as amigas
rumo à morte, como uma criança diabólica conduz outras crianças vendadas rumo
ao precipício numa mortal brincadeira de “cobra-cega”.
“Sim,
amigas. Nossa amizade poderá ir além de qualquer coisa, mesmo dos limites da
morte.”
E
fitara com extrema serenidade os olhos de Lídia e Luciana enquanto confessava
suas palavras. Por dentro estava cheia de medo, mas não queria, (não podia), de
forma alguma deixar transparecer; tinha que se mostrar forte para elas como
tivera que se mostrar forte a seus pais para não os desapontar. Bastava a ela,
(e apenas a ela), saber que era uma fraca e sempre seria uma fraca por toda sua
miserável vida.
Já
não fazia diferença, mas até podia estar sendo muito dura consigo mesma. Amava
as amigas. De forma alguma premeditara um desfecho diferente do que elas haviam
combinado anteriormente. Se tudo chegara àquele ponto fora apenas por que ela
em algum momento perdera o controle.
“Este
lindo sentimento que arde dentro de nós parecendo querer explodir só pode ter sido criado para
transcender nossa reles existência física.”
Faladas
sempre no plural, suas palavras soavam com fúria e envolviam as três naquela
chama ardente de paixão.
Luciana
repousou a mão na perna de Lídia, que acolheu sem desviar sua compenetrada
atenção.
Ela,
Débora, que sempre parecera a mais reservada das três, continuou a discursar
como se conhecesse com maestria todos os mistérios do dom da palavra,
“Se
dentro da mesma hora desfizermo-nos de nossas vidas, hemos de nos reencontrar
instantes depois para sermos aceitas e nunca mais separadas.”
Lídia
apanhou a mão de Débora, ainda com a mão de Luciana pousada em sua coxa.
Entregaram-se então as três a grandes beijos apaixonados e nada mais precisou ser dito.
Naquele
momento, houve um fato que lhe despertou a atenção, mas que conseguiu ignorar.
Só agora ele voltava e com uma força muito maior, mostrando-se muito mais
difícil de ser ignorado.
Enquanto
beijava Lídia e Luciana, Débora se lembrou de Joe, seu ex-namorado. Por mais
inconcebível que pudesse parecer, foi uma lembrança saudosa e agradável. Das
três, fora ela a única a terminar o namoro por própria iniciativa. Isso porque,
enquanto os namorados de Lúcia e Lídia se revelaram ciumentos e possessivos,
Joe demonstrou que certamente saberia respeitar a forte união cativada entre as
três amigas. Infelizmente, na época parecera a Débora ser extremamente injusto
continuar seu relacionamento, já que o das amigas definhara. Assim, ela
terminou com Joe e achava até então que nem pensava mais nele. Só que a imagem
dele agora era lúcida e concreta em sua mente, fazendo seu corpo estremecer dos
pés ao cérebro.
“Só
que isso não condiz com as regras, você sabe.”
(uma voz: alheia, mas familiar...)
Lembrou-se
de imediato a quem pertencia: era a voz de Luciana.
“Não
vai querer aplicar pra cima da gente esse papo de vilã arrependida, que vira
mocinha no final do filme, certo?”
“Calma,
Lúcia. Ela já está bastante nervosa”.
(outra voz: Lídia!)
<voz de Luciana> “Calma
o cacete! Depois de tudo o que aconteceu, ela não tem o direito de ficar em
dúvida.”
<voz de Lídia> “Talvez
ainda haja tempo de repensar se tudo não foi um erro...”
<voz de Luciana> “Sim,
há muito tempo... ...para ela, mas e quanto a nós? Ah, já sei! Somos um mero
contratempo. Nada que alguém tão cheia de vida não possa resolver. Claro que
ela irá anualmente levar flores em nosso túmulo. Talvez leve até um futuro
namoradinho com ela.”
Débora
chorava com vontade a essa altura. Eram onze e cinqüenta e sete. Pelos cálculos
que haviam minuciosamente discutido nos últimos quatro meses, tinha apenas três
minutos para dar cabo da própria vida, ou as almas das outras já se teriam
dispersado.
Mas
os conflitos continuavam de forma intensa em sua mente.
<voz de Luciana> “Pode
ser até mesmo o idiota do Joe. Quem sabe não pinte um clima e eles trepem bem
em cima dos nossos túmulos.”
<voz de Lídia> “Já
chega, Luciana! Cale essa maldita boca!”
<voz de Luciana> “Não é
tempo de ponderações, Débora, mas de fazer o que é certo.”
Débora
levou a arma até a cabeça. Eram onze e cinqüenta e oito.
<voz de Lídia> “Não,
Débora! Não precisa fazer isso!”
Sim,
era preciso. Débora começou a sentir uma grande sensação de torpor. A qualquer
momento poderia desmaiar e então tudo estaria perdido. Chegara definitivamente
o momento derradeiro de agir.
A
campainha soou. Faltava um minuto para o meio-dia. Tornou a tocar e, não
obtendo resposta, o visitante bateu na porta e chamou:
-
Débora! É o Joe. Você está aí?
-
Joe! – ela gritou e nesse instante, exatamente ao meio-dia, do lado de fora o
rapaz ouviu o tiro...
●
Débora
sobreviveu.
Por
muita sorte, disseram os médicos. A bala atravessou sua cabeça, sem, no
entanto, danificar seriamente qualquer parte do seu cérebro; como se escolhesse
a dedo por qual caminho poderia ou não seguir.
Após
duas semanas internada, foi liberada já plenamente recuperada. Teve de dar
várias explicações à polícia, mas acabou sendo liberada mediante a uma séria
recomendação a sua família para que começasse imediatamente um tratamento
psiquiátrico. A carta redigida pelas três confessando todo o ritual de suicídio
múltiplo livrou Débora de qualquer suspeita de homicídio doloso.
Joe,
que arrombou a porta do apartamento assim que ouviu o disparo, agora não
deixava a moça sozinha nem um minuto. Ficara chocado ao encontrar os corpos das
três amigas, mas teve calma para chamar imediatamente a polícia e o socorro
médico, o que foi fundamental para que se conseguisse ainda salvar a vida de
Débora.
Assim
que ela recebeu alta eles começaram a namorar e um ano depois se casaram, já
com ela grávida de três meses.
Débora
ficou bastante surpresa assim que soube que teria gêmeos. Quando descobriu que
seriam duas meninas ficou apavorada. De alguma forma, teve plena convicção de
que Lídia e Luciana estavam voltando para se vingar. A ninguém, (nem mesmo a
Joe), contara ela toda a verdade sobre a história das três. Jamais teria
coragem de revelar que no momento mais crucial ela fora a única a fraquejar.
Todos acreditaram que ela realmente tivera apenas sorte para escapar da morte,
mas ela bem sabia que se não quisesse, jamais teria errado o alvo daquele tiro.
Agora, a justiça divina, ou como
quisessem chamar estava possivelmente concedendo às amigas o direito de fazer
justiça com respeito à traidora. Provavelmente morreria durante o parto de
forma trágica e com muito sofrimento. Sonhara diversas vezes com isso, sempre
despertando abruptamente e suando frio, não raras vezes após um intenso grito
de pavor, quase entrando em choque.
Por uma única vez a idéia do
aborto lhe passou pela cabeça, mas ela a afastou, com raiva. Não iria abandonar
novamente as amigas. Aceitaria a morte, ainda que dolorosa desta vez. Merecia
isso...
●
As gêmeas Lídia e
Luciana nasceram de um parto que transcorreu incrivelmente bem.
A
mãe, que já havia decidido quanto aos nomes desde que soubera que daria luz a
duas meninas, não apresentou qualquer complicação, o que também facilitou e
muito a sua recuperação. As crianças, lindas e saudáveis, só foram motivo de
festa e orgulho para os pais e toda a família.
Débora
e Joe formaram-se. Ela se transformou promotora e ele juiz.
A
festa do segundo aniversário das gêmeas foi uma das mais badaladas da história
do bairro. Houve muitas crianças, brinquedos e grupos de animação. Dezenas de
convidados se reuniram no apartamento recém adquirido pelo casal, no décimo
andar de um luxuoso prédio com vista para o mar.
Com absoluta alegria as meninas brincaram e se
divertiram durante a festa, sob os olhares zelosos dos pais. Num único instante
em que passaram despercebidas, ganharam o corredor do prédio, tencionando
brincar um pouco ali, longe da multidão. Estavam gostando muito da festa, mas
mais do que tudo, apreciavam a companhia uma da outra.
Já se
preparavam para voltar para a festa, quando ouviram:
<voz de Luciana> “Hei,
meninas! Venham aqui!”
Perceberam
imediatamente a estranha voz vinda do meio do corredor. Não a reconheciam, mas
era tão doce e delicada que se sentiram impelidas a segui-la.
<voz de Luciana> “Eu estou
aqui. Vamos, venham!”
●
Débora e Joe
conversavam com os pais de uma das crianças convidadas. Era uma das amiguinhas
das gêmeas. O pai dela era diretor de um dos cartórios sob a jurisdição de Joe.
Há
alguns poucos instantes Débora dera pela falta das filhas, mas a conversa com
os convidados momentaneamente a distraíra. Até ser abruptamente despertada...
<voz de Lídia> “Vá
depressa! Elas estão lá com ela.”
Aquilo
foi um choque. O maior de todos, em toda a sua vida. Saiu imediatamente
correndo já aos prantos, empurrando convidados adultos e crianças...
●
As duas
garotinhas enfim descobriram de onde provinha a tal voz: do fundo do poço do
elevador, que não se encontrava naquele andar no momento. A voz continuava a
lhes falar de forma meiga e suave, quase como a da sua mãe.
<voz de Luciana> “Então,
meninas. Não querem vir aqui comigo? Prometo que vamos nos divertir muito.”
-
Você vai? – perguntou ingenuamente a
pequena Lídia para a irmã.
-
Eu vô. E você? Vai tamém?
- Vô.
Assim,
Lídia pulou primeiro. Houve um breve instante de silêncio e logo em seguida um
baque surdo, meio longínquo.
A
menina Luciana protestou em direção ao poço, para a irmã:
- Me espera, Lídia! Eu vô tamém.
E
pulou em seguida.
Débora
chegou ao corredor ainda a tempo de ver a filha, mas tarde demais para
impedi-la de saltar rumo ao abismo.
≈
XII – MALDIÇÃO DAS SOMBRAS
O Escuro avançou violentamente sobre a pequena July. Em
seus onze anos, Ele sempre fora seu
pior inimigo. Tinha as vezes, é verdade, alguns concorrentes como os indivíduos
notórios marginais estupradores e homicidas que tocavam as meninas na saída da
escola em plena luz do dia e as vistas de qualquer um. Ficava fácil então
imaginar o que devia acontecer com as garotas do período noturno. E nada era
feito a esse respeito, já que na favela em que ela morava, num dos bairros mais
pobres da cidade, os casos mais escabrosos de violência não passavam de
histórias banais do cotidiano.
Outro
concorrente do Escuro eram as
baratas; enormes, gigantescas como mutantes. Pode parecer um problema menor em
relação ao anterior, mas só uma pré-adolescente de onze anos conseguiria
imaginar o extremo pavor de sentir infalivelmente por todos os dias seu leve
sono ser perturbado pelo formigamento do caminhar das patas do asqueroso bicho
em seus braços, pernas, rosto, cabelo e até sob as roupas, muitas vezes. Isso
sem dizer pelo chão, paredes, teto e janelas, tão a vontades quanto modelos nas
passarelas.
Mas,
o mais forte concorrente era certamente o homem gordo e beberrão que
recentemente se juntara com sua mãe, que sequer a consultara, ou a seu irmão.
Este, quando soube, fugiu imediatamente de casa, indo viver nas ruas sob as
bênçãos do novo padrasto que se vangloriava em alta voz de que o garoto só lhe
havia poupado trabalho, pois era questão mera de tempo para ele pô-lo da porta
para fora com um pontapé, pois conhecia de longe um mau elemento e não
permitiria que nenhum permanecesse sob o seu teto.
A
mãe não fez nada para impedir. Quando percebeu a burrada que tinha feito, só
lhe restou ser submissa e servil. Queria um homem que pagasse as contas e
conseguira. Não lhe cabia agora reclamar de maus tratos para com ela e os
filhos. A dura vida lhe ensinara que para os miseráveis, as compensações jamais
deveriam amortizar mais do que 20% dos sofrimentos.
Para
July, o que a primeira vista figurara-se como um alívio, já que constantemente
apanhava do irmão por motivos fúteis e incompreensíveis muitas vezes,
revelou-se uma mortificação ainda maior, pois passou a apanhar do padrasto
ainda com maior freqüência e sem motivo algum. Houvera nas primeiras vezes
ainda algumas justificativas infundadas como “cerveja não suficientemente gelada”, “roupa não suficientemente limpa”, “comida não suficientemente temperada” e coisas assim, mas, em
pouco tempo, já extremamente familiarizado com o novo lar, que ninguém lhe
questionasse sobre os motivos quando dava
na pirralha um bom pontapé, ou empurrava
sua cabeça-oca contra a parede.
As
conclusões revelaram-se por si mesmas; tudo o que fazia, declarando ser apenas
uma forma de extravasar, tinha outro nome, conhecido e extremamente degradante:
racismo. Na verdade, embora tivesse se casado, (se ajuntado, popularmente
falando), com uma mulher negra, pressupondo-se assim que não teria problemas
para aceitar uma família da mesma raça, era sim, na verdade, um homem
extremamente preconceituoso. Provavelmente só demonstrara isso com a verdadeira
clareza após ele e a mulher terem ido morar juntos, mas se a mãe de Judy fora
fraca por não se esforçar a perceber antes, seria extremamente mais fraca para
livrar-se dele agora que ele já se sentia senhor absoluto daquela família.
Sim,
tudo isso era doloroso e apavorante, mas nem de longe se rivalizava a Ele.
O medo que Ele, O Escuro, provocara era soberano. Seus passos rápidos e enigmáticos respondiam sempre pela Sua onipresença. Seu semblante, se cabível fosse imaginá-lo, seria como o de um deus
soturno e grandioso.
A
caçada diária que Ele promovia tinha
começado quando July ampliara sua percepção do mundo, mais ou menos ao
completar nove anos de idade. Muito antes ela já sentia a ausência dos
privilégios da infância, mas só então acolhera aquela como sua sina e adotara
como princípio uma das muitas visões nada pueris que regem o mundo. A única forma de justiça que existe é que todos merecem o que têm. Não existe
deus ou destino para mudar o que está errado. Nada está errado; todos
merecem o que têm. Alguns lutam
para conseguir ter mais, outros preferem morrer e há ainda os que sempre terão
mais do que precisam. Não que o mundo seja imutável ou siga alguma linear
trilha estúpida; fosse assim não existiriam desgraças, tragédias ou prêmios da
loteria. O que não se compreende é que as reclamações e indignações vãs só
aborrecem ainda mais o círculo, tornando mais pesado o fardo próprio e de todos
os que o compõem. Agentes e pacientes, todos merecem o que têm.
Assim,
talvez por isso mesmo a percepção dela se ampliara tão cedo: para que
percebesse a presença dEle e O aceitasse
como pleno merecedor de estar ali. Ainda assim, era difícil. Sentia-se toda
noite tocada, violada por Ele. Espreitava
seu sono, altercando pensamentos libidinosos e mortais. Apesar da abalada
estrutura a qual ela ainda insistia em denominar de família, era o que sempre
lhe dava a segurança de não estar totalmente sozinha com Ele. Se isso acontecesse, sua vida provavelmente ficaria por um
fio.
O
cheiro de sangue coagulado que emanava de sua foice enferrujada também era algo
absolutamente perceptível. Além disso, muitas vezes o hálito quente e fétido de
Sua boca abarrotada de afiadas
presas por muitas vezes provocara em July a sensação de que se se mexesse
durante o sono poderia ter sua tênue garganta facilmente perfurada.
Tudo
isso a apavorara muito, principalmente no início. Depois, um pouco mais
habituada, percebeu que não morreria. Não era o que Ele queria. Embora o Seu próprio cheiro fosse o da morte,
July percebeu que dela Ele queria alguma outra coisa. Só descobriu o que era quando passando
por acaso pela porta de uma livraria esotérica viu na vitrine a imagem dEle na capa de um livro. Seria certamente
impossível de explicar. Existem milhares de livros de capas negras, sem
gravuras, já publicados. O que fazia daquele não apenas mais um? Apenas o fato
de que, ao menos para ela, nitidamente Ele
estava ali. Completo, em todas as Suas feições.
Não
na capa, mas na primeira página constava o título:
“A 3ª
VISÃO”
E o mais
interessante: não havia qualquer menção sobre o autor.
As
surpresas continuaram; quando entrara na loja demonstrando interesse em
adquirir o livro, fora simplesmente presenteada com ele pelo vendedor.
“É seu.” – ele apenas dissera – “Ao menos por enquanto, ninguém mais há de
demonstrar interesse por Ele” – e rapidamente embrulhara o livro e o
entregara nas mãos dela.
O
livro, a princípio, revelara-se ininteligível. Grafemas desconhecidos e algumas
letras e símbolos pessimamente traçados até para um analfabeto, além de várias
páginas em branco. Uma leitura aparentemente desestimulante. No entanto, na
primeira noite em que, já desistindo, July desligou o abajur e fechou o livro,
tudo emergiu com uma impressionante clareza em sua mente. Tornou a apanhar e
abrir o livro, ainda com a luz apagada e conseguia compreender tudo. Nascia ali
o mais direto método do Escuro se
comunicar com ela. Ele era a sua “3ª visão”. Com a mente, ela poderia
enxergar muito mais do que com o “olhar-comum”.
As páginas em branco estavam ali para que ela as completasse. Tornar-se-iam
muito em breve parceiros, amigos; um...
O
livro era um diário do Escuro para
que a menina pudesse compreendê-lO.
Mas, antes mesmo dela O compreender
totalmente, os assassinatos começaram...
☻
O
primeiro, na escola; o professor tentara agarrá-la.
Ela
estava com onze anos. Que idade melhor
para os professores? Mente e corpo em
estado de desenvolvimento.
A
mãe a obrigara a acompanhá-la na reunião de pais e mestres, feita
excepcionalmente em horário noturno daquela vez, mesmo para as classes do
primeiro período. Um tanto melhor. Não gostava de ficar sozinha com o padrasto.
Embora já conhecesse alguns métodos de evitar aborrecê-lo com sua simples
presença, nem sempre o conseguia com efetividade, acabando assim
invariavelmente agredida. E nesta época ainda não se sentia plenamente segura
ficando sozinha no Escuro.
Assim,
na reunião, a mãe demorou-se um pouco mais, conversando com uma das
professoras. July retirou-se um tanto ressabiada, pois sabia que se a mãe
chegasse em casa com a menor reclamação ou notícia que desagradasse o homem com
quem viviam, uma longa surra a esperaria. A maioria dos professores gostava
dela, conheciam um pouco de sua história e se compadeciam, embora quase nunca
fosse preciso amenizar durante as reuniões eventuais problemas decorrentes do
comportamento da menina em sala de aula. Era sempre uma aluna aplicada e
disciplinada. Mas como em tudo não podem faltar exceções, havia sempre os
professores intransigentes, que parecem formados em transformar situações
corriqueiras nos crimes mais hediondos. E a professora com a qual sua mãe
ficara retida encaixava-se perfeitamente neste perfil.
No
corredor, July encontrou o seu professor de Português. Em todo o ano escolar,
excetuando os momentos de responder à chamada diária, July trocara menos de
meia dúzia de palavras com ele. Achava-o estranho, embora ele sempre procurasse
transmitir uma imagem simpática, emitindo piadinhas geralmente forçadas e
infames. No entanto, naquela noite, quando ele surgiu solicitando ajuda para
carregar uma pilha de pastas de alunos até o andar de cima, July se dispôs
prontamente. Além de procurar sempre ser uma aluna aplicada aos olhos de seus
professores, era uma criança gentil e dedicada. Que motivos encontraria para
negar auxílio ao seu mestre? Assim, aceitou uma parte menor de pastas que o
homem extraiu da grande pilha que conduzia com dificuldades, escorando-a com o
seu corpo e seguiram os dois rumo às escadarias, subindo juntos. Nada mais
falaram durante todo o percurso, algo que para July pareceu perfeitamente
normal, já que a mesma atitude haviam mantido por todo o ano.
Chegaram
a uma sala trancada. O professor depositou devagar as pastas no chão e apanhou
um molho de chaves num dos bolsos. Sorriu estranhamente para July neste
momento. Estranheza oriunda não apenas do sorriso, um tanto sem propósito
definido, mas principalmente de ter sido o primeiro direcionado a ela em todos
os tempos. Ela retribuiu tensamente, embora procurando demonstrar confiança.
A
tensão aumentou quando o professor abriu a porta e July O viu. Imediatamente O
reconheceu, ainda que logo em seguida, o professor tenha acionado o
interruptor, iluminando a sala e fazendo-O
desaparecer.
Com
uma outra chave, o professor abriu um pequeno armário e começou a depositar as
pastas coloridas uma a uma, organizando-as bem.
_ Você pode fazer isso para mim, meu bem? –
perguntou em tom gentil.
-
Claro, professor – Judy respondeu, aproximando-se para receber o restante da
pilha. Quando se abaixou para guardar no armarinho a primeira pasta, ouviu o
barulho da fechadura sendo trancada. Olhou para o professor e ele estava
sorrindo com a chave na mão, balançando-a.
-
O que houve? – ela indagou, num tom de susto.
-
Nada, meu bem – ele respondeu, com o
mesmo sorriso, acrescido agora de um olhar psicótico – Agora nós vamos nos divertir.
July
imediatamente compreendeu tudo e tentou fugir correndo para a porta, mas foi
agarrada pelo homem que se pôs no caminho. Começou a gritar, mas ele a
esbofeteou com bastante força, por duas vezes. Ela cambaleou desorientada e ele
aproveitou para agarrá-la e tapar sua boca com a palma da mão. Ela tentou ainda
morder a mão que a amordaçava, mas ele levou a outra até a sua garganta e
começou a apertar.
- Cale a boca, ou eu te mato!
Apavorada,
tudo o que pôde pensar em fazer foi começar a chorar baixinho. Com violentos
puxões ele rasgou sua blusa. Largou-lhe do pescoço, dando-lhe mais um forte
golpe no rosto que a projetou de encontro à escrivaninha dos professores.
Começou o professor então a se livrar das próprias roupas; a blusa, os sapatos
e as calças; ficou só de cueca e meias. July olhava tudo, engolindo o choro;
desistira de tentar qualquer reação. Seu rosto estava quente e dolorido e seu
lábio sangrava por um corte profundo na lateral.
O
professor, talvez por pudor de se mostrar totalmente nu na frente da menina,
cometeu o último erro de sua vida: foi ao interruptor e acionou-o, desligando a
luz. Depois, correu até July e a agarrou, deitando-se sobre ela, em cima da
mesa.
Mal
teve tempo de sentir algo que perfurou profundamente o seu pescoço por trás e o
ergueu como a um peixe fisgado. Sem a menor chance de sequer gritar, foi arremessado
violentamente pela janela, aterrissando de testa, já absolutamente morto no
meio do pátio da escola...
●
Começara
há dois dias a leitura do livro e ele já era um grande companheiro.
Felizmente
não apanhara naquela noite.
Excetuando-se
as bofetadas do professor tarado, diga-se. Fora ao sanitário feminino e lavara
bem os ferimentos, amenizando bastante seus sinais. Além do mais, a mãe pouca
atenção prestava a ela e certamente não notaria. O padrasto dormia quando
chegaram; como de costume, bêbado como um gambá.
Não
havendo aulas, devido à reunião, não havia ninguém no pátio naquele horário e
assim o corpo só foi encontrado no dia seguinte.
Uma
morte inexplicável e violenta: o início de um enigma extremamente difícil e
intrigante para a polícia.
A
sós com seu “livro-diário”, July pela
primeira vez se atreveu a dirigir-se a Ele:
“Ele tinha mesmo que morrer? Você não podia apenas o afastar?”
Sim,
claro que Ele poderia. Poderia
amedrontar tanto aquele professorzinho que o faria esquecer pelo resto de sua
vida do que guardava dentro de suas cuecas. Mas isso significava distorcer a
índole do professor e Sua própria
índole, o que não era justificável. Todos
merecem o que têm. Renegar isso serve apenas para nublar a 3ª Visão.
Logo,
a mesma escola voltaria a ceder personagens àquela germinante onda de crimes
insolúveis.
Ruth
Silver era uma aluna simpática e jovial. Sua família já havia sido muito rica,
mas perderam praticamente tudo por dívidas oriundas de gastos desmedidos. A
situação tornara-se tão drástica que sobrara apenas aos filhos estudar naquela
escola de periferia, por ser próxima o suficiente para livrá-los da condução.
Assim, os filhos do casal Silver, Ruth e Derick, freqüentavam a mesma escola e
eram da mesma classe. Nem de longe, porém, isto servia para aproximá-los. Seus
temperamentos opostos os faziam quase inimigos. Derick, exatamente como seus
pais, não se conformara com o duro golpe que atingira suas vidas repletas de
mordomias e extravagâncias, deixando-os, como o pai dele costumava classificar,
no pior estado de subsistência miserável.
Teriam certamente, e muito em breve, tudo de volta e muito mais. Por isso
deveriam se conservar sempre no patamar das pessoas superiores, pois era o
lugar que indubitavelmente deveriam estar.
Assim,
por motivos óbvios, Derick Silver não viu com bons olhos quando sua irmã e
July, notoriamente a criança mais pobre e em pior condição de vida da classe
começaram a cativar uma amizade. Embora não gostasse da irmã e pouco se
importasse com as preferências, (quase sempre de péssimo gosto), dela, o que
lhe pareceu estar entrando em jogo era a honra de sua família. A degradação da
integridade de sua estirpe poderia estar começando com aquele aparentemente
inofensivo coleguismo.
Esforçou-se
para alertar a irmã e aconteceu justamente o que ele preverá. Ao saber da
opinião do irmão sobre sua nova amiga, Ruth pareceu esforçar-se ainda mais para
estreitar os laços daquela amizade. Tudo para contrariá-lo e isso o fazia
sentir mais raiva dela e da menina negra
e favelada. Seu próximo
pensamento foi contar aos pais sobre aquela relação, mas, mesmo sabendo que
eles certamente a proibiriam de continuar com aquilo, até castigando-a se fosse
preciso, Derick sabia que isso ainda não iria dissuadir sua voluntariosa irmã.
Infelizmente, como nada havia que ele pudesse fazer para expulsá-la da família,
teria de atacar diretamente a favelada.
Não
iria contar nada aos pais, mas contava grandemente com eles em seu plano.
●
Ruth
e July já eram grandes amigas, mas procuravam restringir o relacionamento ao
ambiente escolar. Sim, porque a diferença social, (ainda que de fachada, já que
na verdade suas famílias se achavam atualmente num patamar muito aproximado),
as deixava claramente temerosas quanto à reação que os pais de ambas poderiam
ter. July, por sua vez, jamais levara qualquer amiga, de qualquer classe
social, a sua casa, imaginando que o padrasto certamente expulsaria a criança
imediatamente em meio a uma saraivada de palavrões e xingamentos, reservando
ainda para a enteada a caprichada sova costumeira.
Assim,
ao término das aulas cada uma seguia o seu rumo e a amizade adormecia, para
despertar plenamente no outro dia.
Derick,
o irmão de Ruth, nunca fora dado a cativar amizades muito profundas; numa
escola de bairro pobre como aquela, quem o conhecesse diria que seria algo
quase impossível. A menos que fosse parte de um maléfico plano...
﬩
Os
Silver realmente se encontravam em situação caótica, financeiramente falando,
mas isso quase nunca é motivo para os soberbos e arrogantes desistirem de
manterem a pose. Assim, empréstimos fraudulentos, heranças inexistentes,
promessas de emprego delirantes e dezenas de outras espécies de armações eram
sempre fortes aliados nos métodos diários de sobrevivência do Senhor e da
Senhora Silver. Junto aos poucos amigos que lhes restavam da alta sociedade,
ainda conseguiam algum auxílio financeiro sob promessas de ressarcimento
brevemente. Claro que não era suficiente para manter o mesmo tipo de vida que
levavam, mas certamente também conseguiam levar uma vida muito além de suas
atuais possibilidades. Um dos benefícios que essa “renda extra” possibilitava e que eles faziam questão de manter por
ser um dos poucos remanescentes da época das vacas gordas e que por isso mesmo
costumava durar o dia inteiro era o chamado
“dia-de-compras”. Nestes dias o casal Silver praticamente desaparecia a se
perder pelos shoppings e grandes lojas da cidade e mesmo das cidades vizinhas,
em busca das melhores roupas e produtos, mais ainda agora que se viam obrigados
a ter que barganhar também pelos melhores preços, algo que para eles sempre
fora impensável.
Daí,
as prolongadas ausências dos Silver durante os “dias-de-compras” serviram de munição para o garoto Derick por em
prática seu plano de destruir a amizade de sua irmã com July, a garota mais
pobre da escola. Selecionou um pequeno grupo de conhecidos seus na classe, (que
na verdade ele jamais se atreveria a chamar de amigos, mas apenas suportáveis), e passou a convidá-los a
sua casa para lhe fazerem companhia durante essas determinadas ausências dos
pais. Sabia que de sua vida cheia de regalias ainda guardava alguns atrativos
que certamente fascinariam aqueles garotos pobretões, como jogos eletrônicos
modernos, seu computador, uma vasta videoteca com filmes e desenhos para todos
os gostos, além de centenas de revistas em quadrinhos, inclusive importadas.
Chegara,
claro, a pensar em convidar seus antigos colegas do colégio particular em que
ele sempre estudara, mas isso não traria a seu plano a efetividade desejada.
Precisava causar na irmã a impressão, senão a certeza, de que estava
contrariando deliberadamente a vontade dos pais, levando amigos de baixa
estirpe para brincar em casa, evidenciando um ajuntamento claramente
desagradável aos Silver de qualquer de seus filhos com crianças da ralé. Consideravam até aceitável que se
relacionassem, na medida do possível, bem nas aulas e na escola, afinal, ao
menos enquanto suas vidas não virassem novamente, aquela convivência precisaria
ser pelo menos suportável, mas daí ao ponto de convidar crianças pobres para
visitar sua casa havia para eles uma distância intransponível.
Mas
não para Ruth. Poderia denunciar aos pais a atitude do irmão, mas não eram os
seus métodos, embora ciência tivesse de que certamente seriam os dele. Aliás,
detestava aquela visão preconceituosa dos pais e do irmão, (o que a deixava sem
entender aquela mudança repentina em seu temperamento e ao mesmo tempo feliz
por aquele pequeno sinal, achava ela, de que Derick poderia estar mudando);
Ruth achava perfeitamente normal que o irmão convidasse quem quisesse para
brincar em casa, desde que assumisse a responsabilidade quanto à confiabilidade
de seus novos amigos. Até porque, mesmo os colegas ricos de Derick nunca haviam
sido grande coisa. Dos vários que tivera, dificilmente algum aceitaria um
convite seu agora.
Só
que a justiça que se aplicava ao irmão, deveria funcionar também para ela.
Embora ele nunca tivesse se dado ao trabalho de consultá-la, Ruth notificou o
irmão que nos ‘dias-de-compra’ convidaria
também sua amiga July para brincar com ela e que não aceitaria qualquer
implicância da parte dele. Ele fez questão de não responder, ignorando-a, mas
ela sabia, (ou ao menos pensava saber), que ele estava concordando, por
encontrar-se sem opções. Assim, Ruth convidou July para passar com ela o
próximo ‘dia-de-compras’, sem saber
que seu irmãozinho arquitetava minuciosamente um tremendo flagrante...
Parecera-lhe
realmente genial a idéia de telefonar para o celular do pai e convencer os dois
a abortarem aquele ‘dia-de-compras’,
que para eles deveria estar só começando. Se tivesse tentado convencê-los a
participar espontaneamente de seu plano, certamente não conseguiria êxito.
Embora aquela questão familiar fosse também encarada com importância pelos
Silver, dificilmente os dissuadiria, (principalmente a mulher), de saborear sua
prazerosa tarde de compras. Todos os sermões e castigos seriam aplicados à
filha impertinente sim, mas antes ou depois daqueles momentos, porque, durante
o ‘dia-de-compras’, os filhos do
casal Silver poderiam até explodir o mundo se quisessem.
A
única coisa que faria os pais de Ruth e Derick abortarem provisoriamente suas
compulsões de gastar dinheiro deliberadamente era a possibilidade de ganhar
muito mais de forma fácil, sem esforço mesmo que com pouca ou nenhuma ética. Um
suposto magnata político, notoriamente corrupto, oferecendo rios de dinheiro ao
Sr. Silver pelo seu serviço como assessor fora realmente uma cartada de mestre
do sagaz pré-adolescente Derick Silver.
●
Como
meninas normais, July e Ruth se divertiram de diversas formas durante aquele
dia. Derick, naturalmente fora a exceção da regra. Logo quando a amiga da irmã
chegara, ele fizera questão de ser extremamente indelicado ao não responder o
cumprimento por ela lhe dirigido. Não convidara seus amigos nesse dia. No
entanto, recusou terminantemente o convite partido delas para brincarem juntos.
O que fez mesmo foi espreitá-las à distância por todo o tempo, retrucando
sempre com seu peculiar olhar desdenhoso quando por elas interpelado.
Enfim,
para exultação de Derick e surpresa e preocupação das duas amigas, um pouco
antes do começo da noite, os Silver chegaram daquele claramente encurtado “dia-de-compras”. Os faróis
altos iluminaram todo o quintal até o carro ser desligado na garagem. Derick,
já absolutamente preparado, antecipou-se a todos, correndo até o elegante casal
que desceu do carro.
Ruth
falou do mesmo ponto em que estava. Precisava também antecipar-se ao irmão,
pois bem já sabia das intenções dele.
-
Mamãe, papai; esta é minha amiga July.
Achei que não haveria problemas em convidá-la para brincar comigo.
July sorriu e
cumprimentou o casal da forma mais gentil que pôde:
- Olá, senhores. Como estão?
Eles
a fitaram como quem examina um extraterrestre. A mulher forçou um sorriso
extremamente falso. O homem entrou na casa, como se a presença da menina
tivesse sido apenas um contratempo. Instantes depois voltou indagador:
- Onde está meu visitante?
- Que visitante? –
estranhou July. Olhou para o irmão e começou a compreender tudo.
Derick
sorriu e o Sr. Silver também pareceu perceber a armação.
- Você nos enganou quanto à visita do
magnata, não foi seu fedelho?
- Foi o único jeito de
mostrar para vocês o que a minha irmã desmiolada está armando contra o nome de
nossa família – defendeu-se o menino, sem perder a pose.
- Eu não acredito! – esbravejou a Sra.
Silver, levando as duas mãos à cabeça como se estivesse prestes a ter um
ataque.
- Eu vou te matar, seu pirralho! – sentenciou
o pai enfurecido. Mesmo assim, o petulante menino não deu mostras de qualquer
sinal de arrependimento.
- Aceitarei a minha punição, mas pelo menos
os senhores ficarão cientes das amizades que Rute quer introduzir no seio da
nossa família.
- Você também por muitas vezes já trouxe
aqui os seus amigos da escola – acusou-o a irmã, que embora desorientada
pela inescrupulosa armadilha ainda procurava argumentos para se defender, ou ao
menos amenizar sua culpa sob os olhos dos pais.
-
Não seja ingênua, Rute. Aqueles idiotas nunca
foram e jamais serão meus amigos. Combinei com todos para ludibriar você.
Aliás, para isso, até os pagaria se fosse preciso. Felizmente não foi; é
impressionante como esse tipo de gente se faz até de capacho só para desfrutar
um pouco dos benefícios que compõem o nosso mundo.
Por
mais incrível que possa aparentar, só então o Sr. Silver pareceu realmente se
dar conta da presença da amiga de sua filha. A frustração pela inexistência do
visitante ilustre ia aos poucos o abandonando, deixando apenas o seu mau humor
peculiar.
A
mulher, muito mais observadora, como lhe mandava a natureza, há muito já notara
a aparência e o vestuário de July, e estava mais do que pronta para antipatizar
com ela. Aproximou-se da menina, claramente desconfortável com toda aquela
situação e por isso mesmo bastante retraída e lhe perguntou austera como um
verdadeiro interrogador:
- Sua família mora por aqui?
- Ela mora na favela,
mamãe – intrometeu-se Derick mais uma vez, antes que July sequer tentasse
responder.
Houve
uma pausa tensa no ar. Os Silver entreolharam-se.
- Seu pai trabalha? – continuou a Sr.ª
Silver.
- Meu pai morreu – July respondeu
timidamente – Moro com minha mãe e meu
padrasto. Meu único irmão fugiu de casa recentemente.
A mulher lançou um
último olhar a July, percorrendo-a da cabeça aos pés e deu-lhe as costas em
seguida. Antes de entrar na casa disse mais uma coisa em tom ríspido:
- Dentro de dois minutos quero os dois
dentro de casa tomando seus banhos e se aprontando para o jantar. Fui clara?
- Sim, mamãe – Derick
respondeu prontamente.
Como
de parte da filha não obteve resposta, virou-se para Rute fitando-a com
austeridade e tornou a indagar:
-
Fui clara?
Irremediavelmente
acuada, Ruth respondeu abaixando a cabeça:
- Sim, mamãe.
- Ótimo.
Tornou a megera a
dar a volta e adentrou na casa.
O
Sr. Silvaer a seguiu após dar também sua última palavra:
- Ouviu sua mãe, certo Rute? Dois minutos.
Despeça-se então de sua... hum... amiga e entre.
Assim que os
adultos entraram July se pronunciou. Obviamente não conseguia disfarçar a
feição entristecida.
- É melhor vocês entrarem. Eu também tenho
que ir.
Ruth, também
estava bastante constrangida, diferentemente de Derick, a quem a presença dos
pais fortalecera plenamente a arrogância.
- Nossos pais não querem que nos misturemos
com crianças que não são da nossa classe social. A maioria são marginais e más
companhias.
- Cale a boca,
Henrique – vociferou, Ruth.
- Por quê? É contra a lei dizer a verdade?
Além disso, a culpa é toda sua que mesmo sabendo disso, vive se ajuntando com
essa faveladinha. Da próxima vez vá você brincar sob a ponte onde ela deve
morar.
Tinha apenas doze
anos, mas, à semelhança dos pais, já tinha a maldade irremediavelmente
impregnada no espírito.
- Não se preocupe, Ruth – intercedeu
July – está tudo bem.
- Que bom que você não
guardou rancor – apanhou a bola que as meninas haviam jogado – leve a bola para você – e atirou a bola
com força atingindo o rosto de July.
- Henrique, você me paga! – Ruth gritou,
avançando para agarrá-lo, mas ele correu rapidamente para dentro da casa e
fechou a porta.
July
tinha os olhos cheios de lágrimas que já há muito vinha lutando para conter.
Rute caminhou até ela e quis segurar em suas mãos, o que ela não permitiu.
- Eu sinto muito por tudo, July.
- Tudo bem – ela
respondeu secamente.
Caminhavam
em silêncio até o portão da rua, quando ouviram um barulho de vidro se
estilhaçando. Imediatamente, a grande luminária que clareava o quintal se
apagou. As duas olharam para trás e viram Derick ao pé da porta novamente. Seus
pais surgiram abrindo a porta atrás dele.
- Que diabo está acontecendo aqui? –
perguntou o Sr. Silver.
Mais
uma deixa para o eufórico e ofegante Henrique.
- Eu vi, pai; mãe; a amiga da Rute atirou
uma pedra na lâmpada.
Ruth balançou a
cabeça e dirigiu-se aos pais protestando veementemente:
- É mentira! Foi o próprio Derick que...
- Já para dentro os
dois – interpelou a Senhora Silver, sem tomar conhecimento das palavras da
filha.
-
Mas, mãe...
- Cale a boca, Rute e
faça o que sua mãe está mandando!
As duas crianças
entraram quase que perfiladas; Derick apenas procurando se manter a uma
distância segura.
Quando
ficaram sozinhos com July, a Sr.ª Silver continuou falando:
- Quanto a você, menina, só não vou obrigar
seu pai a pagar pela lâmpada por que vocês não devem ter dinheiro nem para
comer...
July tentou
interceder a seu próprio favor:
- Mas Senhora, não fui eu que...
- Cale-se, negrinha
impertinente! – colocou-se mais uma vez o Sr. Silver em defesa do direito exclusivo de falar de sua esposa
– Não sabe que é falta de educação
interromper quando um adulto está falando? Aliás, você sabe o que é educação?
As lágrimas de
July finalmente venceram sua resistência na ‘queda-de-braço’.
Toda a miséria de sua vida nunca a havia humilhado tanto.
A
mulher sorriu ligeiramente, grata pelo apoio do marido e recobrou a expressão e
as palavras enérgicas:
-
Não quero nunca mais que você se aproxime
dos meus filhos. Deve aprender desde já a se misturar apenas com gente da sua
laia, estamos entendidas?
- Sim – disse July
soluçando e cheia de ódio nos olhos.
-
Diga “sim senhora”, sua malcriada.
Naquele
momento, todo aquele ódio ela começou a canalizar em uma palavra: vingança.
- Sim senhora – respondeu, já
completamente no controle de suas emoções.
- Agora dê o fora – falou o Sr. Silver
com a exata arrogância deixada de herança para o seu filho.
July
saiu, mas não bateu o portão, o que ativaria a tranca automática. Apenas
encostou-o e assim que eles entraram, tornou a abri-lo suavemente para não
chamar atenção. Há alguns minutos havia visto algo que a fizera sentir-se
melhor: na parede da entrada da casa, os disjuntores da energia elétrica que a
abasteciam ficavam um pouco alto na parede, mas se esticasse poderia
alcançá-los...
Quando
toda a iluminação dentro da casa se esvaiu, os gritos de morte também
começaram.
E
July só foi embora quando todo o barulho cessou.
As
manchetes do dia seguinte, em letras garrafais e fotos atemorizantes relatavam
os horrores da tragédia; corpos dilacerados, sangue pelas paredes e mais uma
vez nenhuma pista sobre a autoria dos crimes. As marcas sugeriam um instrumento
extremamente cortante e pontiagudo, como garras, fazendo as primeiras suspeitas
recaírem sobre alguma fera poderosa e sanguinária, o que provocou um estado
pleno de alerta nas patrulhas florestais, circos e mesmo no zoológico da
cidade, atentando para que se redobrasse a vigilância sobre todos os animais
selvagens.
July
estava pensativa e um tanto relutante. Não sabia se era certo o que havia
feito. Não pelo fato de ter punido aqueles que tanto a agrediram, mas houvera
também um único alguém que se colocara em sua defesa: Ruth. Ela parecia ser
mesmo sua amiga e a tivera que deixar padecer como sacrifício para a punição
dos que a ultrajaram. Talvez fosse preciso se acostumar com a idéia de que para todo ato de justiça sempre haveria um
sacrifício. E por mais que fosse difícil, ela os aceitaria.
O
Escuro
parecia não mais se aborrecer com os questionamentos de July, embora também
aparentasse não dar muita atenção e importância às suas dúvidas,
respondendo-lhe sempre com chavões e frases feitas:
“os
fins justificam os meios...”
e
“todos
merecem o que têm...”
Deveria,
portanto esquecer o azar e a infelicidade que a família de Ruth trouxera para
ela mesma. July, mais do que qualquer um, tinha amplos motivos para assimilar o
quão perniciosa costumava ser uma família de laços afetivos desfigurados.
Como
explicar, no entanto, o terceiro assassinato?
As
aulas de recuperação forçavam os alunos a freqüentarem a escola também no
período de fim de tarde e noturno.
O
garotinho se chamava Alisson e tinha apenas sete anos. Num primeiro golpe foi
castrado; ainda assim, valentemente tentou fugir para ser perseguido e
decapitado pelas costas. Tudo o que ele fizera fora passar a mão em July,
induzido por um grupo de garotos mais velhos e provocadores, durante um blackout no prédio escolar. Não fora a
primeira vez que tais maus elementos incentivavam através de promessas ou
ameaças alunos mais novos a participarem daquele tipo de brincadeira de mau
gosto. Para o azar de Alisson, porém, pela primeira vez aquilo fora tentado
contra July e testemunhado e desaprovado por seu protetor. Na hora ela
praguejara e tivera muita raiva do autor do atrevimento que se aproveitara da
intensa penumbra para fugir sem ser reconhecido.
A
falta de energia precipitou a suspensão das aulas e durante o trajeto de volta
para casa, Alisson foi encurralado numa rua deserta.
Pela
primeira vez, July não testemunhou o crime, só vindo a saber dele no dia
seguinte. E pela primeira vez também não encontrava mais motivos para confiar
na justiça do Escuro, quando Ele lhe revelara a autoria e o real
motivo de mais aquela bárbara execução. No entanto, a tal altura, July não
tinha coragem nem condições de exigir-Lhe melhores motivos, ou mesmo
questionar Seus métodos de seleção destes. Por isso mesmo, fartamente os
crimes continuaram, deixando sempre, (e apenas), os mesmos tipos de vestígios:
marcas de garras nos corpos e paredes, corpos dilacerados, desmembrados,
decapitados, sempre em meio a um mar de sangue.
Na
mesma escola onde ocorrera o assassinato do professor de Português, (o que
parece ter sido o primeiro da série), antes de seu irremediável fechamento,
mais dois professores, três alunos e até o diretor foram brutalmente
assassinados, bem debaixo da vigilância cerrada da polícia que assistia atônita
toda a responsabilidade recair sobre si, por sua absoluta ineficiência e
inoperância.
Entre
as vítimas, incluíram-se alguns anos depois, o padrasto e o irmão mais velho de
July, mas a essa altura, já eram tantos os crimes que aquilo foi absolutamente
ineficaz para que se suspeitasse dela. A mão dela enlouqueceu e acabou
internada permanentemente num hospício na capital do estado.
A
cidade, que tinha certo potencial econômico e larga perspectiva de crescimento,
encolheu-se. Não pode suportar o peso daqueles crimes hediondos e insolúveis.
Os maiores investigadores e cérebros criminalistas do país dispuseram-se a
cuidar do caso, apenas para se fadarem ao mais absoluto fracasso. A grande
maioria da população abandonou a cidade. Falava-se em espíritos malignos,
monstros e até em sentença divina.
Tudo isso durou dezesseis anos...
July
cresceu. Herdou a casa da mãe que faleceu tísica no manicômio e um pequeno
boteco que o padrasto ainda conseguira comprar em vida, com o prêmio de um jogo
de azar considerado ilícito, mas absolutamente popular. Assim que se viu
sozinha no mundo, vendeu a ambos para comprar uma casa num bairro melhor. Na
época, acabara de completar dezoito anos.
Seu
temor pelo Escuro se dissipou totalmente. Ele era seu amigo. Não
deixava ninguém lhe ferir. À noite, o que fazia era velar o seu sono;
protegê-la, niná-la. Não permitia que tivesse amigos ou namorados, era verdade,
mas ela não precisava. Bastava-lhe Ele.
Aos
vinte e cinco anos de idade mudou-se para uma metrópole vizinha para ingressar
na universidade. Foi quando a onda dos crimes indecifráveis, (forma pela qual
tornaram a pacata cidadezinha mundialmente conhecida), cessaram
definitivamente. Claro que com o passar do tempo a onda se amenizara, mas ainda
que poucas vezes ao ano, tais crimes ainda eclodiam em algum canto escuro da
cidade. Mas quando a insuspeita Juliette mudou-se, tudo, (menos o mistério),
teve fim.
Aos
vinte e nove anos formou-se e passou a lecionar, tornando-se num futuro breve
uma competente e respeitada profissional na área de comunicações. Aos quarenta
anos publicou seu primeiro livro, assinando como Juliette Shadow, intitulado “OUTRAS
VISÕES” e que lhe rendeu prêmios e reconhecimento por todo o país. No
livro, ela recontava de forma pessoal e extremamente eloqüente descrições sobre
princípios que regem a percepção humana. Segundo sua teoria, da soma do desejo intenso com a imaginação
irrestrita e mais um terceiro elemento incógnito que ela denominou “Escuro”,
resulta-se uma nova entidade sensorial implícita conhecida por muitos como “a 3ª
visão”.
Parecia
incrível como alguém com aparentemente tão pouca especialização sobre o assunto
conseguira compreender e explicitar tão bem um grande enigma da humanidade que
é a harmonização plena dos sentidos e ‘extra-sentidos’.
Dez
anos após a publicação do livro, a renomada escritora Juliette Shadow foi
presa. Veio a lume graças a um jovem e brilhante cientista uma nova fonte de
iluminação artificial radiativa que ampliava consideravelmente a percepção
visual do ser humano, permitindo que se enxergassem coisas que só podiam ser
vistas sob a ausência total da luz tradicional.
Com
o auxílio dessa nova luz, constatou-se que dez anos antes, a renomada
escritora, em seu primeiro e principal livro havia escrito num inédito sistema
de escrita, até então invisível a olho nu um longo e detalhado relato onde
confessava, autodenominando-se “O Escuro”, a autoria dos mais de
cem assassinatos escabrosos na cidadezinha onde nascera.
Os
detalhes chocantes dos crimes, claramente descritos nas entrelinhas das páginas
de seu livro levaram a polícia e a justiça a não hesitar em apontá-la
terminantemente como culpada e condená-la a pena capital. Só não puderam
explicar as garras e por isso, para muitos ela era uma bruxa, ou tinha mesmo
algum pacto macabro com satã.
Conta-se
que no exato momento de sua execução, houve um súbito eclipse e naquela
cidadezinha um violento terremoto gerou crateras que devoraram tudo.
Hoje,
apenas os turistas mais desavisados se atrevem a se aproximar daquelas ruínas
após o fim do dia...
≈
*(Pós-script)
Quero
sinceramente que o leitor acredite que “Maldição
das Sombras” nasceu para ser um conto despretensioso; mas não o é. Não digo
que seja um bom conto, nem que culmine
entre os melhores do livro, (o que necessariamente também não os fazem bons),
mas é sem dúvida alguma, o grande diferencial, pois diversamente dos outros,
sintetiza-se claramente numa revelação.
A primeira vez que o
escrevi achei-o volumoso e de duvidosa qualidade em seu final. Quando concluí a
versão definitiva, estava com mais do que o dobro do tamanho. Além disso,
consegui com algumas alterações no final, fazer, (ao menos em minha concepção),
o conto evoluir, tanto que passei até a considerá-lo como um bom conto, dentro,
é claro, dos meus padrões e das minhas experiências, que são geralmente os
referenciais intransferíveis de cada um. No entanto, as dificuldades que intermediaram
tal definitivo estágio foram inúmeras e enormes, levando-me inclusive a
abominar o conto por vezes, o que certamente chegou até mesmo a ameaçar a sua
existência. Dentre os meus denominados “projetos curtos”, “Maldição” foi um dos
que mais se estendeu em razão de constantes bloqueios inspirativos, algo
absolutamente comum na rotina dos escritores. Não sou um escritor no sentido
profissional da palavra, mas gosto – curto,
na linguagem sincera da juventude – escrever e escrevo.
Tenho assim, já produzidos
alguns textos, mas também e até muito mais, projetos idealizados e(ou)
abandonados.
A conclusão de “Maldição das Sombras” foi importante
para mim, porque me fez enxergar meu próprio “Escuro”; a pouca determinação para seguir no que acredito. O conto,
o livro, o universo eram para ser despretensiosos, mas como explicar a
exultação diante de uma obra, de um projeto, de um sonho realizando-se? Em
algum segmento de nossa vida o escuro nos acerca, pronto para nos fazer recuar,
impor-nos limites. Jamais poderemos definitivamente vencê-lo, pois é parte de
nós, mas sucessivas vitórias sobre ele certamente expandirão e muito nossa
auto-estima, gerando luz e brilho e nos permitindo extrair o máximo de nosso
potencial. Isto é sim o que a natureza quer.
“todos merecem o que têm...”
Os
contos esticam. Voltemos ao livro...
F.S.Sousa
XIII
– ODI-BIL, O DEMÔNIO
Em
tempo perdido, ao léu
capaz
de irromper todo véu
no
total limite do céu
houve
clarão sem fim
O
mais notável arlequim
plantado
em pleno jardim
serviu
do seu camarim
pela
fome voraz impelido
Nato
divino perdido
dos
próprios seus impedido
por
soberba desterrado e banido
como
a voz que ecoa no deserto
Por
sorte deparou-se por perto
portal
de palácio aberto
tratados
pelo nome certo
acolhem
novo irmão
“Faça
teu nosso chão,
tal
qual riqueza e pão
toma
nosso coração
a
saciar tua fome”
Gratidão
sem findar me consome
e
eu, Odi-Bil, juro em meu nome
que
o que, por ventura, vos tome
volver-vos
hei sem medida
Servi-me
por toda vida
vinde,
fazei-me saída
sua
utopia perdida
sedimentarei
num instante
Conquistastes
o ouro, o brilhante
a
terra vos nutre constante
mas
vosso prazer de amante
desfrutais
verdadeiramente?
Não
vos falo à mente
no
amor sois só paciente
Oh,
homem, eterno inocente
toda
mulher te pertence
Ainda
que assim jamais pense
de
reles vontade, não vence
merecimento
seu não convence
é
de servil existência
Coube-lhe
tal indulgência
dar-se
de toda paciência
quis
partilhar de ciência
por
métodos da serpente vis
Soprou-lhe
Deus o nariz?
Viu-Se
nela, feliz?
Tornou-se
sim meretriz
a
mãe dos males do mundo
Empurrou-te,
lançou-te ao fundo
de
caos e dor por segundo
prostrando-te
pelo chão imundo
por
tamanha deusa sensual
Na
perdição sem igual
eclodira
de tamanho mal
a
guerra, a discórdia abissal
que
a tudo devasta, mas não lhe atinge
com
arte tamanha que finge
tal
força sobre tudo tinge
qual
a argúcia e o mistério da esfinge
a
tudo resiste e observa
Mas
vê no olhar de Minerva
por
mais que cingido com erva
inextirpável
condição de serva
distante
da supremacia
Deveras
onde é feita alegria
na
inacessível tela da poesia
ou
no arrebatamento do que alicia
cabendo-te
força, poder, autoridade?
“És
certa, sábia entidade
Ceifemos
das fêmeas vontade
Só
da máscula necessidade
ocupar-se-á
seu destino
Ousando
qual desatino
entoar
próprio seu hino
seu
mestre há de ser assassino
e
sua doutrina queimada
Mais
nada de ser amada
de
imagens lisonjeada
submetida
apenas, sujeitada
ao
homem, criação sublime
A
todas tomemos sem crime
ciúme
não nos desanime
por
que cativar em regime
abdicando
da plenitude?
Doravante,
os que têm saúde
gozarão
em essência da virtude
o
mundo não mais ilude
com
seu mascarado amor
Guarde
o homem carícias a flor
e
para a mulher o terror
e
o relutar da vontade impor
o
marca e de morte faz réu.”
Não
houve tempo bastante
pra
que s’erigisse o levante
e
a metade do mundo importante
acolheu
implacável grilhão
talhada
no coração
despida
de comiseração
entregue
à devassidão
de
toda espécie apossada
sua
veste confeccionada
que
não atravancasse a caçada
fosse
facilmente tomada
a
quem em momento a quisesse
e
se de modo nenhum se pudesse
por
sorte, por jura ou por prece
a
morte por fim lhe acontece
e
segue o giro do mundo
Aos
poucos o caos profundo
volta
a reinar e mais afundo
o
homem, ganancioso imundo
quer
pela espada a primazia
e
tanta beleza sadia
nutre
sua anomalia
de
querer o sol do dia
e
o fruto do conhecimento
Cada
um quis um cento
cada
balão quis mais vento
Haveria
para tanto intento?
Sobrava
a visão do mais forte
A
terra encheu-se de morte
a
vida foi prêmio de esporte
os
homens jogavam sua sorte
quando
caso fosse de disputa
O
permanente da luta
final
empecilho amputa
desfruta
do mal pós-cicuta
o
mel inebriante da conquista
Até
que a plena fadiga desista
em
que presa passiva não resista
consente
que ainda exista
lançando
os restos aos vilões
Deleitam-se
os fanfarrões
homicidas,
facínoras, ladrões
parvos,
farrapos, anões
desfrutam
de mesma delícia
Já
que nem é caso de polícia
mas
d’ambição vitalícia
que
o julgo escondeu a malícia
por
sombrio nome indistinto
Que
deflorou tal instinto
livro
pra maior labirinto
por
vil ensejo faminto
que
pecado nenhum supera
Vê
de malícia severa
prostrar-se
sem rumo ess’Era
desflorar-se
sem primavera
pulsando
paixão violenta
Por
entre lente que a tudo aumenta
perdeu-se
em peleja sangrenta
do
mau instinto se contenta
além
do sucumbir da dor
Não
se houve pedido de amor
só
súplicas, tomada e rancor
sob
a força do despudor
o
fulgor que se acerca do destino
Mas
se tal é o vibrar assassino
qual
raivoso ímpeto canino
ceifou
o raiar feminino
vertido
escravo, refém.
Custando
a surgir alguém
amásio
da causa do bem
valer-se
das armas que tem
pinçando
filetes de esperança
Avesso
de tanta matança
e
somente da própria semelhança
aprouve-se
sedimentar a aliança
movida
pelo amor à vida
Guiada
por alma ferida
sanada
pela vingança nutrida
tendo
a força mor acolhida
provinda
da inteligência
De
paralela ciência
marginal
de antros e penitência
a
gênese de então violência
além
dos domínios do mito
Arrastou
demônio maldito
ao
corpo próprio, aflito
descaracterizando
o bonito
mas
por poder alucinante.
Lançou-se
o mundo moderno
em
derradeiro martírio eterno
tormento
primaz do inferno
mulheres
na forma de horrores
de
extirpados temores
mais
impávidos do que seus precursores
a
quem guardam muito mais dores
que
as que lhes foram concedidas
“Oh,
senhoras destemidas,
eu
que livro vossas vidas
de
penas vis, tão descabidas
tomo
o manto da vossa sina
e
digo que a mais tenra menina
não
há de faltar heroína
até
que a carnificina
cesse
jamais sem vingança
Não
comporta doravante a bonança
se
só quem a valer não descansa
serve
bem à austera aliança
fazendo
o meu vir por merecer
pois
eu sou OJESED, o poder
somente
vivo para vencer
e
tal qual a mim deve ser
todos
os quem escolhi
Da
força vos ungi
do
medo vos cingi
do
ódio vos nutri
mais
tenebroso do que vossa feição
Para
não conhecerem o perdão
nem
respirarem compaixão
nada
que lhes embote a visão
do
extermínio do inimigo
Já
quanto a Odi, deixai comigo
que
pra vós há de ser um perigo
se
pra mim é ele, infame castigo
jamais
ambos fomos sozinhos”
E
tudo seguiu tais caminhos
plantados
os joios daninhos
nasceu
o futuro sob espinhos
sem
sobrevivência aspirar
Viu
o homem a mesa virar
deleite
habitual de sugar
tornado
pesadelo sem par
suplantou
de existência o direito
e
nada que pôde ser feito
deu
pena, esperança ou jeito
tal
qual arrancado do peito
restou
o coração do universo
Por
mais implacável, o reverso
da
ambição do demônio perverso
com
seu ébrio acólito submerso
fez
a cada um derrotado
Sobrou-lhe
ser exterminado
e
vencedor realizado
viu-se
só então transmutado
reconhecendo
cruel realidade
Perdida
qualquer humanidade
a
pena valeria viver sem vontade?
Cumprida
justiça fica vã a liberdade
Sem
princípio que a emoção ativa
Abatida
em tal pena aflitiva
foi
simples desgostar de estar viva
na
derradeira harmonia coletiva
plantou-se
da Terra nas entranhas ardentes
No
vácuo e dissabor conseqüentes
ainda
pelejam valentes
os
espíritos equivalentes
mas
viram o naufragar da vitória
‘inda
que de concedida glória
testemunhas
vitais da história
compuseram
vilmente a escória
e
corromperam sem pagar a pena
Um
é o instinto, o impulso que acena
cuja
inata natureza dá de força plena
seu
nome é Odi-Bil e sua dor é serena
desconhece
extremos sua resistência
D’outro,
Ojesed, está a virtude na paciência
ainda
que seja vontade e poder em existência
eterniza-se
ao renegar o pecado da urgência
prima
arquitetando o mapa da conquista
Enfim,
tão breve chega o desfecho pessimista
previsto,
perpetrado em ambição racista
de
vida tamanho desperdício idealista
para
então fluírem com a perda da textura
Suplantada
a harmonia, que floresce? Loucura!
Odi-Bil e Ojessed
vêem-se sem figura
tomada
pelo rigor da ambição mais dura
no
vácuo de qualquer esperança lançada
Até
que em dia, diante de mais nada
chocam-se
e em uníssono compõem uma alvorada
sob
qual toda alma nasce libertada
de
qualquer natural cilada do inferno.
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