terça-feira, 16 de outubro de 2018

CRIMES SOB SUSPEITA (VOLUME I) - 2005


FABIANO SANTOS SOUSA






CRIMES SOB SUSPEITA
(ou “The invisible thing diary”)



VOLUME I





























“Esta é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com a vida real nos mostra que ‘quem diz que a realidade também não o é?...’













































A Stephen
Por seus constantes brindes à Coisa Invisível







Sumário


Introdução
I- Indiscutivo
II- O mestre de arena
III- Ondas transmissivas de morte
IV- Os fins da guerra
V- Latências
VI- Ficando-se a vontade
VII- O legado
VIII- O jardim
IX- Pânico no inferno
X- Dia de cão
XI- Elos flexíveis
XII- Maldição das sombras
XIII- ODIBIL, o demônio


















  



INTRODUÇÃO

Os contos são excêntricos.
Independentemente de quem os escreva, tal forma narrativa é carregada de excentricidade. Num romance, obra e autor são obrigados a encontrar um consenso, sem o qual se tornaria impossível o desenrolar das idéias. Como em todos os relacionamentos, o confronto de gênios e idéias torna-se inevitável e é onde parceiros aprendem a sintonizar a essência das convergências em meio aos confrontos num denominador comum.
Quanto aos contos, não há qualquer compromisso pré-estabelecido. Há sim uma espécie de relação poligâmica, sem qualquer diretriz inflexível. Ouso dizer que os contos geralmente detestam os seus autores; chegam às vezes a conduzi-los num regime extremamente ditatorial. E podem simplesmente se livrar deles, impondo a si próprios um remate repentino inconclusivo e intransponível, muito aquém das expectativas de seu pobre frustrado criador. Este, por sua vez, tem uma única alternativa para livrar-se de um conto impertinente, além é claro de terminá-lo: lançá-lo no lixo. Sim, pois é inaceitável um conto forçado a encontrar seu final antes do tempo. Até mesmo os aparentemente concluídos às vezes voltam para assombrar, como sequências indesejadas de filmes, que chegam para tapar pequenos furos só tardiamente descobertos e inadmissíveis. Há os que começam e terminam num único lampejo; outros podem durar uma vida inteira...
Um simples conto de poucas páginas, todavia, pode satisfazer tanto quanto ou mais do que um volumoso romance.


Nenhum destes contos deve realmente assustar, mesmo o leitor mais despreparado para se deparar com situações um tanto incomuns. Se tal ocorrer, certamente terá sido um acidente de percurso já que nunca lhes coube tal pretensão. No entanto, o mesmo leitor não deverá estranhar se começar a olhar desconfiado para coisas e situações perfeitamente corriqueiras, pois assim como não há singularidade nos dias, em todas as situações há um crime sob suspeita.


F.S.Sousa























“... então eu disse a ela: ‘Mas como você pretende me matar se eu já estou morto? ’...”
(CARLOS SIMÕES DE ALMEIDA NETO)
























  

I – “INDISCUTIVO”


            O morto se levantou e abriu os olhos. Seus olhos saltaram ao verem a luz. Seus movimentos eram claramente dificultados por uma rigidez mórbida, mas ainda assim, com algum sacrifício ele pulou para fora do seu sepulcro destampado. Tropegamente começou a se movimentar. A cor de sua pele alcançara o auge da palidez e seu corpo seminu e curvado lembrava um imenso cisne depenado.
            Seu olhar idiota percorreu o cemitério, que deveria ser sua última morada, e encontrou o portão de saída. Arregalaram-se ainda mais os seus olhos e brotou-se-lhe no semblante um largo sorriso débil e desdentado. Seus braços compridos se estenderam em direção à saída e ele tentou falar, mas apenas grunhiu algo como:
“manha caja, manha caja”

Depois tentou correr, mas tropeçou comicamente nas próprias pernas e caiu de cara no chão, numa cena típica dos humoristas de televisão.
Levantou-se já nem tão animado e caminhou lentamente, como que receoso, até o portão de saída. Estava fechado. Ele empurrou e puxou-o durante alguns minutos, como uma criança que insiste aos pais para a levarem ao parque fora do horário do expediente, depois desistiu e pôs-se a perambular cambaleante por entre os túmulos como um autêntico zumbi.
Às vezes resmungava lamuriosamente:
“manha caja, manha caja!”

Quem o visse, naturalmente diria que ele não sabia que estava morto. Bem, talvez ele soubesse...
Talvez ele quisesse que outros também soubessem.
Só existe razão ao que não é permitido. Do permitido encarrega-se o Tempo...




Tropeçou novamente em um dos jazigos e desabou, batendo a cabeça contra o cimento do solo, provocando um ruído similar ao de um côco se partindo. Levantou-se e seu crânio estava rompido e com uma fresta enorme um pouco acima da testa. Vermes brotaram rapidamente da rachadura, como guerreiras abandonando o formigueiro em busca de possíveis invasores. Ele sorriu; um inexplicável sorriso triunfante e seu maxilar desabou como uma caveira humana. Os vermes logo lotaram o seu rosto, penetrando-lhe pelos olhos, nariz, orelhas, descendo para o pescoço e nadando na saliva constante e espessa que sua boca irremediavelmente escancarada produzia.
Seu corpo começou a arquear ainda mais e suas pernas se partiram nas juntas dos joelhos, não suportando o próprio peso. O morto foi pela última vez ao chão e começou a se contorcer loucamente, como um fio desencapado. Seus movimentos tornaram-se rápidos e sua silhueta começou a assumir uma nova forma; os pedaços de carne putrefata que haviam sido o seu corpo se uniram como uma simbiose de ficção científica. Sua massa diminuiu aceleradamente até, não se sabe porquê, só restar uma antiga pena gráfica e, sem carga ou tinteiro, a pena vazou, deixando apenas uma mancha escura no chão.
A mais alta estrela que se podia contemplar a olho nu brilhou sobre essa mancha e ali uma planta nasceu sem raiz ou flor...






  









   
II – O MESTRE DE ARENA


            O animal emitia um ruído louco e desesperado; nas devidas proporções de seu tamanho, era algo como um rugido furioso. Arreganhava suas presas para tentar intimidar o inseto pequeno, mas petulante que o afrontava. Não demorou em sentir a mortífera picada do outro inimigo, cuja presença ele já se parecia ter esquecido.
            Ainda mais louca de raiva, a ratazana avançou para o arisco escorpião, tendo o outro em seu dorso. Seus dentes fortes esmagaram o pequeno animal, mas o esqueleto cheio de protuberâncias ósseas rasgou o interior de sua boca e a saliva misturada ao sangue começou abundantemente a jorrar. Sacudindo de forma ensandecida a carcaça de um dos escorpiões, o rato contorcia-se violentamente, tentando derrubar o outro de suas costas, mas a tal altura, já se encontrava fraco e entontecido por causa do veneno. A morte “pós agonia” evidenciava-se em seu instinto infeliz.
            O rato cambaleou e tombou no chão, debatendo-se por repetidas vezes; o aracnídeo saltou de seu corpo e habilmente se afastou. O outro escorpião, completamente esmagado, também se remexia em vão, saboreando seus últimos instantes de vida. Por fim, o rato também endureceu. Não esboçava mais qualquer reação. Então, seu algoz triunfante se precipitou a se retirar, até ser, de súbito, esmigalhado e retorcido por um grande coturno negro.

            “Seu prêmio, campeão dos estúpidos” – disse o jovem general, o propagador de tudo, com um sorriso meio sádico, meio alucinado no rosto. À noite, na proteção de seu aposento privativo recém adquirido, aquele era um costume que o vinha cativando intensamente.
            Despejou querosene sobre as carcaças, (tudo o que restara), ateou fogo e ficou por instantes observando a cena, satisfeito. Depois foi dormir pensando no que se poderia fazer com prisioneiros de guerra caso não houvessem tantas malditas convenções...










  

III- ONDAS TRANSMISSIVAS DE MORTE


            Figuravam-se sombras nas calçadas, emoldurando o cenário lúgubre e soturno. As ruas estavam desertas, mas o silêncio não incomodava. Ao revés, nele as sombras perfeitamente acomodadas pareciam falar; pouco, mas suficiente para divagar seu senso de expressão.
            Uma flama de faróis junto com um roncar de motor irrompeu a tranqüilidade da planilha natural.
            “Ora, é de praxe a afinidade entre carros e ruas”, pensou Daniel, um tanto ressabiado.
            Não! Não pouco, mas realmente muito ressabiado. Vivificando um dos muitos momentos da vida os quais a lógica jamais se atreverá a explicar, Daniel soube que iria morrer. Não por mãos de inimigos, dos quais até sentia falta, ou por qualquer outro motivo que reconhecesse; apenas porque o momento, ainda que não o fosse, far-se-ia ser. Aquele instrumento desconhecido trazia o remate de sua vida tão cheia de perspectivas. Nesse tipo de circunstância, há um bucólico lampejo de fantasia retrospectiva. A mente, vaidosa até o fim, exige a bel prazer de Deus, do destino, ou de qualquer deus do Destino, que se prolonguem seus derradeiros momentos até que caibam as boas e (por que não?) também as más lembranças que compuseram toda vida. É até possível que tal extravagância seja concedida, mas, sem dúvida, seu tempo dar-se-á não por contagem humana, pois para estes só há os tempos de se estar vivo, morrendo e morto.
            Aos esperançosos, há ainda entre esses, o tempo de rebuscarem e se apegarem as suas convicções de ressurgirem, mas além da esperança, é preciso estar atento...
            Conceitos teológicos e científicos a parte, é impressionante como a morte quase sempre se manifesta singularmente no homem. Como se a morte do ser humano fosse dotada de vida. Ainda que o homem domine a medicina, a genética, a religião, quem realmente pode explicar a morte?


            O automóvel vermelho não chegou a parar. Apenas passou e da janela alguém despejou os tiros que ecoaram pelas ruas. Talvez fossem adolescentes bêbados, ou pistoleiros profissionais exercitando a pontaria, não importava. Mesmo que fossem anjos do Senhor cumprindo uma divina sentença, a quem vai, nunca faria sentido...
            Apesar de suas percepções se alterarem profundamente, Daniel sentiu a primeira bala atravessar-lhe a garganta. Viu e engoliu, com quase nenhuma dor, o sangue e lamentou; era o fim. Um novo disparo alvejou-lhe na cabeça, estraçalhando-lhe o crânio e uma terceira explodiu seu estômago.
            O carro já ia longe, num estridente fritar de pneus pela noite.

            Sempre se procura, para tudo um sentido. Antes disso, é preciso estar atento...





IV – OS FINS DA GUERRA


            Já iam seis quilômetros de uma correria impetuosa pela deserta rodovia naquela noite. Uma leve garoa parecia fortalecer os motivos para que o rapaz continuasse aquele impropério insano. Vez ou outra, um farol surgia de um ponto longínquo da estrada, até o veículo passar, sem tomar conhecimento do pobre rapaz e dos seus motivos.
            Sua penúria começara há vinte minutos, enquanto perambulava tranqüilo e desobstinado pela avenida de uma cidadezinha, que a tal altura já há muito ficara para trás. Seu olhar encontrou, de repente, o olhar daquela enorme fera surgida de lugar algum. Os primeiros instantes foram de imobilidade e silêncio, até que o cão começou a rosnar e intimidar o já seu oponente, com suas enormes presas. Antes que o grande dálmata se precipitasse, o rapaz se lançou a correr pela estrada, bem sabendo que o animal vinha em seu encalço.
            Chegavam assim àquela condição de perseguidor e caça. Obviamente, o homem já percebera que aquilo se tratava de um jogo. Indubitavelmente, o animal já o poderia ter  alcançado se quisesse, graças a sua agilidade natural. Acontecia, porém, que o cão corria apenas o suficiente para ditar-lhe o ritmo. Não tinha qualquer pressa de pegá-lo, assim como não parecia estar se cansando. Queria vê-lo apenas seguir em frente; continuar fugindo.
            O pior do percurso eram as subidas da serra, onde o asfalto molhado facilitava os escorregões. O que parecia ser uma luz tornou-se uma grande frustração quando uma viatura da polícia rodoviária passou em alta velocidade sem tomar conhecimento do homem que gesticulava desesperado na tentativa de demonstrar estar sendo perseguido por um louco e imenso cão-de-guarda.
            Enfim, sua esperança se foi junto com a viatura e em sua mente aproximava-se o momento em que se veria fatalmente obrigado a atracar-se com o cachorro, numa luta de sobrevivência. Suas pernas já demonstravam claros sinais de fraqueza. Talvez fosse isso que o bicho quisesse, afinal ele já deixara claro ser dotado de uma inteligência que embora sádica, parecia estar bem acima da média de sua espécie.

            Sem fazer a curva para uma nova subida, o rapaz deu de frente com um precipício. O cão, naturalmente, o seguiu. Ambos diminuíram a marcha, sabendo que aquela saga insana estava por terminar. O homem parou diante do abismo e fitou-o. Era tão profundo que não se podia enxergar o chão lá embaixo. Olhou então para trás e estava, outrossim, o cão parado a uns cinco metros de distância a latir ameaçadoramente. O homem bradou:
            - Venha me pegar, seu miserável!
            O cachorro soltou um último latido e inacreditavelmente começou a se dirigir de volta à serra, parecendo perder qualquer interesse que, por ventura já tivesse cativado por aquele estranho. O homem, todavia, não se sentiu aliviado. Ao revés, sentiu-se furioso. No fundo do seu âmago buscou e encontrou forças para perseguir o cão, numa inversão dos papéis, atirando-lhe pedras. A certa altura, o animal foi ferido e cheio de fúria tornou a se voltar para a loucura do homem que então se abaixou para pegar uma vara de madeira para intimidar o grande dálmata.
            - Não queria me pegar, vira-lata cretino? Pois o que está esperando? Estou aqui.

            O animal, latindo furioso, precipitou-se vorazmente rumo ao homem. Este, atirou-lhe a vara sem nem mesmo prestar atenção se acertava e correu de volta ao precipício, saltando em seguida. O cão parou ao chegar à beira, olhou para baixo e ganiu de medo. Parecia estar bastante confuso. Deu uma recuada de costas e deitou-se no chão, permanecendo assim por breves instantes. Por fim, virou-se para ir embora quando viu que atrás de si lhe espreitava uma grande onça. Ela arreganhou os dentes, como que o desafiando para um confronto, talvez por ter ele invadido seu território de caça. Numa única e última ação, o cão saltou também rumo ao desfiladeiro, livrando-se da onça e do remorso...



  
V – LATÊNCIAS


“Na volta do baile, o carro me aborda e eu os vejo. São três. A carona é oferecida. O do lado esquerdo atrás brinca com uma arma.
Recuso. Meus passos prosseguem tensos e mais rapidamente. O veículo se afasta; o temor permanece um pouco mais. Bonita sim, e sabedora disso. Cabelos pretos, longos, escorridos; de pouco brilho, mas bem tratados e perfumados. A pele morena clara, olhos muito verdes e lábios grossos, indiscretamente avermelhados por batom. Visto uma mini-blusa e um short de lycra preto. Os tênis são brancos e caros, mas não são nem de longe a maior preocupação... Moro longe, mas a diversão é grande. Sou popular; tenho amigos, namorado e incontáveis pretendentes.
Ha incalculáveis quilômetros entre a segurança e a diversão evanescente, ouço os pneus queimarem até a freada brusca que quase me toca o veículo. A porta abre e a arma é prontamente apontada após a expressão: ‘Não grite!’. Mesmo que o fizesse, quem iria ouvir?
A arrancada foi ainda maior. Entre lágrimas e dois deles, sou agarrada fortemente. Nós apertados com trapos são feitos entre meus tornozelos e mãos e uma mordaça é improvisada em minha boca. Minutos depois, um matagal de um grande terreno baldio. Sou carregada no colo por um deles; outro nos acompanha e o terceiro parte com o carro. Jogada no chão, tento arrastar-me. Mato e pedra me ferem e provocam arranhões por todo o corpo. Um deles joga-se sobre mim e me agarra pelos cabelos. Sou beijada com violência, mesmo sobre a mordaça e ele me imobiliza, vencendo meu espernear. A arma dele está na cintura. Entrega-a ao companheiro e recebe um pequeno estilete afiado. O trapo na minha boca agora esta manchado de batom. Corta-me ambas as alças da blusa expondo meus seios para serem imediatamente sugados por uma língua impetuosa e enlouquecida. Sinto mãos me agarrarem o short até o arrancarem pelas pernas que ainda se debatem inutilmente. O homem sobre mim despe-se afobadamente procurando não aliviar a pressão que me imobiliza. Corta-me então as amarras todas, enquanto o outro engatilha a arma e a encosta na minha cabeça após a expressão: ‘não grite’. Com o estilete ele talha a minha calcinha e suas mãos percorrem minhas coxas até seus dedos se aninharem em minha vagina, invadindo-a sem dificuldades. Após uma pequena dor inicial, a umidade instintiva flui e seus dedos passam a deslizar tranquilamente para dentro e fora de mim, evidenciando para a mente louca do maníaco que aquele corpo ofertava-se completamente para a violação. A coisa execrável” é rapidamente acomodada entre as minhas pernas e a impulsão dada é mais do que a necessária para penetrar-me totalmente. Meu grito sai quase como um gemido, o que deve excitá-lo ainda mais. O peso dele sobre mim, aliado à tensão gerada pela arma pressionada contra minha cabeça aumenta progressivamente a sensação de impotência e desprezo por minha própria fragilidade. Após cerca de não muito mais do que um minuto, mas que desfilou como a própria eternidade, ele gozou, acelerando o ritmo de vai-vem, até o interromper bruscamente. Sinto-lhe a deslizar lentamente para fora de mim, ainda gotejando sêmen pelo seu membro nojento.
Como fora fácil prever, o outro homem, até então mero expectador passivo, prepara-se para assumir a posição do comparsa.
Durante a troca, ambos estão descuidados da arma, deixando-a no chão, um pouco acima de minha cabeça. Neste momento, em minha cabeça entorpecida, todos os faróis da oportunidade se acendem...
Num esforço descomunal, livro um dos meus braços do domínio displicente que exerciam e apanho a arma. Vocês devem saber que a partir de agora o rumo da história mudará. E muda.

O primeiro tiro é, devido a minha dificultosa posição, no ombro, mas é mais do que suficiente para fazer o desgraçado voar longe, concedendo-me todo o espaço de que preciso para doravante assumir com clareza as rédeas da situação. Levanto-me, completamente nua; meus lábios inchados sangram, mas oportunamente o gosto me fortalece. A arma firma-se cada vez mais em meus punhos. Posso ser frágil e descontrolada, movida apenas por choque, pavor e raiva impulsiva, ou posso ensinar-lhes realmente uma lição. A sensação de impotência afasta-se totalmente. Se quiser, até posso sorrir. Pasmem se quiserem; alguém acha que me importo?
A essa altura, o outro já está tentando fugir. Não posso descrever o jubilo que sinto ao ver o covarde tentando escapar com as calças na mão, abandonando o companheiro como se nunca o tivesse conhecido. Abato-o pelas costas, como ao animal de pior espécie que ele é, posto que no caso dos animais verdadeiros jamais o teria coragem de fazer. Ele vai ao solo após um grito reconfortante.
- Não gritem – brado com clareza para ambos ouvirem e desta vez não contenho a gargalhada.
Dirijo-me ao primeiro, o meu já “amante compulsório”, que jaz encostado numa árvore, sem forças, ou talvez sem coragem para tentar fugir. Ele, logicamente, está vomitando incessantemente palavras de súplica e arrependimento. Isto me provoca náuseas. Preciso calá-lo. Nunca havia pegado antes numa arma em toda a minha vida, mas também como em poucas vezes em minha vida confiei em alguma coisa, confio agora em minha mira. Aproximo-me e viso sua mão direita. No alvo! Ela explode, lançando fragmentos de ossos, sangue e tripas pelo ar e chão. Ele berra como um bebê e eu disparo mais dois tiros, um em cada uma das juntas dos seus joelhos. Ele começa a contorcer-se e girar pelo chão como uma lacraia decapitada. Tudo isso continua a me divertir.
Volto minhas atenções ao outro. Ele ainda pode se arrastar, então, por que não o obrigar a ir para junto de seu companheiro? No começo ele se recusa, protesta, mas são deveras fracos os argumentos dos covardes. Ele sabe que vai morrer, mas se recusa a aceitar dignamente tal possibilidade. Prefere se agarrar a sua mísera e vã esperança de que de dentro da menina frágil, vítima potencial que reconheceram a princípio, eles ainda vão conseguir extrair alguma piedade. Contudo, ele cede e acata minhas determinações. Ótimo! Matá-lo por insubordinação, certamente não seria tão divertido. Coloco-os lada a lado. O que aleijei e decepei a mão está apenas semiconsciente. Praticamente desmaiado. Praticamente morto. Espero sinceramente que ele agüente só mais um pouco.
O outro continua a implorar, então vou agraciá-lo primeiro. Acerto-lhe na região da virilha; repito a ação em seu colega, que desmaia, (ou morre de vez). Não sei quantas balas ainda me restam, mas espero que sejam suficientes.
Chego perto deles. Não tenho mais o menor pudor por estar nua na frente de desconhecidos. Talvez já nem sejam mais desconhecidos. Apenas amigos não muito queridos, mas que, apesar de tudo, divertem-me. Certamente algum ramo da Psicologia terá um nome para isso.
Viro de bruços, com algum esforço, o que ainda está consciente. Apesar de ele já estar bastante debilitado e não oferecer qualquer resistência, o diabo é pesado como um porco. Felizmente, jamais precisarei torturar um porco.
Compensando-me pelo esforço, consigo virar-lhe de costas e lhe enfio o cano do revolver pelo orifício adentro. E como há dias em que nem tudo pode ser perfeito, puxo decididamente o gatilho, mas a arma falha. Há apenas um “clic” silencioso no ar e o homem emite algum som que interpreto como um suspiro de alívio. O ódio emerge pela minha garganta, parecendo me inundar o cérebro. Arranco abruptamente a arma do rabo do desgraçado e com a coronha passo a golpear repetidas vezes sua cabeça até sentir minhas mãos se afundarem numa poça de sangue. Cada som de osso partido soa para mim como uma suave nota musical. Após me satisfazer não sei por quanto tempo com essa tarefa, troco de alvo e passo a investir contra o rosto do outro já sem tanto júbilo; parece evidente que nenhum dos corpos é capaz de sentir mais os meus estímulos de dor.
Largo, por fim, a arma ensangüentada e me entrego ao silêncio e ao vazio. É o fim?!
Um detalhe, então, ilumina-me a mente: o terceiro homem! O que nos trouxe e partiu no automóvel, provavelmente para deste se livrar. Pouco sei dele e ele idem sobre mim, mas sei que ele é um deles, o último deles; que foi também parte disso e é o que me importa saber...

Torno a apanhar a arma, (descarregada sim, mas só eu e você sabemos disso, não é mesmo?), deito-me ao lado dos corpos e começo a me masturbar com o cano do revolver, desejando e esperando pelo terceiro deles...




  

VI - FICANDO-SE A VONTADE...


“Abro o portão, com vontade de matar alguém.
alguém: Pronome Indefinido Masculino Singular

            Assim deixo a minha casa; com o espírito da morte pesando sobre meu outro eu. Ora, não me venha perguntar analiticamente se sinto ódio. Ódio por quê? De que me adiantaria andar por aí cansado por carregar um sentimento tão pesado? Também não me perguntem se me defendo. Nada temo. O ódio, o medo, são abstrações que não me permitiriam manter-me sempre harmônico com a Natureza e isto é o que mais cativo. O que menos cativo, cativo pouco, mas feliz ou infelizmente, o que vem de mim nunca deixa de ser eu mesmo; com uma tórrida vontade de matar alguém.
            A noite está fria. Chove; em conseqüência, o ar está úmido. Algumas ruas estão ‘semidesertas’, outras, desertas.

algumas: Pronome Indefinido Feminino Plural
outras: (idem)

            Belas mulheres não temem bailar na noite fria. Aquela – paira tranqüila em frente às vitrines na galeria do shopping Center
aquela; Pronome Demonstrativo Feminino Singular

            Pronto, já estou a segui-la; com passos marcados, firmes e decididos, mas acompanhando a sua leveza. Seu inconsciente testa minha paciência. Ela vaga furtiva, vislumbrando coisas desinteressantes, como se pretendesse me dispensar de meu súbito ofício.
            Enfim, saímos do shopping; renascemos para as ruas; desertas, ou mesmo as semi desertas. E para um mar profundo de mórbidas possibilidades, onde, agora mesmo eu poderia abordá-la, dominá-la, possuí-la e libertá-la para a vida; bela, mas um pouco mais dura, mais negra...
            Possibilidades insanas, apenas! Não sou maníaco, tarado, ou mesmo um homicida. Deixei de ter e passei a ser apenas uma vontade de matar alguém. Então não me julgue. Disponha-me a tua vida pela de outrem. Eu sou como o suspiro de alívio que você dá quando sabe que o ônibus atropelou o filho do seu vizinho e não o seu, já que ambos brincavam juntos de soltar pipa na rua. Ou quando, em meio a centenas de mortos carbonizados, toda a sua família entra na lista de sobreviventes de um desastre de avião.
            Definitivamente eu não sou o bombeiro herói que se lança ao perigo e morre para resgatar a vítima.
            A morte, eu como desejo, o bom bombeiro, soamos apenas como ideais.

            O ponto de ônibus; a eventual parada do tempo e da amargura. Mais duas mulheres que lembram princesas; mais duas vidas que se irão qualquer dia.
qualquer: Pronome Indefinido Masculino Singular

            Ir-se-iam...

            Não! Esvaiu-se a diva de minha vista, embora eu já estivesse prestes a descarregar as armas de meus pensamentos. Ah! Lá está ela! O que se esvaiu foi, na verdade, a primeira, a vontade. Tomou o seu lugar a vontade de estar vivo, eterna opositora da anterior. Outras nascem também a todo tempo; herdadas, concebidas. Todas igualmente voluntariosas; algumas, pretensiosas, outras, esquizofrênicas e senis. Até quando me aceitarão a inteligência? O que sobrará de sua luta com o físico?

            Luta?
            É o meu sangue que sempre vira nitroglicerina.
            Minha bomba pulsa para morrer à lua.”





VII - O LEGADO


            Assim que saiu da prisão por bom comportamento após cumprir 80% de sua pena de 40 anos por homicídio, David foi para casa. Pediu na delegacia para que nenhum parente fosse avisado. Iria fazer uma surpresa a todos.
            Passou em frente a um bar e resolveu matar uma vontade que trazia há anos. Podia voltar finalmente a tomar uma cerveja. Degustou lentamente cada gole, pagou e matou o dono do bar, cortando-lhe a garganta com o fundo da garrafa quebrada.
            Depois de tanto tempo na prisão, estava completamente desorientado. Era muito estranho poder caminhar de novo pelas ruas.
            Lembrava-se vagamente do seu antigo endereço. O velho chalé de madeira construído pelos avôs. Ninguém o esperava. Se tivesse ainda qualquer parente vivo, certamente estaria rezando para que ele apodrecesse na cadeia.
            As ruas estavam mudadas; os ônibus também e os bondes tradicionais não mais circulavam pelos trilhos.
            David viu um mini-posto policial e resolveu pedir informações. Caminhou até lá e constatou que estava vazio. Espiou pela janela da cabine e viu o cinturão com o revólver na prateleira de uma pequena estante. Olhou para o outro lado e viu o guarda anotando infrações num caderninho, na esquina de uma avenida.
            David entrou tranquilamente na cabina, apanhou a arma e várias cápsulas de munição. Acomodou tudo na cintura, sob a camisa e então caminhou até o guarda para pedir-lhes as informações desejadas. Após o contato extremamente cordial com o desatento agente da lei, David agradeceu-lhe pela gentileza, despediu-se de forma cortês e em mais um momento de distração do guarda, empurrou-o para o meio da avenida assim que passou o primeiro infrator em alta velocidade.
            Acomodando melhor a arma no coldre na sua cintura prosseguiu com seu trajeto, ajudado pelas últimas informações da vida do guarda.
            A alguns metros dali acompanhou a ação de uma criança que acabava de arrebatar a bolsa de uma senhora e agora debandava em sua direção. David esperou o pivete se aproximar e agarrou-o violentamente pelo pescoço, comprimindo sua garganta até que perdesse os sentidos. Tendo o garoto inconsciente em suas mãos, manteve a pressão do estrangulamento até que a respiração cessasse definitivamente. Só então largou o corpo no chão que caiu como um boneco.
            A dona da bolsa observara toda a cena horrorizada e via agora o seu “benfeitor” vir em sua direção com a bolsa na mão. Seus olhos mostravam medo e raiva do desconhecido com radical e distorcido senso de justiça. Ela começou a se afastar e num ímpeto pôs-se a fugir antes de ele a alcançar; não pareceu razão para ele se preocupar. Apanhou o revólver e alvejou-a certeiramente pelas costas. Jogou a bolsa sobre o cadáver e seguiu seu destino.



            A polícia chegou ao paradeiro de David através das informações de transeuntes e motoristas que testemunharam seus diversos crimes. E pode-se dizer que chegaram, como de praxe, tardiamente, já que, como quem passeia cantarolando alegremente numa bela tarde de domingo, o assassino não fazia qualquer esforço para ocultar seus rastros.
            Próximo ao velho chalé de sua família foi cercado por várias viaturas. Até ali, David já havia assassinado mais dezoito pessoas. Sempre lhe espantara a fragilidade do corpo humano. É extremamente fácil retirar a vida de alguém desprevenido. É como roubar um banco vazio.
            Mas enfim, a polícia o alcançara e o teriam que matar, pois ele jamais se entregaria.

            Recarregou sua arma e abriu fogo contra os policiais. Foi fuzilado sem acertar nenhum...
Antes que a polícia chegasse até o seu corpo mortalmente ferido, um veículo se interpôs às viaturas. A porta se abriu e o corpo foi colocado para dentro, numa velocidade indescritível, (até sobre-humana, talvez). O carro vermelho saiu em disparada, atropelando ainda vários guardas e transeuntes antes de desaparecer sem deixar a toda a frota de policiais atônitos qualquer chance de lhe perseguirem.

Com a consciência já bastante debilitada, David olhou para o motorista do carro. Era na verdade uma bela jovem de longos cabelos loiros. Ela, ainda que a dirigir velozmente, retribuiu-lhe o olhar por um longo instante e por fim sorriu. David compreendia pouco a situação, mas achou muito bom deixar-se levar. Sentiu-se muito feliz e seguro por estar ali sendo transportado pela linda jovem. E de alguma forma, aquele sorriso dela preenchera o seu espírito com toda a tranqüilidade de que ele precisava.
Após tossir e se engasgar com a própria respiração, pediu à mulher um cigarro. Ela apanhou um maço no porta luvas e tirou um. Colocou na própria boca, acendeu-o e o transportou delicadamente para os lábios de David. Ele agradeceu e deu uma tragada profunda. Como que se despedindo de seu próprio instinto, lamentou não ter mais forças para matar aquela bela jovem. Poderia talvez ter sido a verdadeira obra de sua vida...

Fechou os olhos, que é a forma mais digna de morrer.

E ele realmente morreu no carro, ao lado da moça, porém, quando tornou a abrir os olhos, a mulher ainda estava lá. Ela parou o carro e começou a cuidar dos ferimentos que ele trazia por todo o corpo.


Assim, por veneração, (e por que não dizer, talvez até amor), David se casou com a própria Morte. Jamais falaram em filhos: seria inconcebível! Sua fama se alastrou pelo Universo, mais ainda quando ele assassinou a própria esposa sem deixar de honrar-lhe o ofício. E se no transcender da imaginação, pode a criatura superar sempre o criador, uso agora as últimas energias que me sobraram após o meu fatídico encontro com David para concluir esta história com um alerta:
OLHE-O BEM AÍ, ATRÁS DE VOCÊ...”

JARDIM

“In memorian de um passado que nunca existiu.”



“Era exatamente isso, filho. Um enorme, vastíssimo jardim! Nele, uma indescritível variedade de plantas e flores. Muita luz e cores sugerindo uma paz e harmonia sem fim. No centro do jardim, tranqüilamente corria um grande lago de águas esverdeadas, mas absolutamente cristalinas. Talvez algo muito próximo das concepções que se costumam traçar sobre o paraíso.”
Fez uma pequena pausa reflexiva e continuou:
- Mas não havia ninguém lá. Embora o ambiente pulsasse de vida, era um imenso deserto sem fim.
O filho, que claramente não gostava dos rumos daquela conversa, tentou apressar o fim do assunto.
- O que o senhor precisa, pai, é de uma vida mais agitada. Vou levá-lo comigo a umas festas e bailes tão quentes que vão lhe sacudir até nos sonhos.
Parecia claro, no entanto, que nem tão facilmente o homem estava disposto a se desligar daquele sonho.
- foi o sonho mais real que já tive. Eu sei que à primeira vista ele parece de mau agouro, mas sinto que a mensagem que me foi dada na forma deste sonho é muito importante para a minha vida.
- Ótimo! – asseverou o filho – Desde que nada tenha a ver com “bater as botas”. Agora vamos, que se nos atrasarmos de novo para o jantar, o jardim de casa será realmente o lugar onde dona Marinalva nos fará passar a noite.


O pai se chamava Odair Almar. Tinha 64 anos e havia 30 que abrira a loja, pequena a princípio, mas que logo prosperou. Vendia carros usados. O pequeno galpão do começo transformou-se num gigantesco armazém. E o melhor era que tivera condições de se livrar do aluguel, comprando o prédio.
O filho se chamava Marcus e tinha 32 anos. Há dezoito ele e o pai trabalhavam juntos. O garoto começara aos trezes, sob os ardorosos protestos da mãe, que o queria se dedicando exclusivamente aos estudos. Como prova de que uma coisa não necessariamente atrapalhava a outra, nunca repetiu nenhuma série. Todavia, também nunca cativou grandes pretensões quanto a sua formação educacional, mesmo por que, a loja rendia um bom dinheiro que plenamente satisfazia seu ímpeto consumista adolescente.
Com o tempo, o movimento da loja crescera consideravelmente. De forma curiosa, porém, o retorno financeiro parecia cair na mesma proporção. Tornava-se a cada dia mais difícil manter as portas da loja abertas, mas devido à credibilidade e confiança adquirida em tantos anos de tradição, Seu Odair vinha, com muito esforço, conseguindo contornar as situações mais críticas.
Marcus casou-se e comprou um luxuoso apartamento para viver com a esposa. Separou-se um ano depois, após diversas e intensas brigas, voltando para a casa dos pais com uma singela dívida judicial na bagagem, por conta do apartamento, além de dívidas bancárias e no mercado comercial. Aos poucos, com a ajuda do pai conseguiu mais uma vez ter o seu nome limpo, embora seu espírito gastador sempre lhe rendesse cobradores em seu encalço.
Seu grande segredo, no entanto, era uma robusta conta secreta nos Estados Unidos, fruto de desfalques e grandes desvios de dinheiro na loja em que administrava ao lado de seu pai. Tal conduta de sua parte começara ainda na adolescência, época em que o pai, até como uma forma de educá-lo e sedimentar sua personalidade, era bem mais rígido na administração do dinheiro, permitindo que coubesse ao filho apenas a parte pré-determinada de seu salário. Assim, gastando muito mais do que recebia, o jovem começou a aplicar os primeiros golpes na contabilidade da loja. Vendia carros por preços muito acima do teto estabelecido, comprava-os por verdadeiras ninharias, aproveitando-se invariavelmente de grandes dificuldades financeiras dos proprietários e sempre fraudulando os valores na hora de contabilizá-los nos balanços semanais. Além disso, inventava diversas despesas inexistentes e aumentava propositalmente os valores das existentes em muitas declarações. Valendo-se da absoluta confiança que seu pai lhe depositava, nunca fora descoberto, ou pelo menos, nenhum funcionário jamais se atreveu a censurar sua conduta.

Aconteceu que em certa época Marcus detectou uma relativa e repentina mudança no comportamento de seu pai, coisa que seu Odair parecia fazer muito esforço para não deixar transparecer. Imediatamente, Marcus deduziu que seus roubos haviam sido descobertos e chegou até a pensar em fugir; sumir por uns tempos até que a poeira assentasse. O dinheiro que agrupara era mais do que suficiente para desaparecer por uns bons tempos, levando uma vida de rei. Quem sabe, um dia talvez voltasse, afinal, os pais sempre irão perdoar os filhos...
Tudo mudou quando seu pai resolveu lhe procurar e lhe contou sobre aquele estranho sonho. Embora lhe parecesse meio mórbido no dia, aquele sonho trouxe a Marcus uma profunda sensação de alívio. Era sinal de que seu pai estava preocupado com uma possível proximidade da morte, (preocupação típica quando se atinge uma determinada idade), e que não tinha qualquer relação com as transações irregulares do filho na empresa.
Amava seu velho pai, mas preferiria vê-lo morto a que descobrisse tudo.



O jantar naquela noite, apesar de decorrer na forma tradicional de sempre, também pareceu, de alguma forma, diferente. Uma certa melancolia pairou no ar, embora em nenhum momento se tivesse tocado em qualquer assunto triste à mesa.
Após o jantar, Seu Odair se retirou para o seu quarto mais cedo, coisa que raramente fazia, já que costumava acompanhar assiduamente o noticiário noturno. Apenas alegou uma leve indisposição e foi-se deitar.
D. Marinalva, mãe de Marcus, demonstrou-se preocupada com o marido, mas foi tranqüilizada pelo filho que lhe garantiu que tudo estava bem e que o pai levantaria muito melhor pela manhã.
Mais uma vez, a idéia de ter sido descoberto passou pela mente de Marcus, mas ele a expulsou com muita força de vontade. No entanto precisaria dar um jeito de obter a certeza de que seu segredo estava seguro...


Pela manhã, tudo parecia mesmo ter melhorado como ele preverá. Seu pai acordara bem mais disposto e como sempre, os dois foram juntos para a loja. Tudo pareceu normal até o momento em que Seu Odair ergueu a porta da loja. Marcus acabava de estacionar o carro quando percebeu que algo com o seu pai não estava bem. Seu Odair permanecia em pé diante da porta entreaberta da loja, olhando apalermadamente para o interior do recinto, sem sequer se mexer. Subitamente levou as mãos ao peito e começou a cambalear dando passos lentos para trás.
Rapidamente Marcus saiu do carro e correu para ampará-lo, mas só teve tempo para ouvir suas últimas palavra:
- O... jardim...!

O homem desabou no chão, morto.



Se a recomposição da família foi difícil, a administração dos negócios sem a presença do pai, para Marcus foi ainda mais difícil. Ele sabia que dificilmente teria condições de suportar as pressões contornáveis apenas pelos bons administradores.
Um mês após a morte do pai, uma grande revelação lhe veio a lume. Em meio a alguns objetos pessoais do pai, guardados na loja em um cofre secreto, Marcus encontrou uma carta escrita por seu Odair, com o título “confidencial” e destinada a ele próprio, Marcus.
Suas suspeitas se confirmaram: o pai sabia de tudo. Todos os desfalques e rombos nas contas da empresa, inclusive de sua conta secreta no exterior. No entanto, embora tivesse também a esposa e os outros filhos a quem prestar contas, jamais passara por sua cabeça denunciar, nem mesmo recriminar seu filho. Confiava em que tudo se esclareceria da melhor forma possível um dia e a família poderia comemorar o retorno das coisas aos eixos.


A verdade, porém, é que sem Seu Odair, os negócios vão cada vez pior e todo o patrimônio da família é perdido, devido principalmente à má administração de Marcus Almar. Sua mãe, Dona Marinalva, adoece no pior momento, já que a miséria bate às portas da família. Apenas Marcus teria condições de ajudá-la, mas isto significaria ter que revelar aos irmãos sobre seus bens escondidos e principalmente ter de explicar suas origens. Assim, para Marcus, a melhor solução, apesar de tudo, ainda era a omissão.

Nessa mesma época começaram os sonhos...

Precisamente igual à descrição de seu pai, a imagem de um vasto jardim passou a freqüentar a mente de Marcus em todos os sonhos que tinha.
E exatamente como se sucedeu com o pai, a história se repetiu com o filho. Certo dia, ao abrir a loja e olhar para dentro, em vez dos habituais carros usados, o que ele vê é o jardim de seus sonhos, dividido pelo grande lago de águas esverdeadas. Entretanto, a calmaria peculiar do lago o abandonara, dando lugar a uma torrente de águas revoltosas.
Da mesma forma que Seu Odair, Marcus começou a recuar andando de costas, bastante assustado. Afastava-se lentamente, sempre a fitar o jardim, quando viu surgir a imagem de seu pai, de pé sobre as águas agitadas do lago. O homem tinha uma expressão de preocupação desesperada. Gritou para o filho:
- Filho! O jardim!
Marcus tinha os olhos cheios de lágrimas. Sentia medo, ódio e principalmente vergonha. Respondeu ao pai, aos prantos:
- Não! Você está morto! Morto, ouviu?! Volte para o inferno e não queira me levar para lá também!
- O jardim, filho! O jardim! – continuava seu Odair a gritar desesperadamente.
- Não! – respondia-lhe o filho, continuando a andar de costas, sem se aperceber de que já estava no meio da rua.
O pai abaixou a cabeça e a balançou negativamente, num profundo gesto de lamentação.

O filho então parou, olhou para o lado e viu que a Kombi branca já estava tão próxima que não poderia frear mesmo se quisesse...








IX – PÂNICO NO INFERNO


Foi tudo extremamente rápido.
A coisa asquerosa, repleta de escamas úmidas, caiu sobre ele na cama, fazendo uma pressão tão violenta que quase o esmagou. Imediatamente, um dos tentáculos lhe envolveu a garganta, absolutamente determinado a estrangulá-lo.
Recuperando-se da surpresa e tensão inicial, o garoto agarrou firmemente o corpo pegajoso do monstro, ergueu-o afastando de seu corpo e como se nada pesasse, girou-o velozmente no ar, arremessando-o em seguida violentamente contra a parede.
Logo em sequência, uma mão enorme cheia de garras, com um poderoso murro, irrompeu uma grande cratera no chão. De lá saiu uma criatura de encorpada musculatura e com garras afiadas e reluzentes. Avançou para o garoto e com um novo golpe colossal destruiu completamente a cama, instantes após o jovem ter conseguido escapar com um ágil e habilidoso salto. Com extrema facilidade, o garoto ergueu o pesado armário de seu quarto e jogou-o para cima da criatura. Todavia, com um simples golpe das garras, o monstro partiu o objeto ao meio, escapando ileso.
O garoto partiu destemidamente para o confronto e com sucessivos golpes devastadores nocauteou a criatura.
O próximo inimigo que surgiu foi uma fera. Tinha duas cabeças, uma de tigre e outra de leão e de sua boca brotavam poderosas labaredas. Pego desprevenido, a primeira rajada desorientou o garoto. Isto foi mais do que suficiente para a fera saltar sobre ele, procurando cravar-lhe os dentes na garganta. O garoto a conteve, segurando-lhe pelo pescoço e com o impulso de uma das pernas projetou-a para trás. Então, de seus olhos, o garoto emitiu uma intensa rajada laser que desintegrou completamente a criatura.
Por fim, o garoto foi agarrado por trás por um esqueleto vivo, num abraço mortal. Tentou infrutiferamente se livrar e a cada instante que passava, a pressão beirava cada vez mais o insuportável. Num último e derradeiro esforço, conseguiu abrir os braços, esfacelando a criatura, espalhando seus múltiplos fragmentos ósseos pelo ar.
Com a sensação de dever cumprido, saltou pela janela e cruzou os céus num vôo esplêndido.
Durante o vôo, ouviu o mais aterrador de todos os ruídos...


  
O ruído novamente se repetiu e isso fê-lo forçosamente despertar.

E ele conhecia muito bem aquele ruído. Tornara-se uma constante em suas madrugadas. Eram os gritos do pai ecoando pelos corredores do prédio. Quase todas as noites chegava bêbado em casa, provocando e ameaçando os vizinhos, que nada faziam a respeito, pois tinham muito medo. Talvez não pelo simples fato de ele ser um policial arrogante mesmo quando sóbrio, mas certamente por que, no fundo, todos sabiam que era ele o líder do implacável esquadrão da morte.
Os berros pelos corredores e às portas da casa eram só o começo. O som seguinte era o de peças de louça, móveis e outros objetos da casa sendo destruídos.
Mas era para a própria família que o veterano ébrio guardava seus maiores ímpetos de violência. A esposa era geralmente agredida primeiro, quase sempre por se interpor entre o marido e o único filho do casal. Por diversas vezes precisara ser hospitalizada, tendo inclusive, em certa ocasião, dado entrada na UTI com hematomas por todo o corpo. Há muito desistira de procurar por justificativas; seu único intuito era o de tentar ao menos amenizar, à custa do próprio flagelo, o sofrimento do filho.

Como sempre, após os gritos da mãe e os sons de socos e pontapés, o homem chegara ao quarto do garoto. Mais uma vez a mulher tentou arrastá-lo para fora, puxando-o pelo braço, mas recebeu um violentíssimo soco na face, caindo em seguida. O homem se voltou ainda para ela, chutando-lhe fortemente as costelas. Ela gemeu e ficou jogada no chão, incapaz de se levantar.
O garoto tentou passar pelo pai, na intenção de ampará-la, mas também recebeu um fortíssimo tapa no rosto, fazendo-o bater a testa na quina da cama.

- Vocês dois são a família mais ingrata e arrogante que um homem pode ter – falou o homem, com voz de bêbado.
Por isso, uma bela surra diária é o mínimo que merecem para entrarem nos eixos.
Começou a avançar para o garoto, enquanto desafivelava com dificuldade o cinturão.
A mãe, tentando inutilmente se erguer implorava ao marido:
- Não, Jorge! Por favor, pare!
- Você cale a boca, que será a próxima.

O garoto permanecia de costas para o pai, ajoelhado e recostado na cama. Tinha um enorme hematoma na testa e um corte profundo na língua. O sangue transbordava-lhe na boca e escorria abundantemente pelo queixo.
Tudo estava claro: mais uma vez a cena se repetiria. Seriam minutos intermináveis de tortura física e humilhações, que mais pareceriam horas. Cicatrizes fechadas e nem tão fechadas tornariam a desabrochar por todo seu corpo, dando boas vindas às novas que certamente surgiriam. Depois seria a vez da mãe e ele teria que ouvir tudo, absolutamente impotente.
Talvez por isso ele sonhasse, mas de que lhe valia ser onipotente em sonhos se sua vida real era tão miserável?

A não ser que...



O pai lançou a mão no ar para aplicar a primeira cintada. O garoto, então, agarrou-o pelo pulso e arremessou-o como um projétil através da janela.
Após alguns instantes de silêncio meditativo da parte de ambos, a mãe conseguiu se levantar e caminhou até o filho, envolvendo-o num terno abraço.
- O papai escorregou e se machucou, mas a mamãe está aqui e nunca mais vai deixar que alguém machuque você, certo?
- Certo – ele assentiu...


  
X- DIA DE CÃO

Sou despertado por uma estranha, mas boa sensação; como se acariciassem delicadamente a minha testa. Demoro ainda alguns segundos para abrir os olhos e quando o faço, o que me invade é um espasmo indescritível de dor.
Reconheço imediatamente o meu dedicado enfermeiro: é Scooby, o sarnento vira-lata que perambula moribundo pela vizinhança. Por várias vezes já fora quase morto em surras intensas, por ser considerado o ‘terror dos sacos de lixo’ residenciais em todo o bairro, sendo sempre salvo por algum morador antigo e moribundo como ele, que se compadecia e intercedia, interrompendo a brutal execução.
Suas carícias, na verdade, são frenéticas lambidas na minha testa que parece sangrar o suficiente para oferecer a ele um delicioso motivo para continuar me lambendo.
Vou afastar o petulante com um safanão e tenho outra surpresa nada agradável: o máximo que consigo emitir é um ruído débil, como o de um último suspiro agonizante. Isto foi suficiente para que o animal recuasse receoso, afinal, seu lombo já estava calejado o bastante para saber que se aquele “bicho-homem” levantasse enfurecido iria precisar estar a uma boa e segura distância para evitar maiores danos a sua magra e quebradiça carcaça.
Recuou mais alguns passos, esperando esboços de movimentos, que o fariam sair prontamente correndo em direção à porta da rua e só parar quando se enfiasse no porão do grande depósito abandonado que, nos dias de chuva, costumava usar como casinha, mas os instantes passaram, suas previsões não se concretizaram e a voz da fome em sua barriga voltou a ecoar em sua cabeça como badaladas de um grande sino, dizendo que se ele não voltasse para aquele grande maná com formato de ‘bicho-gente’ e continuasse a satisfazê-la, ela passaria o resto da semana lhe causando espasmos tão fortes que pareceriam descargas de 200 volts. Apesar de sua inteligência de vira-lata faminto não ser muito boa com números, isso deveras lhe pareceu inconveniente e, devagar, pé ante pé, ele foi se chegando até retornar ao seu posto e recomeçar tranquilamente a desfrutar de meu sangue em sua dieta.
Bem, abandonando os pensamentos metaforicamente traduzidos do animal e retornando a minha aflitiva situação, o que fica claro é que: 1°) estou desprovido de todos os meus movimentos voluntários, (provavelmente algum fio soltou-se em meu cérebro, deixando-me mais rígido do que picolé no inverno antártico); 2º) exceto pelo meu fiel enfermeiro canibal, estou completamente sozinho; e 3º) apesar do rico valor calórico e nutritivo do sangue humano, é muito provável que o apetite do cachorro logo reclame por algo mais consistente, (um nariz, ou uma orelha, por exemplo).

Aos poucos, vou me lembrando de como tudo começou...

  





Estou no depósito que fica nos fundos da loja de móveis onde trabalho. E era onde eu estava, um pouco depois de ter aberto a loja às 8 horas da manhã como faço todos os dias, (bem, colocar aqui entre oito e cinco e oito e vinte seria muito mais honesto da minha parte e já que esta pode ser uma das últimas ações da minha vida, é melhor não desapontar mais ainda quem estiver me julgando). Estou aqui procurando um maldito espanador de pó que esqueci em algum lugar no dia anterior. Lá estava ele, esbelto e faceiro, com seu corpinho magro e seus largos quadris, como a Olívia Palito dentro de uma grande saia rodada. Estava sobre uma pilha de escrivaninhas de aço empoeiradas e sob uma mesa tombada de cabeça para baixo, pequena, mas feita da mais pura madeira maciça. Alguém, (que obviamente não fui eu), na pressa de fechar a loja ao fim do expediente a colocou ali, sem nem mesmo se preocupar com o desnível que “Olívia” ocasionava com sua cabeça e seu tronco sufocados sob a mesa e apenas a saia para fora, provavelmente expondo suas calcinhas.
Mesmo sem o mesmo interesse que Popeye teria em espiar aquelas calcinhas, subi na maior banqueta da loja e agarrei-a pela barra da saia, puxando bem devagar, tentando não arrastar junto seu chapéu de quatro gordos pés apontados para cima. A altura dificultava bastante o trabalho e, para encurtar a história, a banqueta tombou, fomos todos ao chão e a mesa fez uma excursão da cabeça de “Olívia” para a minha. Houve um estrondo; tudo ficou vermelho, depois negro e provavelmente eu apaguei, pois, daquele momento minha consciência pula imediatamente para este, com Scooby sentado ao meu lado, de garfo e faca nas mãos, como uma nuvem de gaivotas sobrevoando um barco pesqueiro.
Viro delicadamente os olhos, por causa das ondas de dor que me inundam e vejo a mesa a poucos metros de mim, inteira obviamente, (muito mais do que a minha cabeça), e o espanador um pouco adiante. Isto significa que infelizmente não estou vivenciando algum pesadelo, pois pesadelos não costumam guardar tantos detalhes.
Olhando diretamente para cima, desviando um pouco da cara magrela e do focinho gelado do Scooby, percebo que a situação poderia ter sido bem pior. Uma das escrivaninhas, (a que está no topo da pilha e sobre a qual tive a infeliz idéia de esquecer o espanador), foi deslocada, provavelmente quando tombei esbarrando nas de baixo que a sustentavam. Num giro de quase 180 graus, metade dela perdeu o apoio do tampo da debaixo e flutua pendendo perigosamente na direção da minha cabeça e do meu amigo “cão-de-drácula”. Aparentemente por hora ela não deve cair, mas eu não esqueceria nem mesmo o espanador em cima dela nestas circunstâncias se soubesse que minha cabeça iria estar aqui embaixo. Afinal, se os oito quilos da mesinha de pés gordos me reduziram ao estado de tira-gosto de cachorro, é fácil imaginar o que me faria os quase 90 quilos de puro aço da escrivaninha: patê de miolos moídos e carne magra de cachorro.
Meus agradáveis pensamentos são bruscamente interrompidos por algo que se transforma numa revigorante chama de esperança: uma voz humana. Parece longínqua, mas é uma voz humana, sem dúvida. Uma voz de mulher. Claro! As portas da loja estão abertas desde as oito... (‘tá bom, ‘tá bom, oito e quinze, mas esta não é uma boa hora para me dar sermão sobre a pontualidade britânica). Hoje sou eu o encarregado da limpeza, o que quer dizer que Eurico, o outro funcionário, só vai chegar por volta das treze horas, que é quando começa realmente o movimento de carga e descarga de mercadorias. Portanto, a loja está vazia e assim como eu estou “dando meu próprio sangue” para bem atender nosso primeiro cliente, outros com aparências melhores podem chegar a qualquer momento.

A voz de mulher retorna, agora mais nítida. Familiar. Bate no balcão e chama por alguém que possa atendê-la. Chama por Seu Pedro, o proprietário da loja. “Ele está de férias, não sabia, senhora?” Reconheço enfim a voz. Pertence a Dona Valéria, uma das mais antigas clientes da loja. Seu Pedro sempre diz que ela foi sua primeira cliente. Assim que ele levantou as portas, no dia da inauguração, ela entrou. E ela concorda, cheia de orgulho e carinho por essa longa amizade. Embora pareça ter muito dinheiro, é uma pessoa simpática e gentil. Sempre nos tratou, (patrão e funcionários), de forma bem educada, ao contrário de alguns clientes que entram na loja com o nariz tão empinado que chega a balançar os lustres. É também uma das nossas melhores pagadoras. Jamais atrasou alguma prestação, coisa quase tão comum no comércio quanto os famosos cheques “borrachudos”. Mas sua principal característica é a de gostar de papear e repetir muitas vezes os acontecimentos de sua vida.
Mais uma vez meus pensamentos são atropelados por uma manada galopante de dor. Só que desta vez, a dor não é interna. Abro os olhos devagar e percebo que o vira-lata desgraçado acaba de aplicar uma caprichada dentada no lado esquerdo de minha face, próximo ao queixo. Obviamente ele também ouviu a voz e quer encher a pança o máximo possível, antes que chamem o sádico e exibicionista homem da carrocinha para tentar laçá-lo e erguê-lo pela pata traseira ou pelo rabo, como já fizera algumas vezes. E desta vez, tinha um palpite de que ninguém iria intervir.
Tento desesperadamente gritar, mas não consigo. Scooby me olha como se lamentasse profundamente a situação, mas na atual circunstância, fosse para ela a voz da culpa um pio e a voz da fome, um trovão. Continua, portanto a mastigar o seu novo ‘Buballoo sabor bochecha.

Dona Valéria continua a chamar insistentemente na recepção. Se eu estivesse me escondendo já teria me aborrecido e gritado: “não tem ninguém!” Mas, é infelizmente o oposto o que preciso fazer. Minha maior preocupação é que, apesar de seus quase setenta anos e da paciência ser uma virtude inevitável dos idosos, ela acabe desistindo. Será tão difícil imaginar que há alguém aqui nos fundos da loja, servindo de “self-service”?
O já bastante desinibido Scooby monta em cima de mim, farejando cada centímetro de pele descoberta, procurando uma parte bem mais macia de se abocanhar. Sua respiração é quente e seu hálito tem um cheiro horrível, como o de alguém que bebeu todo o conteúdo de uma fossa, teve uma disenteria e depois bebeu tudo de novo, para não perder as calorias. Sinto um calafrio enorme quando sua língua gelada lambe rapidamente os meus lábios. Parece que ele encontrou o que queria.
Inspiro profundamente, fecho os olhos e faço uma última e desesperada tentativa; num esforço descomunal grito, abro ao máximo o meu maxilar e cravo os dentes sobre a língua saliente do bicho. O animal urra de dor e pânico e põe-se a correr em disparada em direção à saída. Cuspo o grotesco pedaço de carne amputada que me ficou na boca e tento mexer o meu corpo lentamente. Apenas a cabeça responde, embora lateje como se equilibrasse toneladas de concreto. Mas houve o grito. Certamente D. Valéria deve ter escutado...
Mal concluo esse pensamento e ela entra correndo e com uma expressão de medo e preocupação no rosto. Leva um susto maior ao me ver esparramado pelo chão, a testa bem inchada e um baita buraco do lado esquerdo da cara. Ela grita espantada, (um grito grave, de velha, que só seria ouvido por alguém que não estivesse a mais de cinco metros de distância e isso, tendo um atestado recém adquirido de ótima audição).
Ela corre para mim e entra em prantos. Agacha-se ao meu lado e sorri ao perceber sinais de vida em meus olhos abertos. Faço um grande esforço para retribuir o sorriso. Mais difícil ainda é desfazê-lo. Ela começa a alisar minha testa e a tagarelar simultaneamente, o que não me parece ser uma atitude sensata em tal situação. Tento transformar meu sorriso em carranca para demonstrar meu descontentamento, mas o meu maxilar insiste em manter aprisionado um petrificado sorriso débil, como o de quem, em um chá beneficente, sorri apenas para disfarçar o intuito de tornar a atacar em um intervalo exageradamente curto o prato dos biscoitinhos.
Diante do meu forçado interesse, ela continua a falar sobre como já havia alertado o proprietário sobre o perigo de abrir a loja tão cedo por causa dos assaltos, da necessidade de se contratar mais funcionários; de como os tempos mudaram desde a época da inauguração e dezenas de outros assuntos que quase me fazem sentir saudades dos beijos molhados bom e velho Scooby.
Diante disso, o falatório enfadonho, meu estado deplorável, o cansaço inevitavelmente vai me abatendo e aos poucos, a voz da mulher vai sumindo...


●●●

Abro os olhos. Dona Valéria continua aqui. E pior; continua falando ao léu. Tem uma expressão triste.
Minha cabeça está sobre seu colo. Louca! Não sabe que pode ter causado danos irreversíveis aos ossos esmigalhados de minha coluna?! Obviamente não adianta procurar pelos bombeiros ou a polícia. A velha esclerosada não chamou ninguém. Passou não sei quanto tempo, (talvez horas), conversando com um moribundo em seu colo, como se suas palavras fossem algum ritual de exorcismo. Ela continua a acariciar a minha testa, mas agora ela está usando luvas. Talvez já estivesse antes, mas meus sentidos estavam entorpecidos demais para perceber. Isso não importa, afinal, no chão deste como no de qualquer outro maldito galpão faz um tremendo frio.
Ela percebe que eu acordei, sorri e volta a falar diretamente para mim. Seus olhos estão bem vermelhos. Deve ter chorado bastante.
Ela me diz que tem se sentido muito solitária desde que seu único filho morreu num acidente de carro, há três meses. Há menos de dois anos já havia perdido o marido e esse segundo golpe foi mortal para sua alegria de viver.
Lembro-me bem do filho dela. Já a acompanhara à loja algumas vezes, sempre com ternos elegantes e um ar extremamente esnobe. Herdou do pai uma micro-empresa com dez anos de tradição, que possuía até uma boa credibilidade e em pouco mais de um ano a frente dos negócios, afundou-a em dívidas e desfalques que o levaram a ser processado várias vezes, até que, com a firma já falida, vários processos por emissão de notas frias, cheques sem fundo e diversas outras formas de estelionato, foi condenado a 8 anos de reclusão. Apelou e conseguiu aguardar um novo julgamento em liberdade. Tentou fugir do país e próximo à fronteira com a Bolívia, foi perseguido por policiais e despencou com o carro de um barranco de 20 metros.
Além da perda do filho, Dona Valéria teve que arcar com as várias dívidas deixadas pelo pilantra. Quase todos os seus bens e propriedades foram a leilão e pouquíssima coisa lhe restou da herança do marido. Com este pouco que sobrou começou a reconstruir sua vida. Mudou-se para uma casa mais modesta e cortou a maioria das regalias que possuía, embora sempre conservasse a aparência de uma senhora de fino trato, andando sempre bem vestida e dispondo de uma elegância que poderia levá-la a ser convidada para qualquer evento da 1ª classe.
Cultivava também uma paixão forte pela arte.
Do patrimônio da família conseguira salvar poucas coisas, mas após saldar como pudera as dívidas deixadas pelo filho e desde que se viu sozinha no mundo, seu grande passatempo, (pra não dizer fixação), era passear por galerias, brechós e lojas de antiguidades da cidade e da periferia à procura de algum quadro ou objeto de expressivo valor artístico, mas, claro, que estivesse dentro de seu limitado poder aquisitivo. Sinceramente, não teria problema algum em sacrificar-se, passar meses financeiramente apertados para comprar um determinado objeto que lhe agradasse muito, afinal, fora o único prazer que lhe restara. Era o que ela chamava de amora à primeira vista. E é justamente de uma dessas peças que ela está falando agora. A que mais faz seus olhos brilharem, apenas por se lembrar dela, como ela mesma diz. Está chorando de novo. Tem os olhos vidrados.
No momento, a peça é o que ela mais deseja, pois é exatamente igual ao presente que ganhara do marido, no início do noivado, há mais de cinqüenta anos e que fora roubada junto com jóias de menor valor, coincidentemente num período em que, tendo ela e o marido partido numa viajem, a casa ficou sob os cuidados do filho do casal.
Então, anos após a morte do marido, essa nova peça, idêntica a outra, aparecera trazendo de volta maravilhosas recordações. Não se importaria, de forma alguma, em passar meses a fio economizando, comendo pão e água, se preciso, só para adquirir a tal peça. Talvez o valor dela nem seja tão alto. Ela diz que não é esse o problema. Infelizmente para ela, o objeto não está à venda; pertence a um grande amigo que cativa pela peça um apreço tão grande quanto o dela, pois pertencera a sua esposa também já falecida.
Os olhos de Dona Valéria vagueiam delirantemente pelo ambiente e se fixam na escrivaninha pendente sobre nós. Ela parece não se incomodar com o risco iminente e continua a falar sobre seu apreço pela misteriosa peça.
Fecho os olhos e já iria me aprontar para apagar de novo quando a ouço revelar finalmente qual o objeto que ela tanto deseja. Uma boneca de porcelana, com um longo vestido rodado; as bordas majestosamente cobertas com filetes de ouro e decorada com diversos pequenos detalhes de ouro e pedras preciosas. Pertenceu à esposa de um senhor viúvo, que nunca teve filhos e, por isso, agora guarda o artefato como uma das últimas lembranças de seu grande amor.
Torna-se muito fácil, então, a visualização da tal peça em minha mente. Ela está muito mais próxima do que eu poderia ter imaginado. Para falar a verdade, a menos de 30 metros daqui. E seu legítimo dono também é um velho conhecido meu; chama-se Pedro e é meu patrão. A boneca fica guardada dentro da cristaleira ao lado da mesa dele e já está ali desde que sua esposa faleceu, há quase vinte anos.

Percebo a intenção de Dona Valéria pouco antes de ela dizê-la.

- Que pena que vocês jovens sejam tão imprudentes. Não devia ter jogado todo seu peso nas escrivaninhas quando caiu, pois assim é inevitável que uma delas despenque sobre você.

Ela cuidadosamente deposita minha cabeça novamente sobre o chão e se levanta, sacudindo as mãos e o vestido, como se quisesse se livrar de qualquer vestígio de mim. Dá a volta por trás da pilha de escrivaninhas, usa a de baixo como apoio para poder subir, alcançar a de cima e dar-lhe um empurrão brusco que a faz despencar na minha direção.
Sem realmente saber como, apanho a mesa de centro, que felizmente está ao alcance do meu braço e ergo-a a frente do meu rosto, como um escudo. Há um estrondo horrível e a mesa se parte com o impacto do choque. Ainda consigo ouvir os passos de Dona Valéria fugin...






            Abro os olhos e quase de imediato percebo que não morri. Estou num hospital. Meu chefe e o outro funcionário que trabalha comigo estão sentados ao lado da minha cama. Tento movimentar meus membros e suspiro aliviado quando todos os meus dedos respondem, embora alguns estejam tão doloridos que se emancipariam do resto do corpo caso eu os tentasse mexer de novo.
            Eles me contam que fui encontrado pelo carteiro que entrou na loja vazia e ouviu gemidos. Tive o nariz e alguns ossos da face, próximo aos olhos, quebrados pelo impacto. Se a quina da escrivaninha me tivesse atingido um dos olhos, muito provavelmente essa vista essa vista estaria perdida e eu estaria procurando ver o lado bom de tudo com uma perspectiva a menos. Pra falar a verdade, além de uma bruta sorte, o que eu tive mesmo foi a ajuda de alguma mão divina que estendeu meu braço e me fez apanhar aquela bendita mesinha e me livrar de um, (possivelmente irrecuperável), traumatismo craniano.
            Até agora, ninguém me perguntou o que aconteceu. Isso porque eles já têm uma concepção de tudo, que parece estar até bem mais definida do que a minha. Ambos estão aliviados por eu estar vivo e nisso eles são muito sinceros, mas Seu Pedro parece estar muito abatido. A princípio imagino que seja por causa de sua porcelana de estimação que fora roubada, mas acabo descobrindo que o descuidado ladrão, (ladra, eles não sabem), que entrou na loja e me atacou, provavelmente na pressa de ir embora, pegou a peça desajeitadamente e a espatifou no chão. Então, deve ter se assustado com algum barulho e fugiu sem levar mais nada, (era a única peça que ela queria, eles não sabem). Lamentei, pois sabia da profunda estima que Seu Pedro tinha pela peça, mas ele me surpreendeu e me encheu mais ainda de admiração quando disse que ao chegar à loja, depois de ter sido avisado pela polícia, sua única preocupação fora com a minha saúde. Qualquer outra coisa não tinha importância. Agradeci comovido e ia-lhes contar quem era o tal ladrão, quando, após uma pausa breve, mas carregada de tristeza, Seu Pedro me contou por que, apesar de estar feliz pela minha recuperação, está também muito abalado e triste com uma notícia que recebeu pouco antes de sair de casa para vir ao hospital me visitar. Ele me pergunta se me lembro de Dona Valéria, cliente muito antiga e prezada de nossa loja. A indagação me espanta. A princípio acredito que ele já está a par de tudo. Confirmo, fazendo sinal com a cabeça. Antes de contar o que houve, Seu Pedro se derrete em elogios à bondosa senhora. Até mesmo uma lágrima ele derrama enquanto fala dela e de sua inacreditável amizade e dedicação. Um sorriso irônico tenta me escapar dos lábios, mas me esforço para conseguir retê-lo e eles não percebem. Antes mesmo de Seu Pedro concluir seu discurso de exaltações às prendas infinitas de sua melhor freguesa e amiga, é fácil prever o que ele realmente tinha a dizer: Dona Valéria suicidou-se. Provavelmente sucumbiu à solidão, (ou ao remorso, eles não sabem), e tomou 5 caixas de veneno para ratos. Ainda agonizava quando a encontraram em seu quarto, mas seu organismo fraco e debilitado não resistiu à alta dose de intoxicação. Uma nova lágrima desce com vontade pelo rosto de Seu Pedro. Ela lhe era uma amiga realmente muito querida. Teria lhe dado, sem dúvida, (e de bom grado), a maldita boneca se soubesse que ela tanto a desejava. Mas ela teve medo de sequer lhe perguntar. Preferiu guardar para si aquela fascinação que se transformou em cobiça e acabou por consumi-la por inteiro. Tornou-se no fim, uma psicótica assassina.
            Claro que não vou contar a ele. Ninguém ganharia nada com isso. Por que tirar dele o que uma amizade pode deixar de mais precioso que é a confiança? As boas lembranças que temos das coisas importantes que perdemos é uma prova da sabedoria da Mãe Natureza.


»»»»»»»»»»»»


            Estou aproveitando muito bem as minhas férias.
            Seu Pedro as antecipou em alguns meses, assim que deixei o hospital. Brincou que não quer nenhum funcionário seu estressado, cansado e fraco na hora de enfrentar ladrões. Eurico deu pulos de alegria ao saber que será o próximo a ter férias antecipadas.
            As feridas em meu rosto estão quase cicatrizadas.
            A propósito, a polícia atribuiu a marca da dentada em meu rosto a um suposto cachorro que o bandido teria trazido consigo, para intimidar quem estivesse na loja. O próprio cão teria me derrubado e no tombo tudo teria despencado por cima de mim.
            Foi ótimo não precisar ficar inventando desculpas já que a polícia bem o fazia por mim. Eu ia apenas confirmando tudo com certa indiferença, querendo deixar logo todo esse assunto para trás. Só para ter algo divertido para lembrar futuramente, disse-lhes que o cão que o bandido trouxera fora um grande e feroz pitbull. Os peritos acharam pouco provável que o ferimento modesto em meu rosto fosse  proveniente da poderosa mandíbula de um pitbull, mas ninguém tinha motivos para duvidar da minha credibilidade, principalmente porque eu estava apenas dando o meu aval para que eles criassem sua própria história; seria o início de uma nova onda de assaltos, onde a máquina mecânica de matar era substituída pela máquina biológica?


            Aluguei uma casa de campo para curtir meu breve período de férias. Como Seu Pedro dissera, fugir do estresse e da violência urbana fez muito bem a mim e também ao Scooby. Ah, esqueci de dizer: Scooby agora mora comigo. Depois que deixei o hospital, percebi que ele havia sumido da vizinhança. Dei um pulo até o canil da cidade e lá estava o sacaninha a poucos dias da sua execução. Arquei com alguns custos, que incluíram um belo banho com sabonetes, xampus e medicamentos contra pulgas, carrapatos e todas as hordas de parasitas, além das vacinas necessárias e tratamento contra vermes. Atualmente a aparência dele está muito melhor; não parece mais um zumbi putrefato de cachorro. Confesso, sem falsos pudores, que algumas vezes, principalmente no início, tive vontade de servir-lhe um belo prato de bistecas envenenadas e depois sentar na minha poltrona preferida para vê-lo agonizar, mas nunca tive realmente determinação suficiente para fazer isso. Além do mais, ele revelou-se um ótimo companheiro quando a voz da fome não lhe está sussurrando que humanos paralisados são ótimos quitutes.

            A última surpresa ficou por conta de Dona Valéria. Foi encontrada uma “carta-testamento” em sua casa, escrita por ela própria pouco antes de se suicidar. Nela, especificava que os poucos bens que ainda lhe restavam deveriam ficar com o único amigo que ela tivera realmente na vida, depois que seu marido partira: Seu Pedro, é claro. E numa nota de rodapé, deixou também uma vultosa quantia para ser repartida entre mim e Eurico, que sempre havíamos sido dedicados e cuidadosos e atenciosos para com todos os clientes da loja, segundo ela. Isso aumentou a admiração de Seu Pedro pela mulher, não pelo dinheiro, mas pela sincera demonstração de amizade. Também me fez sentir-me bem por não ter dito a verdade sobre a história do assalto. O fato de Scooby estar agora comigo, ao meu lado, é a maior prova de que a grande lição disso tudo é a de que por mais terrível que seja uma situação, pior ainda é se dela ficamos com a raiva e os sentimentos negativos que nos mantêm perpetuamente ainda presos nas mesmas dificuldades. O melhor de tudo é perdoar e esquecer, mesmo que esquecer signifique apenas seguir em frente.


  
XI – ELOS FLEXÍVEIS

            Lídia se matou exatamente às onze e quinze.
            Luciana e Débora se certificaram conferindo os batimentos cardíacos e a respiração. Logo em seguida, as onze e vinte e três, foi a vez de Luciana. Esta, a princípio não morrera. Tudo bem; um mero acidente de percurso. Apesar dos olhos de Luciana ainda brilharem quando Débora despejou entre eles o terceiro tiro da arma de seis balas, aquilo foi apenas para apressar as coisas. As portas da morte já estavam escancaradas e seria virtualmente impossível que ela não as cruzasse.
            Débora se viu só, então. Ela era a última e era a sua vez. Embora já tivesse repassado aquela cena em sua mente por dezenas de vezes, preparando-se a cada uma delas para se sentir absolutamente dona da situação, todos os seus esforços pareciam estar indo, numa velocidade assustadora, por água abaixo. O grande medo, que afligira as três a princípio, mas que a certo ponto pareceu-lhes plenamente superado, voltou, mais sólido do que nunca. Milhares de pensamentos pareciam invadir seu cérebro, como o avanço impetuoso de uma manada enfurecida. Se errasse o tiro, ou não fosse ele suficiente, ninguém mais haveria para aplicar-lhe o golpe de misericórdia, como acabara de fazer com Luciana. Poderia morrer lenta e dolorosamente. Era um pensamento atrevido e teimoso, pois bem sabia ela que era remotíssima a possibilidade de erros. As três haviam estudado durante muito tempo a anatomia e descobriram os exatos pontos no tórax, na face e na cabeça que são a perfeição para qualquer executor profissional.
            Olhou para o relógio na estante: eram onze e meia. Haviam combinado a data da funesta cerimônia seis meses antes. Eram amigas de faculdade e se conheceram no 1º ano, mas só a partir do segundo estreitaram bastante as suas relações. Lídia tinha 24 anos, Luciana 26 e Débora era a mais velha, com 28. Pertenciam todas à classe média e viviam razoavelmente bem. Luciana e Lídia eram filhas de empresários e o pai de Débora era médico. As três, todavia, optaram pelo curso de Direito e nele se conheceram e se tornaram amigas. Cada uma, na época, namorava sem maiores pretensões um garoto da mesma classe, o que facilitava e muito quando queriam sair juntos. Com o tempo, porém, a relação entre as três amigas estreitou-se de tal forma que assustou os rapazes, (possessivos, como a maioria o é), incapazes de admitir ter de dividirem as atenções com aquela amizade inquebrantável. Sentenciosamente os namoros terminaram sem que isso abalasse, de nenhuma forma, o elo que as unia.
            Outro fato que fortaleceu ainda mais a relação entre elas foi a religiosidade. Quando se conheceram, apenas Lídia era uma espiritualista convicta, embora pouco se apegasse a qualquer religião. Acreditava em Deus como o sentido e a solução para tudo, mas achava que nenhuma das religiões existentes apontava a estrada absolutamente certa para chegar até Ele.
            Luciana era, por sua vez, a católica típica, que quase nunca vai as missas, uma vez feita a primeira comunhão, salvo em dias santos e ocasiões especiais. Todavia, sempre que questionada, sabia defender com extremo afinco sua religião.
            Débora também era um caso a parte: era espírita. Principalmente porque seus pais eram espíritas, assim como os seus avôs e a maioria de seus tios. Seu avô e sua mãe eram médiuns extremamente sensitivos e conversavam com espíritos o tempo todo. E ela acreditava piamente em sua mãe e em seu avô, acreditando também assim na presença constante e maciça daqueles espíritos. Mas, morria de medo deles e isso ninguém sabia. Ocultara por toda a sua vida aquele pavor brutal que sentia para não desapontar os pais e a família. Por muito tempo, todos chegaram até a acreditar que ela possuía um grande potencial para se tornar uma ótima médium. Mal sabiam que se algum dia, algum espírito lhe falasse, ou pior, lhe aparecesse, sairia imediatamente correndo e se enfiaria sob a saia do primeiro padre que encontrasse.
            E fora justamente esse medo a gênese da louca idéia de suicídio coletivo que culminaria por deixá-la na atual situação.
            Assim que se confessou às amigas sobre o medo que desde a mais tenra infância a corroia, elas prontamente se dispuseram a livrá-la daquele trauma, mostrando-se irredutíveis apesar da relutância inicial de Débora.
            Começaram as três, assim, a estudar minuciosamente diversas religiões, seitas e misticismos antigos e contemporâneos, atrás de respostas jamais encontradas satisfatoriamente pela humanidade. Por que temer a morte e conseqüentemente os mortos?O que ela representa, na verdade? Um fim? Uma passagem? Será humanamente possível algum dia deveras a decifrar?
            O que poderia parecer utópico e enfadonho para muitos, tornou-se para elas uma motivada obsessão. Adquiriram pilhas de livros religiosos, filosóficos e esotéricos e em pouco tempo já haviam construído uma respeitabilíssima biblioteca sobre o assunto. Somando-se isso às minuciosas pesquisas nas bibliotecas públicas e na internet, logo se tornaram profundas conhecedoras desde as principais até as mais diversas concepções sobre a possibilidade de vida após a morte já formuladas desde o surgimento do homem na Terra. Claro que, daí até aceitar um desses conceitos como definitivo havia uma enorme distância. Todos pareciam falhar em algum ponto. Mas, todos tinham também um importante ponto em comum.
            O grande pilar que sustentava a veracidade de cada um deles era invariavelmente a fé que lhes era atribuída pelos que neles acreditavam. Assim, a ressurreição era verdadeira porque os cristãos a tornavam verdade, a reencarnação existia porque os espíritas, hindus e vários outros grupos fundamentavam sua existência; podia-se até, segundo alguns, viver eternamente, manipulando forças desconhecidas pela maioria da humanidade. De fato, assim era com islâmicos, judeus, confucionistas, nativos indígenas e qualquer outro segmento onde a humanidade procurasse justificar a idéia do fim da vida. Todas as doutrinas eram pertinazes e respeitáveis enquanto grupos se predispusessem a acreditar nelas. Aos inadaptados, por que então não desenvolver sua própria doutrina?

            Foi o que as três jovens fizeram...


            Fundamentada plausivelmente ou não, a idéia era simples.
            Obviamente pareceria excêntrica e pedante para a maioria dos analistas de plantão, mas que fossem todos eles à merda. Qual já voltara do reino dos mortos com um dossiê completo de suas impressões de lá? Nada era a absoluta expressão da verdade sobre o assunto, mas todas as doutrinas pareciam ser parte de um grande quebra-cabeças chamado ‘pós-vida’.
            Havia a vida, obviamente; em conseqüência havia a morte. E havia um espaço entre ambas que elas chamaram de limbo. Instantes após a morte definitiva, o espírito se transpunha do corpo físico, para acolher o seu destino. Esta permanência do espírito à deriva pode ser claramente sentida pelos que estão no mesmo ambiente em que se constatou o óbito, pois este mesmo ambiente sofre alterações sutis causadas pela presença do espírito desencarnado. O ar parece se tornar mais frio e mais denso, podendo até chegar a dificultar nossos movimentos. Além disso, a presença do espírito parece desestabilizar completamente a aura humana, provocando-nos sensações bastante variáveis para cada indivíduo, mas que geralmente nos transmitem impressão de fragilidade. Esse espaço de tempo, ou “limbo”, também variava muito, mas nunca ultrapassava o período de uma hora, após a desconexão entre corpo e espírito.
            Conseguindo-se, então, segundo as três pesquisadoras, pela rígida meditação, um intenso controle da própria vontade, pessoas que desencarnassem dentro da mesma hora e do mesmo espaço poderiam encontrar-se e partilhar exatamente do mesmo destino. Estava assim destituído o conceito de “até que a morte os separe”.

            “Se abdicarmos de nossas vidas dentro da mesma hora e tivermos força suficiente para manter uma intensa concentração quando desencarnarmos poderemos seguir juntas para o mesmo destino no ‘pós-vida’” – (havia dito uma delas).

            “...e se este destino for, digamos, não muito agradável?” – (retrucara outra).

            “...enfrentaremos juntas, ou a ele também juntas nos oporemos. Ou passa pela sua cabeça que alguma de nós conseguira viver em paz no paraíso, enquanto outra sofre perpetuamente no inferno?”.

            “...não, é claro que não!” (era difícil recordar agora de quem foram as falas, mas certamente fora dela esta última).

            Daí para frente os estudos continuaram, mas não houve mais questionamentos. A cada uma importante tornou-se apenas o sentimento que nutriam entre si. Muito mais do que uma amizade; um vínculo, uma atração irresistível.

            Débora voltou a olhar para o relógio. Faltavam dez minutos para o meio-dia. Ficou alarmada. A cada minuto que se passava distanciava-se mais da possibilidade de reencontrar as amigas. Não podia conceber, no entanto, que pudesse fraquejar. Acreditava que o seu medo era passageiro e em questão de segundos se dissiparia. Mas, longos minutos se passavam e em seu coração continuava a reinar um desejo louco de sobreviver, de deixar aquilo tudo para trás, embora para isso tivesse de esquecer completamente de sua consciência, o que era tão ilógico quanto querer, da noite para o dia, trocar de personalidade.

            Mas o que poderia ser mais ilógico do que disparar aquele gatilho? Naquele momento, talvez apenas o não o fazer...
            Tentou lembrar-se de seus pais e de seus amigos que permaneciam vivos, mas não foi possível. As únicas pessoas que povoavam a sua mente eram Lídia e Luciana, cujos corpos jaziam esparramados em meio a uma grande poça de sangue no tapete do chão da sala. Na noite anterior, estavam todas excitadas, escolhendo a arma que seria instrumento de seu mais obsessivo desejo de libertação. Compraram-na no “câmbio-negro” da faculdade, sem maiores problemas, nem qualquer necessidade de explicações. Mesmo por que, desde que pagassem, obteriam a arma da mesma forma, ainda que confessassem seus reais propósitos.
            Assim, com a arma em mãos, partiram para sua última noite neste plano. Naquele momento, sobre suas decisões pareciam não pairar nenhuma dúvida... ...mas pairavam. É claro que milhares de dúvidas pairavam na mente de pelo menos uma delas, (talvez até na das três, mas não mais havia como ter certeza quanto a isso), e por agora ser ela a única a permanecer viva, essa insegurança se multiplicara por mil.
            Mas por que não deixara que as tantas dúvidas que tinha transparecessem na noite anterior?
            Pior do quer isso: agira de forma absolutamente contrária, com palavras de encorajamento cheias de certeza que induziam as amigas a se fortalecerem nas convicções de que o que faziam estava realmente correto. Com a eloqüência de um sadismo inexplicável, mas que se revelava inerente a sua alma, ela conduzia as amigas rumo à morte, como uma criança diabólica conduz outras crianças vendadas rumo ao precipício numa mortal brincadeira de “cobra-cega”.

            “Sim, amigas. Nossa amizade poderá ir além de qualquer coisa, mesmo dos limites da morte.”
            E fitara com extrema serenidade os olhos de Lídia e Luciana enquanto confessava suas palavras. Por dentro estava cheia de medo, mas não queria, (não podia), de forma alguma deixar transparecer; tinha que se mostrar forte para elas como tivera que se mostrar forte a seus pais para não os desapontar. Bastava a ela, (e apenas a ela), saber que era uma fraca e sempre seria uma fraca por toda sua miserável vida.
            Já não fazia diferença, mas até podia estar sendo muito dura consigo mesma. Amava as amigas. De forma alguma premeditara um desfecho diferente do que elas haviam combinado anteriormente. Se tudo chegara àquele ponto fora apenas por que ela em algum momento perdera o controle.

            “Este lindo sentimento que arde dentro de nós parecendo querer  explodir só pode ter sido criado para transcender nossa reles existência física.”

            Faladas sempre no plural, suas palavras soavam com fúria e envolviam as três naquela chama ardente de paixão.
            Luciana repousou a mão na perna de Lídia, que acolheu sem desviar sua compenetrada atenção.
            Ela, Débora, que sempre parecera a mais reservada das três, continuou a discursar como se conhecesse com maestria todos os mistérios do dom da palavra,

            “Se dentro da mesma hora desfizermo-nos de nossas vidas, hemos de nos reencontrar instantes depois para sermos aceitas e nunca mais separadas.”

            Lídia apanhou a mão de Débora, ainda com a mão de Luciana pousada em sua coxa. Entregaram-se então as três a grandes beijos apaixonados e nada  mais precisou ser dito.
            Naquele momento, houve um fato que lhe despertou a atenção, mas que conseguiu ignorar. Só agora ele voltava e com uma força muito maior, mostrando-se muito mais difícil de ser ignorado.
            Enquanto beijava Lídia e Luciana, Débora se lembrou de Joe, seu ex-namorado. Por mais inconcebível que pudesse parecer, foi uma lembrança saudosa e agradável. Das três, fora ela a única a terminar o namoro por própria iniciativa. Isso porque, enquanto os namorados de Lúcia e Lídia se revelaram ciumentos e possessivos, Joe demonstrou que certamente saberia respeitar a forte união cativada entre as três amigas. Infelizmente, na época parecera a Débora ser extremamente injusto continuar seu relacionamento, já que o das amigas definhara. Assim, ela terminou com Joe e achava até então que nem pensava mais nele. Só que a imagem dele agora era lúcida e concreta em sua mente, fazendo seu corpo estremecer dos pés ao cérebro.

            Só que isso não condiz com as regras, você sabe.”
(uma voz: alheia, mas familiar...)

            Lembrou-se de imediato a quem pertencia: era a voz de Luciana.

            “Não vai querer aplicar pra cima da gente esse papo de vilã arrependida, que vira mocinha no final do filme, certo?”

            “Calma, Lúcia. Ela já está bastante nervosa”.
(outra voz: Lídia!)

<voz de Luciana> “Calma o cacete! Depois de tudo o que aconteceu, ela não tem o direito de ficar em dúvida.”

<voz de Lídia> “Talvez ainda haja tempo de repensar se tudo não foi um erro...”

<voz de Luciana> “Sim, há muito tempo... ...para ela, mas e quanto a nós? Ah, já sei! Somos um mero contratempo. Nada que alguém tão cheia de vida não possa resolver. Claro que ela irá anualmente levar flores em nosso túmulo. Talvez leve até um futuro namoradinho com ela.”

            Débora chorava com vontade a essa altura. Eram onze e cinqüenta e sete. Pelos cálculos que haviam minuciosamente discutido nos últimos quatro meses, tinha apenas três minutos para dar cabo da própria vida, ou as almas das outras já se teriam dispersado.
            Mas os conflitos continuavam de forma intensa em sua mente.

<voz de Luciana> “Pode ser até mesmo o idiota do Joe. Quem sabe não pinte um clima e eles trepem bem em cima dos nossos túmulos.”

<voz de Lídia> “Já chega, Luciana! Cale essa maldita boca!”

<voz de Luciana> “Não é tempo de ponderações, Débora, mas de fazer o que é certo.”

            Débora levou a arma até a cabeça. Eram onze e cinqüenta e oito.

<voz de Lídia> “Não, Débora! Não precisa fazer isso!”

            Sim, era preciso. Débora começou a sentir uma grande sensação de torpor. A qualquer momento poderia desmaiar e então tudo estaria perdido. Chegara definitivamente o momento derradeiro de agir.


           

            A campainha soou. Faltava um minuto para o meio-dia. Tornou a tocar e, não obtendo resposta, o visitante bateu na porta e chamou:

            - Débora! É o Joe. Você está aí?
            - Joe! – ela gritou e nesse instante, exatamente ao meio-dia, do lado de fora o rapaz ouviu o tiro...


            Débora sobreviveu.
            Por muita sorte, disseram os médicos. A bala atravessou sua cabeça, sem, no entanto, danificar seriamente qualquer parte do seu cérebro; como se escolhesse a dedo por qual caminho poderia ou não seguir.
            Após duas semanas internada, foi liberada já plenamente recuperada. Teve de dar várias explicações à polícia, mas acabou sendo liberada mediante a uma séria recomendação a sua família para que começasse imediatamente um tratamento psiquiátrico. A carta redigida pelas três confessando todo o ritual de suicídio múltiplo livrou Débora de qualquer suspeita de homicídio doloso.
            Joe, que arrombou a porta do apartamento assim que ouviu o disparo, agora não deixava a moça sozinha nem um minuto. Ficara chocado ao encontrar os corpos das três amigas, mas teve calma para chamar imediatamente a polícia e o socorro médico, o que foi fundamental para que se conseguisse ainda salvar a vida de Débora.
            Assim que ela recebeu alta eles começaram a namorar e um ano depois se casaram, já com ela grávida de três meses.
            Débora ficou bastante surpresa assim que soube que teria gêmeos. Quando descobriu que seriam duas meninas ficou apavorada. De alguma forma, teve plena convicção de que Lídia e Luciana estavam voltando para se vingar. A ninguém, (nem mesmo a Joe), contara ela toda a verdade sobre a história das três. Jamais teria coragem de revelar que no momento mais crucial ela fora a única a fraquejar. Todos acreditaram que ela realmente tivera apenas sorte para escapar da morte, mas ela bem sabia que se não quisesse, jamais teria errado o alvo daquele tiro. Agora, a justiça divina, ou como quisessem chamar estava possivelmente concedendo às amigas o direito de fazer justiça com respeito à traidora. Provavelmente morreria durante o parto de forma trágica e com muito sofrimento. Sonhara diversas vezes com isso, sempre despertando abruptamente e suando frio, não raras vezes após um intenso grito de pavor, quase entrando em choque.
Por uma única vez a idéia do aborto lhe passou pela cabeça, mas ela a afastou, com raiva. Não iria abandonar novamente as amigas. Aceitaria a morte, ainda que dolorosa desta vez. Merecia isso...

  

            As gêmeas Lídia e Luciana nasceram de um parto que transcorreu incrivelmente bem.
            A mãe, que já havia decidido quanto aos nomes desde que soubera que daria luz a duas meninas, não apresentou qualquer complicação, o que também facilitou e muito a sua recuperação. As crianças, lindas e saudáveis, só foram motivo de festa e orgulho para os pais e toda a família.

            Débora e Joe formaram-se. Ela se transformou promotora e ele juiz.
            A festa do segundo aniversário das gêmeas foi uma das mais badaladas da história do bairro. Houve muitas crianças, brinquedos e grupos de animação. Dezenas de convidados se reuniram no apartamento recém adquirido pelo casal, no décimo andar de um luxuoso prédio com vista para o mar.
 Com absoluta alegria as meninas brincaram e se divertiram durante a festa, sob os olhares zelosos dos pais. Num único instante em que passaram despercebidas, ganharam o corredor do prédio, tencionando brincar um pouco ali, longe da multidão. Estavam gostando muito da festa, mas mais do que tudo, apreciavam a companhia uma da outra.

Já se preparavam para voltar para a festa, quando ouviram:
<voz de Luciana> “Hei, meninas! Venham aqui!”
            Perceberam imediatamente a estranha voz vinda do meio do corredor. Não a reconheciam, mas era tão doce e delicada que se sentiram impelidas a segui-la.

<voz de Luciana> “Eu estou aqui. Vamos, venham!”



            Débora e Joe conversavam com os pais de uma das crianças convidadas. Era uma das amiguinhas das gêmeas. O pai dela era diretor de um dos cartórios sob a jurisdição de Joe.
            Há alguns poucos instantes Débora dera pela falta das filhas, mas a conversa com os convidados momentaneamente a distraíra. Até ser abruptamente despertada...

<voz de Lídia> “Vá depressa! Elas estão lá com ela.”

            Aquilo foi um choque. O maior de todos, em toda a sua vida. Saiu imediatamente correndo já aos prantos, empurrando convidados adultos e crianças...



            As duas garotinhas enfim descobriram de onde provinha a tal voz: do fundo do poço do elevador, que não se encontrava naquele andar no momento. A voz continuava a lhes falar de forma meiga e suave, quase como a da sua mãe.

<voz de Luciana> “Então, meninas. Não querem vir aqui comigo? Prometo que vamos nos divertir muito.”
            - Você vai? – perguntou ingenuamente a pequena Lídia para a irmã.
            - Eu vô. E você? Vai tamém?
            - Vô.

            Assim, Lídia pulou primeiro. Houve um breve instante de silêncio e logo em seguida um baque surdo, meio longínquo.
            A menina Luciana protestou em direção ao poço, para a irmã:

            - Me espera, Lídia! Eu vô tamém.

            E pulou em seguida.

            Débora chegou ao corredor ainda a tempo de ver a filha, mas tarde demais para impedi-la de saltar rumo ao abismo.


  
XII – MALDIÇÃO DAS SOMBRAS


            O Escuro  avançou violentamente sobre a pequena July. Em seus onze anos, Ele sempre fora seu pior inimigo. Tinha as vezes, é verdade, alguns concorrentes como os indivíduos notórios marginais estupradores e homicidas que tocavam as meninas na saída da escola em plena luz do dia e as vistas de qualquer um. Ficava fácil então imaginar o que devia acontecer com as garotas do período noturno. E nada era feito a esse respeito, já que na favela em que ela morava, num dos bairros mais pobres da cidade, os casos mais escabrosos de violência não passavam de histórias banais do cotidiano.
            Outro concorrente do Escuro eram as baratas; enormes, gigantescas como mutantes. Pode parecer um problema menor em relação ao anterior, mas só uma pré-adolescente de onze anos conseguiria imaginar o extremo pavor de sentir infalivelmente por todos os dias seu leve sono ser perturbado pelo formigamento do caminhar das patas do asqueroso bicho em seus braços, pernas, rosto, cabelo e até sob as roupas, muitas vezes. Isso sem dizer pelo chão, paredes, teto e janelas, tão a vontades quanto modelos nas passarelas.
            Mas, o mais forte concorrente era certamente o homem gordo e beberrão que recentemente se juntara com sua mãe, que sequer a consultara, ou a seu irmão. Este, quando soube, fugiu imediatamente de casa, indo viver nas ruas sob as bênçãos do novo padrasto que se vangloriava em alta voz de que o garoto só lhe havia poupado trabalho, pois era questão mera de tempo para ele pô-lo da porta para fora com um pontapé, pois conhecia de longe um mau elemento e não permitiria que nenhum permanecesse sob o seu teto.
            A mãe não fez nada para impedir. Quando percebeu a burrada que tinha feito, só lhe restou ser submissa e servil. Queria um homem que pagasse as contas e conseguira. Não lhe cabia agora reclamar de maus tratos para com ela e os filhos. A dura vida lhe ensinara que para os miseráveis, as compensações jamais deveriam amortizar mais do que 20% dos sofrimentos.
            Para July, o que a primeira vista figurara-se como um alívio, já que constantemente apanhava do irmão por motivos fúteis e incompreensíveis muitas vezes, revelou-se uma mortificação ainda maior, pois passou a apanhar do padrasto ainda com maior freqüência e sem motivo algum. Houvera nas primeiras vezes ainda algumas justificativas infundadas como “cerveja não suficientemente gelada”, “roupa não suficientemente limpa”, “comida não suficientemente temperada” e coisas assim, mas, em pouco tempo, já extremamente familiarizado com o novo lar, que ninguém lhe questionasse sobre os motivos quando dava na pirralha um bom pontapé, ou empurrava sua cabeça-oca contra a parede.
            As conclusões revelaram-se por si mesmas; tudo o que fazia, declarando ser apenas uma forma de extravasar, tinha outro nome, conhecido e extremamente degradante: racismo. Na verdade, embora tivesse se casado, (se ajuntado, popularmente falando), com uma mulher negra, pressupondo-se assim que não teria problemas para aceitar uma família da mesma raça, era sim, na verdade, um homem extremamente preconceituoso. Provavelmente só demonstrara isso com a verdadeira clareza após ele e a mulher terem ido morar juntos, mas se a mãe de Judy fora fraca por não se esforçar a perceber antes, seria extremamente mais fraca para livrar-se dele agora que ele já se sentia senhor absoluto daquela família.

            Sim, tudo isso era doloroso e apavorante, mas nem de longe se rivalizava a  Ele. O medo que Ele, O Escuro, provocara era soberano. Seus passos rápidos e enigmáticos respondiam sempre pela Sua onipresença. Seu semblante, se cabível fosse imaginá-lo, seria como o de um deus soturno e grandioso.

            A caçada diária que Ele promovia tinha começado quando July ampliara sua percepção do mundo, mais ou menos ao completar nove anos de idade. Muito antes ela já sentia a ausência dos privilégios da infância, mas só então acolhera aquela como sua sina e adotara como princípio uma das muitas visões nada pueris que regem o mundo. A única forma de justiça que existe é que todos merecem o que têm. Não existe deus ou destino para mudar o que está errado. Nada está errado; todos merecem o que têm.  Alguns lutam para conseguir ter mais, outros preferem morrer e há ainda os que sempre terão mais do que precisam. Não que o mundo seja imutável ou siga alguma linear trilha estúpida; fosse assim não existiriam desgraças, tragédias ou prêmios da loteria. O que não se compreende é que as reclamações e indignações vãs só aborrecem ainda mais o círculo, tornando mais pesado o fardo próprio e de todos os que o compõem. Agentes e pacientes, todos merecem o que têm.

            Assim, talvez por isso mesmo a percepção dela se ampliara tão cedo: para que percebesse a presença dEle  e O aceitasse como pleno merecedor de estar ali. Ainda assim, era difícil. Sentia-se toda noite tocada, violada por Ele. Espreitava seu sono, altercando pensamentos libidinosos e mortais. Apesar da abalada estrutura a qual ela ainda insistia em denominar de família, era o que sempre lhe dava a segurança de não estar totalmente sozinha com Ele. Se isso acontecesse, sua vida provavelmente ficaria por um fio.
            O cheiro de sangue coagulado que emanava de sua foice enferrujada também era algo absolutamente perceptível. Além disso, muitas vezes o hálito quente e fétido de Sua boca abarrotada de afiadas presas por muitas vezes provocara em July a sensação de que se se mexesse durante o sono poderia ter sua tênue garganta facilmente perfurada.
            Tudo isso a apavorara muito, principalmente no início. Depois, um pouco mais habituada, percebeu que não morreria. Não era o que Ele  queria. Embora o Seu próprio cheiro fosse o da morte, July percebeu que dela Ele  queria alguma outra  coisa. Só descobriu o que era quando passando por acaso pela porta de uma livraria esotérica viu na vitrine a imagem dEle  na capa de um livro. Seria certamente impossível de explicar. Existem milhares de livros de capas negras, sem gravuras, já publicados. O que fazia daquele não apenas mais um? Apenas o fato de que, ao menos para ela, nitidamente Ele  estava ali. Completo, em todas as Suas feições.
            Não na capa, mas na primeira página constava o título:

“A 3ª VISÃO”

                        E o mais interessante: não havia qualquer menção sobre o autor.
            As surpresas continuaram; quando entrara na loja demonstrando interesse em adquirir o livro, fora simplesmente presenteada com ele pelo vendedor.
            “É seu.” – ele apenas dissera – “Ao menos por enquanto, ninguém mais há de demonstrar interesse por Ele” – e rapidamente embrulhara o livro e o entregara nas mãos dela.

            O livro, a princípio, revelara-se ininteligível. Grafemas desconhecidos e algumas letras e símbolos pessimamente traçados até para um analfabeto, além de várias páginas em branco. Uma leitura aparentemente desestimulante. No entanto, na primeira noite em que, já desistindo, July desligou o abajur e fechou o livro, tudo emergiu com uma impressionante clareza em sua mente. Tornou a apanhar e abrir o livro, ainda com a luz apagada e conseguia compreender tudo. Nascia ali o mais direto método do Escuro se comunicar com ela. Ele era a sua “3ª visão”. Com a mente, ela poderia enxergar muito mais do que com o “olhar-comum”. As páginas em branco estavam ali para que ela as completasse. Tornar-se-iam muito em breve parceiros, amigos; um...
            O livro era um diário do Escuro para que a menina pudesse compreendê-lO. Mas, antes mesmo dela O compreender totalmente, os assassinatos começaram...


            O primeiro, na escola; o professor tentara agarrá-la.
            Ela estava com onze anos. Que idade melhor para os professores? Mente e corpo em estado de desenvolvimento.
            A mãe a obrigara a acompanhá-la na reunião de pais e mestres, feita excepcionalmente em horário noturno daquela vez, mesmo para as classes do primeiro período. Um tanto melhor. Não gostava de ficar sozinha com o padrasto. Embora já conhecesse alguns métodos de evitar aborrecê-lo com sua simples presença, nem sempre o conseguia com efetividade, acabando assim invariavelmente agredida. E nesta época ainda não se sentia plenamente segura ficando sozinha no Escuro.
            Assim, na reunião, a mãe demorou-se um pouco mais, conversando com uma das professoras. July retirou-se um tanto ressabiada, pois sabia que se a mãe chegasse em casa com a menor reclamação ou notícia que desagradasse o homem com quem viviam, uma longa surra a esperaria. A maioria dos professores gostava dela, conheciam um pouco de sua história e se compadeciam, embora quase nunca fosse preciso amenizar durante as reuniões eventuais problemas decorrentes do comportamento da menina em sala de aula. Era sempre uma aluna aplicada e disciplinada. Mas como em tudo não podem faltar exceções, havia sempre os professores intransigentes, que parecem formados em transformar situações corriqueiras nos crimes mais hediondos. E a professora com a qual sua mãe ficara retida encaixava-se perfeitamente neste perfil.

            No corredor, July encontrou o seu professor de Português. Em todo o ano escolar, excetuando os momentos de responder à chamada diária, July trocara menos de meia dúzia de palavras com ele. Achava-o estranho, embora ele sempre procurasse transmitir uma imagem simpática, emitindo piadinhas geralmente forçadas e infames. No entanto, naquela noite, quando ele surgiu solicitando ajuda para carregar uma pilha de pastas de alunos até o andar de cima, July se dispôs prontamente. Além de procurar sempre ser uma aluna aplicada aos olhos de seus professores, era uma criança gentil e dedicada. Que motivos encontraria para negar auxílio ao seu mestre? Assim, aceitou uma parte menor de pastas que o homem extraiu da grande pilha que conduzia com dificuldades, escorando-a com o seu corpo e seguiram os dois rumo às escadarias, subindo juntos. Nada mais falaram durante todo o percurso, algo que para July pareceu perfeitamente normal, já que a mesma atitude haviam mantido por todo o ano.
            Chegaram a uma sala trancada. O professor depositou devagar as pastas no chão e apanhou um molho de chaves num dos bolsos. Sorriu estranhamente para July neste momento. Estranheza oriunda não apenas do sorriso, um tanto sem propósito definido, mas principalmente de ter sido o primeiro direcionado a ela em todos os tempos. Ela retribuiu tensamente, embora procurando demonstrar confiança.
            A tensão aumentou quando o professor abriu a porta e July O viu. Imediatamente O reconheceu, ainda que logo em seguida, o professor tenha acionado o interruptor, iluminando a sala e fazendo-O desaparecer.
            Com uma outra chave, o professor abriu um pequeno armário e começou a depositar as pastas coloridas uma a uma, organizando-as bem.
            _ Você pode fazer isso para mim, meu bem? – perguntou em tom gentil.
            - Claro, professor – Judy respondeu, aproximando-se para receber o restante da pilha. Quando se abaixou para guardar no armarinho a primeira pasta, ouviu o barulho da fechadura sendo trancada. Olhou para o professor e ele estava sorrindo com a chave na mão, balançando-a.
            - O que houve? – ela indagou, num tom de susto.
            - Nada, meu bem – ele respondeu, com o mesmo sorriso, acrescido agora de um olhar psicótico – Agora nós vamos nos divertir.

            July imediatamente compreendeu tudo e tentou fugir correndo para a porta, mas foi agarrada pelo homem que se pôs no caminho. Começou a gritar, mas ele a esbofeteou com bastante força, por duas vezes. Ela cambaleou desorientada e ele aproveitou para agarrá-la e tapar sua boca com a palma da mão. Ela tentou ainda morder a mão que a amordaçava, mas ele levou a outra até a sua garganta e começou a apertar.
            - Cale a boca, ou eu te mato!
            Apavorada, tudo o que pôde pensar em fazer foi começar a chorar baixinho. Com violentos puxões ele rasgou sua blusa. Largou-lhe do pescoço, dando-lhe mais um forte golpe no rosto que a projetou de encontro à escrivaninha dos professores. Começou o professor então a se livrar das próprias roupas; a blusa, os sapatos e as calças; ficou só de cueca e meias. July olhava tudo, engolindo o choro; desistira de tentar qualquer reação. Seu rosto estava quente e dolorido e seu lábio sangrava por um corte profundo na lateral.
            O professor, talvez por pudor de se mostrar totalmente nu na frente da menina, cometeu o último erro de sua vida: foi ao interruptor e acionou-o, desligando a luz. Depois, correu até July e a agarrou, deitando-se sobre ela, em cima da mesa.
            Mal teve tempo de sentir algo que perfurou profundamente o seu pescoço por trás e o ergueu como a um peixe fisgado. Sem a menor chance de sequer gritar, foi arremessado violentamente pela janela, aterrissando de testa, já absolutamente morto no meio do pátio da escola...

 

            Começara há dois dias a leitura do livro e ele já era um grande companheiro.
            Felizmente não apanhara naquela noite.
            Excetuando-se as bofetadas do professor tarado, diga-se. Fora ao sanitário feminino e lavara bem os ferimentos, amenizando bastante seus sinais. Além do mais, a mãe pouca atenção prestava a ela e certamente não notaria. O padrasto dormia quando chegaram; como de costume, bêbado como um gambá.
            Não havendo aulas, devido à reunião, não havia ninguém no pátio naquele horário e assim o corpo só foi encontrado no dia seguinte.
            Uma morte inexplicável e violenta: o início de um enigma extremamente difícil e intrigante para a polícia.
            A sós com seu “livro-diário”, July pela primeira vez se atreveu a dirigir-se a Ele:
“Ele tinha mesmo que morrer? Você não podia apenas o afastar?”

            Sim, claro que Ele poderia. Poderia amedrontar tanto aquele professorzinho que o faria esquecer pelo resto de sua vida do que guardava dentro de suas cuecas. Mas isso significava distorcer a índole do professor e Sua própria índole, o que não era justificável. Todos merecem o que têm. Renegar isso serve apenas para nublar a 3ª Visão.
            Logo, a mesma escola voltaria a ceder personagens àquela germinante onda de crimes insolúveis.
            Ruth Silver era uma aluna simpática e jovial. Sua família já havia sido muito rica, mas perderam praticamente tudo por dívidas oriundas de gastos desmedidos. A situação tornara-se tão drástica que sobrara apenas aos filhos estudar naquela escola de periferia, por ser próxima o suficiente para livrá-los da condução. Assim, os filhos do casal Silver, Ruth e Derick, freqüentavam a mesma escola e eram da mesma classe. Nem de longe, porém, isto servia para aproximá-los. Seus temperamentos opostos os faziam quase inimigos. Derick, exatamente como seus pais, não se conformara com o duro golpe que atingira suas vidas repletas de mordomias e extravagâncias, deixando-os, como o pai dele costumava classificar, no pior estado de subsistência miserável. Teriam certamente, e muito em breve, tudo de volta e muito mais. Por isso deveriam se conservar sempre no patamar das pessoas superiores, pois era o lugar que indubitavelmente deveriam estar.
            Assim, por motivos óbvios, Derick Silver não viu com bons olhos quando sua irmã e July, notoriamente a criança mais pobre e em pior condição de vida da classe começaram a cativar uma amizade. Embora não gostasse da irmã e pouco se importasse com as preferências, (quase sempre de péssimo gosto), dela, o que lhe pareceu estar entrando em jogo era a honra de sua família. A degradação da integridade de sua estirpe poderia estar começando com aquele aparentemente inofensivo coleguismo.
            Esforçou-se para alertar a irmã e aconteceu justamente o que ele preverá. Ao saber da opinião do irmão sobre sua nova amiga, Ruth pareceu esforçar-se ainda mais para estreitar os laços daquela amizade. Tudo para contrariá-lo e isso o fazia sentir mais raiva dela e da menina negra e favelada. Seu próximo pensamento foi contar aos pais sobre aquela relação, mas, mesmo sabendo que eles certamente a proibiriam de continuar com aquilo, até castigando-a se fosse preciso, Derick sabia que isso ainda não iria dissuadir sua voluntariosa irmã. Infelizmente, como nada havia que ele pudesse fazer para expulsá-la da família, teria de atacar diretamente a favelada.
            Não iria contar nada aos pais, mas contava grandemente com eles em seu plano.


            Ruth e July já eram grandes amigas, mas procuravam restringir o relacionamento ao ambiente escolar. Sim, porque a diferença social, (ainda que de fachada, já que na verdade suas famílias se achavam atualmente num patamar muito aproximado), as deixava claramente temerosas quanto à reação que os pais de ambas poderiam ter. July, por sua vez, jamais levara qualquer amiga, de qualquer classe social, a sua casa, imaginando que o padrasto certamente expulsaria a criança imediatamente em meio a uma saraivada de palavrões e xingamentos, reservando ainda para a enteada a caprichada sova costumeira.
            Assim, ao término das aulas cada uma seguia o seu rumo e a amizade adormecia, para despertar plenamente no outro dia.
            Derick, o irmão de Ruth, nunca fora dado a cativar amizades muito profundas; numa escola de bairro pobre como aquela, quem o conhecesse diria que seria algo quase impossível. A menos que fosse parte de um maléfico plano...



            Os Silver realmente se encontravam em situação caótica, financeiramente falando, mas isso quase nunca é motivo para os soberbos e arrogantes desistirem de manterem a pose. Assim, empréstimos fraudulentos, heranças inexistentes, promessas de emprego delirantes e dezenas de outras espécies de armações eram sempre fortes aliados nos métodos diários de sobrevivência do Senhor e da Senhora Silver. Junto aos poucos amigos que lhes restavam da alta sociedade, ainda conseguiam algum auxílio financeiro sob promessas de ressarcimento brevemente. Claro que não era suficiente para manter o mesmo tipo de vida que levavam, mas certamente também conseguiam levar uma vida muito além de suas atuais possibilidades. Um dos benefícios que essa “renda extra” possibilitava e que eles faziam questão de manter por ser um dos poucos remanescentes da época das vacas gordas e que por isso mesmo costumava durar o dia inteiro era o chamado “dia-de-compras”. Nestes dias o casal Silver praticamente desaparecia a se perder pelos shoppings e grandes lojas da cidade e mesmo das cidades vizinhas, em busca das melhores roupas e produtos, mais ainda agora que se viam obrigados a ter que barganhar também pelos melhores preços, algo que para eles sempre fora impensável.


            Daí, as prolongadas ausências dos Silver durante os “dias-de-compras” serviram de munição para o garoto Derick por em prática seu plano de destruir a amizade de sua irmã com July, a garota mais pobre da escola. Selecionou um pequeno grupo de conhecidos seus na classe, (que na verdade ele jamais se atreveria a chamar de amigos, mas apenas suportáveis), e passou a convidá-los a sua casa para lhe fazerem companhia durante essas determinadas ausências dos pais. Sabia que de sua vida cheia de regalias ainda guardava alguns atrativos que certamente fascinariam aqueles garotos pobretões, como jogos eletrônicos modernos, seu computador, uma vasta videoteca com filmes e desenhos para todos os gostos, além de centenas de revistas em quadrinhos, inclusive importadas.
            Chegara, claro, a pensar em convidar seus antigos colegas do colégio particular em que ele sempre estudara, mas isso não traria a seu plano a efetividade desejada. Precisava causar na irmã a impressão, senão a certeza, de que estava contrariando deliberadamente a vontade dos pais, levando amigos de baixa estirpe para brincar em casa, evidenciando um ajuntamento claramente desagradável aos Silver de qualquer de seus filhos com crianças da ralé. Consideravam até aceitável que se relacionassem, na medida do possível, bem nas aulas e na escola, afinal, ao menos enquanto suas vidas não virassem novamente, aquela convivência precisaria ser pelo menos suportável, mas daí ao ponto de convidar crianças pobres para visitar sua casa havia para eles uma distância intransponível.
            Mas não para Ruth. Poderia denunciar aos pais a atitude do irmão, mas não eram os seus métodos, embora ciência tivesse de que certamente seriam os dele. Aliás, detestava aquela visão preconceituosa dos pais e do irmão, (o que a deixava sem entender aquela mudança repentina em seu temperamento e ao mesmo tempo feliz por aquele pequeno sinal, achava ela, de que Derick poderia estar mudando); Ruth achava perfeitamente normal que o irmão convidasse quem quisesse para brincar em casa, desde que assumisse a responsabilidade quanto à confiabilidade de seus novos amigos. Até porque, mesmo os colegas ricos de Derick nunca haviam sido grande coisa. Dos vários que tivera, dificilmente algum aceitaria um convite seu agora.
            Só que a justiça que se aplicava ao irmão, deveria funcionar também para ela. Embora ele nunca tivesse se dado ao trabalho de consultá-la, Ruth notificou o irmão que nos ‘dias-de-compra’ convidaria também sua amiga July para brincar com ela e que não aceitaria qualquer implicância da parte dele. Ele fez questão de não responder, ignorando-a, mas ela sabia, (ou ao menos pensava saber), que ele estava concordando, por encontrar-se sem opções. Assim, Ruth convidou July para passar com ela o próximo ‘dia-de-compras’, sem saber que seu irmãozinho arquitetava minuciosamente um tremendo flagrante...





            Parecera-lhe realmente genial a idéia de telefonar para o celular do pai e convencer os dois a abortarem aquele ‘dia-de-compras’, que para eles deveria estar só começando. Se tivesse tentado convencê-los a participar espontaneamente de seu plano, certamente não conseguiria êxito. Embora aquela questão familiar fosse também encarada com importância pelos Silver, dificilmente os dissuadiria, (principalmente a mulher), de saborear sua prazerosa tarde de compras. Todos os sermões e castigos seriam aplicados à filha impertinente sim, mas antes ou depois daqueles momentos, porque, durante o ‘dia-de-compras’, os filhos do casal Silver poderiam até explodir o mundo se quisessem.
            A única coisa que faria os pais de Ruth e Derick abortarem provisoriamente suas compulsões de gastar dinheiro deliberadamente era a possibilidade de ganhar muito mais de forma fácil, sem esforço mesmo que com pouca ou nenhuma ética. Um suposto magnata político, notoriamente corrupto, oferecendo rios de dinheiro ao Sr. Silver pelo seu serviço como assessor fora realmente uma cartada de mestre do sagaz pré-adolescente Derick Silver.




            Como meninas normais, July e Ruth se divertiram de diversas formas durante aquele dia. Derick, naturalmente fora a exceção da regra. Logo quando a amiga da irmã chegara, ele fizera questão de ser extremamente indelicado ao não responder o cumprimento por ela lhe dirigido. Não convidara seus amigos nesse dia. No entanto, recusou terminantemente o convite partido delas para brincarem juntos. O que fez mesmo foi espreitá-las à distância por todo o tempo, retrucando sempre com seu peculiar olhar desdenhoso quando por elas interpelado.
            Enfim, para exultação de Derick e surpresa e preocupação das duas amigas, um pouco antes do começo da noite, os Silver chegaram daquele claramente encurtado “dia-de-compras”. Os faróis altos iluminaram todo o quintal até o carro ser desligado na garagem. Derick, já absolutamente preparado, antecipou-se a todos, correndo até o elegante casal que desceu do carro.
            Ruth falou do mesmo ponto em que estava. Precisava também antecipar-se ao irmão, pois bem já sabia das intenções dele.

            - Mamãe, papai; esta é minha amiga July. Achei que não haveria problemas em convidá-la para brincar comigo.
            July sorriu e cumprimentou o casal da forma mais gentil que pôde:
            - Olá, senhores. Como estão?
            Eles a fitaram como quem examina um extraterrestre. A mulher forçou um sorriso extremamente falso. O homem entrou na casa, como se a presença da menina tivesse sido apenas um contratempo. Instantes depois voltou indagador:
            - Onde está meu visitante?
            - Que visitante? – estranhou July. Olhou para o irmão e começou a compreender tudo.
            Derick sorriu e o Sr. Silver também pareceu perceber a armação.
            - Você nos enganou quanto à visita do magnata, não foi seu fedelho?
            - Foi o único jeito de mostrar para vocês o que a minha irmã desmiolada está armando contra o nome de nossa família – defendeu-se o menino, sem perder a pose.
            - Eu não acredito! – esbravejou a Sra. Silver, levando as duas mãos à cabeça como se estivesse prestes a ter um ataque.
            - Eu vou te matar, seu pirralho! – sentenciou o pai enfurecido. Mesmo assim, o petulante menino não deu mostras de qualquer sinal de arrependimento.
            - Aceitarei a minha punição, mas pelo menos os senhores ficarão cientes das amizades que Rute quer introduzir no seio da nossa família.
            - Você também por muitas vezes já trouxe aqui os seus amigos da escola – acusou-o a irmã, que embora desorientada pela inescrupulosa armadilha ainda procurava argumentos para se defender, ou ao menos amenizar sua culpa sob os olhos dos pais.
            - Não seja ingênua, Rute. Aqueles idiotas nunca foram e jamais serão meus amigos. Combinei com todos para ludibriar você. Aliás, para isso, até os pagaria se fosse preciso. Felizmente não foi; é impressionante como esse tipo de gente se faz até de capacho só para desfrutar um pouco dos benefícios que compõem o nosso mundo.
            Por mais incrível que possa aparentar, só então o Sr. Silver pareceu realmente se dar conta da presença da amiga de sua filha. A frustração pela inexistência do visitante ilustre ia aos poucos o abandonando, deixando apenas o seu mau humor peculiar.
            A mulher, muito mais observadora, como lhe mandava a natureza, há muito já notara a aparência e o vestuário de July, e estava mais do que pronta para antipatizar com ela. Aproximou-se da menina, claramente desconfortável com toda aquela situação e por isso mesmo bastante retraída e lhe perguntou austera como um verdadeiro interrogador:
            - Sua família mora por aqui?
            - Ela mora na favela, mamãe – intrometeu-se Derick mais uma vez, antes que July sequer tentasse responder.
            Houve uma pausa tensa no ar. Os Silver entreolharam-se.
            - Seu pai trabalha? – continuou a Sr.ª Silver.
            - Meu pai morreu – July respondeu timidamente – Moro com minha mãe e meu padrasto. Meu único irmão fugiu de casa recentemente.
            A mulher lançou um último olhar a July, percorrendo-a da cabeça aos pés e deu-lhe as costas em seguida. Antes de entrar na casa disse mais uma coisa em tom ríspido:
            - Dentro de dois minutos quero os dois dentro de casa tomando seus banhos e se aprontando para o jantar. Fui clara?
            - Sim, mamãe – Derick respondeu prontamente.
            Como de parte da filha não obteve resposta, virou-se para Rute fitando-a com austeridade e tornou a indagar:
            - Fui clara?
            Irremediavelmente acuada, Ruth respondeu abaixando a cabeça:
            - Sim, mamãe.
            - Ótimo.
            Tornou a megera a dar a volta e adentrou na casa.
            O Sr. Silvaer a seguiu após dar também sua última palavra:
            - Ouviu sua mãe, certo Rute? Dois minutos. Despeça-se então de sua... hum... amiga e entre.
            Assim que os adultos entraram July se pronunciou. Obviamente não conseguia disfarçar a feição entristecida.
            - É melhor vocês entrarem. Eu também tenho que ir.
            Ruth, também estava bastante constrangida, diferentemente de Derick, a quem a presença dos pais fortalecera plenamente a arrogância.
            - Nossos pais não querem que nos misturemos com crianças que não são da nossa classe social. A maioria são marginais e más companhias.
            - Cale a boca, Henrique – vociferou, Ruth.
            - Por quê? É contra a lei dizer a verdade? Além disso, a culpa é toda sua que mesmo sabendo disso, vive se ajuntando com essa faveladinha. Da próxima vez vá você brincar sob a ponte onde ela deve morar.
            Tinha apenas doze anos, mas, à semelhança dos pais, já tinha a maldade irremediavelmente impregnada no espírito.
            - Não se preocupe, Ruth – intercedeu July – está tudo bem.
            - Que bom que você não guardou rancor – apanhou a bola que as meninas haviam jogado – leve a bola para você – e atirou a bola com força atingindo o rosto de July.
            - Henrique, você me paga! – Ruth gritou, avançando para agarrá-lo, mas ele correu rapidamente para dentro da casa e fechou a porta.
            July tinha os olhos cheios de lágrimas que já há muito vinha lutando para conter. Rute caminhou até ela e quis segurar em suas mãos, o que ela não permitiu.
            - Eu sinto muito por tudo, July.
            - Tudo bem – ela respondeu secamente.
            Caminhavam em silêncio até o portão da rua, quando ouviram um barulho de vidro se estilhaçando. Imediatamente, a grande luminária que clareava o quintal se apagou. As duas olharam para trás e viram Derick ao pé da porta novamente. Seus pais surgiram abrindo a porta atrás dele.
            - Que diabo está acontecendo aqui? – perguntou o Sr. Silver.
            Mais uma deixa para o eufórico e ofegante Henrique.
            - Eu vi, pai; mãe; a amiga da Rute atirou uma pedra na lâmpada.
            Ruth balançou a cabeça e dirigiu-se aos pais protestando veementemente:
            - É mentira! Foi o próprio Derick que...
            - Já para dentro os dois – interpelou a Senhora Silver, sem tomar conhecimento das palavras da filha.
            - Mas, mãe...
            - Cale a boca, Rute e faça o que sua mãe está mandando!

            As duas crianças entraram quase que perfiladas; Derick apenas procurando se manter a uma distância segura.
            Quando ficaram sozinhos com July, a Sr.ª Silver continuou falando:
            - Quanto a você, menina, só não vou obrigar seu pai a pagar pela lâmpada por que vocês não devem ter dinheiro nem para comer...
            July tentou interceder a seu próprio favor:
            - Mas Senhora, não fui eu que...
            - Cale-se, negrinha impertinente! – colocou-se mais uma vez o Sr. Silver em defesa do direito exclusivo de falar de sua esposa – Não sabe que é falta de educação interromper quando um adulto está falando? Aliás, você sabe o que é educação?
            As lágrimas de July finalmente venceram sua resistência na ‘queda-de-braço’. Toda a miséria de sua vida nunca a havia humilhado tanto.

            A mulher sorriu ligeiramente, grata pelo apoio do marido e recobrou a expressão e as palavras enérgicas:
            - Não quero nunca mais que você se aproxime dos meus filhos. Deve aprender desde já a se misturar apenas com gente da sua laia, estamos entendidas?
            - Sim – disse July soluçando e cheia de ódio nos olhos.
            - Diga “sim senhora”, sua malcriada.
            Naquele momento, todo aquele ódio ela começou a canalizar em uma palavra: vingança.
            - Sim senhora – respondeu, já completamente no controle de suas emoções.
            - Agora dê o fora – falou o Sr. Silver com a exata arrogância deixada de herança para o seu filho.

            July saiu, mas não bateu o portão, o que ativaria a tranca automática. Apenas encostou-o e assim que eles entraram, tornou a abri-lo suavemente para não chamar atenção. Há alguns minutos havia visto algo que a fizera sentir-se melhor: na parede da entrada da casa, os disjuntores da energia elétrica que a abasteciam ficavam um pouco alto na parede, mas se esticasse poderia alcançá-los...

            Quando toda a iluminação dentro da casa se esvaiu, os gritos de morte também começaram.
            E July só foi embora quando todo o barulho cessou.


            As manchetes do dia seguinte, em letras garrafais e fotos atemorizantes relatavam os horrores da tragédia; corpos dilacerados, sangue pelas paredes e mais uma vez nenhuma pista sobre a autoria dos crimes. As marcas sugeriam um instrumento extremamente cortante e pontiagudo, como garras, fazendo as primeiras suspeitas recaírem sobre alguma fera poderosa e sanguinária, o que provocou um estado pleno de alerta nas patrulhas florestais, circos e mesmo no zoológico da cidade, atentando para que se redobrasse a vigilância sobre todos os animais selvagens.
            July estava pensativa e um tanto relutante. Não sabia se era certo o que havia feito. Não pelo fato de ter punido aqueles que tanto a agrediram, mas houvera também um único alguém que se colocara em sua defesa: Ruth. Ela parecia ser mesmo sua amiga e a tivera que deixar padecer como sacrifício para a punição dos que a ultrajaram. Talvez fosse preciso se acostumar com a idéia de que para todo ato de justiça sempre haveria um sacrifício. E por mais que fosse difícil, ela os aceitaria.
            O Escuro parecia não mais se aborrecer com os questionamentos de July, embora também aparentasse não dar muita atenção e importância às suas dúvidas, respondendo-lhe sempre com chavões e frases feitas:
            “os fins justificam os meios...”
e
            “todos merecem o que têm...”
           
            Deveria, portanto esquecer o azar e a infelicidade que a família de Ruth trouxera para ela mesma. July, mais do que qualquer um, tinha amplos motivos para assimilar o quão perniciosa costumava ser uma família de laços afetivos desfigurados.
            Como explicar, no entanto, o terceiro assassinato?
            As aulas de recuperação forçavam os alunos a freqüentarem a escola também no período de fim de tarde e noturno.
            O garotinho se chamava Alisson e tinha apenas sete anos. Num primeiro golpe foi castrado; ainda assim, valentemente tentou fugir para ser perseguido e decapitado pelas costas. Tudo o que ele fizera fora passar a mão em July, induzido por um grupo de garotos mais velhos e provocadores, durante um blackout no prédio escolar. Não fora a primeira vez que tais maus elementos incentivavam através de promessas ou ameaças alunos mais novos a participarem daquele tipo de brincadeira de mau gosto. Para o azar de Alisson, porém, pela primeira vez aquilo fora tentado contra July e testemunhado e desaprovado por seu protetor. Na hora ela praguejara e tivera muita raiva do autor do atrevimento que se aproveitara da intensa penumbra para fugir sem ser reconhecido.
            A falta de energia precipitou a suspensão das aulas e durante o trajeto de volta para casa, Alisson foi encurralado numa rua deserta.
            Pela primeira vez, July não testemunhou o crime, só vindo a saber dele no dia seguinte. E pela primeira vez também não encontrava mais motivos para confiar na justiça do Escuro, quando Ele lhe revelara a autoria e o real motivo de mais aquela bárbara execução. No entanto, a tal altura, July não tinha coragem nem condições de exigir-Lhe melhores motivos, ou mesmo questionar Seus métodos de seleção destes. Por isso mesmo, fartamente os crimes continuaram, deixando sempre, (e apenas), os mesmos tipos de vestígios: marcas de garras nos corpos e paredes, corpos dilacerados, desmembrados, decapitados, sempre em meio a um mar de sangue.
            Na mesma escola onde ocorrera o assassinato do professor de Português, (o que parece ter sido o primeiro da série), antes de seu irremediável fechamento, mais dois professores, três alunos e até o diretor foram brutalmente assassinados, bem debaixo da vigilância cerrada da polícia que assistia atônita toda a responsabilidade recair sobre si, por sua absoluta ineficiência e inoperância.
            Entre as vítimas, incluíram-se alguns anos depois, o padrasto e o irmão mais velho de July, mas a essa altura, já eram tantos os crimes que aquilo foi absolutamente ineficaz para que se suspeitasse dela. A mão dela enlouqueceu e acabou internada permanentemente num hospício na capital do estado.
            A cidade, que tinha certo potencial econômico e larga perspectiva de crescimento, encolheu-se. Não pode suportar o peso daqueles crimes hediondos e insolúveis. Os maiores investigadores e cérebros criminalistas do país dispuseram-se a cuidar do caso, apenas para se fadarem ao mais absoluto fracasso. A grande maioria da população abandonou a cidade. Falava-se em espíritos malignos, monstros e até em sentença divina. Tudo isso durou dezesseis anos...
            July cresceu. Herdou a casa da mãe que faleceu tísica no manicômio e um pequeno boteco que o padrasto ainda conseguira comprar em vida, com o prêmio de um jogo de azar considerado ilícito, mas absolutamente popular. Assim que se viu sozinha no mundo, vendeu a ambos para comprar uma casa num bairro melhor. Na época, acabara de completar dezoito anos.
            Seu temor pelo Escuro se dissipou totalmente. Ele era seu amigo. Não deixava ninguém lhe ferir. À noite, o que fazia era velar o seu sono; protegê-la, niná-la. Não permitia que tivesse amigos ou namorados, era verdade, mas ela não precisava. Bastava-lhe Ele.
            Aos vinte e cinco anos de idade mudou-se para uma metrópole vizinha para ingressar na universidade. Foi quando a onda dos crimes indecifráveis, (forma pela qual tornaram a pacata cidadezinha mundialmente conhecida), cessaram definitivamente. Claro que com o passar do tempo a onda se amenizara, mas ainda que poucas vezes ao ano, tais crimes ainda eclodiam em algum canto escuro da cidade. Mas quando a insuspeita Juliette mudou-se, tudo, (menos o mistério), teve fim.
            Aos vinte e nove anos formou-se e passou a lecionar, tornando-se num futuro breve uma competente e respeitada profissional na área de comunicações. Aos quarenta anos publicou seu primeiro livro, assinando como Juliette Shadow, intitulado “OUTRAS VISÕES” e que lhe rendeu prêmios e reconhecimento por todo o país. No livro, ela recontava de forma pessoal e extremamente eloqüente descrições sobre princípios que regem a percepção humana. Segundo sua teoria, da soma do desejo intenso com a imaginação irrestrita e mais um terceiro elemento incógnito que ela denominou “Escuro”, resulta-se uma nova entidade sensorial implícita conhecida por muitos como “a 3ª visão”.
            Parecia incrível como alguém com aparentemente tão pouca especialização sobre o assunto conseguira compreender e explicitar tão bem um grande enigma da humanidade que é a harmonização plena dos sentidos e ‘extra-sentidos’.


            Dez anos após a publicação do livro, a renomada escritora Juliette Shadow foi presa. Veio a lume graças a um jovem e brilhante cientista uma nova fonte de iluminação artificial radiativa que ampliava consideravelmente a percepção visual do ser humano, permitindo que se enxergassem coisas que só podiam ser vistas sob a ausência total da luz tradicional.
            Com o auxílio dessa nova luz, constatou-se que dez anos antes, a renomada escritora, em seu primeiro e principal livro havia escrito num inédito sistema de escrita, até então invisível a olho nu um longo e detalhado relato onde confessava, autodenominando-se “O Escuro”, a autoria dos mais de cem assassinatos escabrosos na cidadezinha onde nascera.
            Os detalhes chocantes dos crimes, claramente descritos nas entrelinhas das páginas de seu livro levaram a polícia e a justiça a não hesitar em apontá-la terminantemente como culpada e condená-la a pena capital. Só não puderam explicar as garras e por isso, para muitos ela era uma bruxa, ou tinha mesmo algum pacto macabro com satã.
            Conta-se que no exato momento de sua execução, houve um súbito eclipse e naquela cidadezinha um violento terremoto gerou crateras que devoraram tudo.
            Hoje, apenas os turistas mais desavisados se atrevem a se aproximar daquelas ruínas após o fim do dia...


  

*(Pós-script)

       Quero sinceramente que o leitor acredite que “Maldição das Sombras” nasceu para ser um conto despretensioso; mas não o é. Não digo que  seja um bom conto, nem que culmine entre os melhores do livro, (o que necessariamente também não os fazem bons), mas é sem dúvida alguma, o grande diferencial, pois diversamente dos outros, sintetiza-se claramente numa revelação.
            A primeira vez que o escrevi achei-o volumoso e de duvidosa qualidade em seu final. Quando concluí a versão definitiva, estava com mais do que o dobro do tamanho. Além disso, consegui com algumas alterações no final, fazer, (ao menos em minha concepção), o conto evoluir, tanto que passei até a considerá-lo como um bom conto, dentro, é claro, dos meus padrões e das minhas experiências, que são geralmente os referenciais intransferíveis de cada um. No entanto, as dificuldades que intermediaram tal definitivo estágio foram inúmeras e enormes, levando-me inclusive a abominar o conto por vezes, o que certamente chegou até mesmo a ameaçar a sua existência. Dentre os meus denominados “projetos curtos”, “Maldição” foi um dos que mais se estendeu em razão de constantes bloqueios inspirativos, algo absolutamente comum na rotina dos escritores. Não sou um escritor no sentido profissional da palavra, mas gosto – curto, na linguagem sincera da juventude – escrever e escrevo.
            Tenho assim, já produzidos alguns textos, mas também e até muito mais, projetos idealizados e(ou) abandonados.
            A conclusão de “Maldição das Sombras” foi importante para mim, porque me fez enxergar meu próprio “Escuro”; a pouca determinação para seguir no que acredito. O conto, o livro, o universo eram para ser despretensiosos, mas como explicar a exultação diante de uma obra, de um projeto, de um sonho realizando-se? Em algum segmento de nossa vida o escuro nos acerca, pronto para nos fazer recuar, impor-nos limites. Jamais poderemos definitivamente vencê-lo, pois é parte de nós, mas sucessivas vitórias sobre ele certamente expandirão e muito nossa auto-estima, gerando luz e brilho e nos permitindo extrair o máximo de nosso potencial. Isto é sim o que a natureza quer.

“todos merecem o que têm...”

            Os contos esticam. Voltemos ao livro...


F.S.Sousa







XIII – ODI-BIL, O DEMÔNIO

Em tempo perdido, ao léu
capaz de irromper todo véu
no total limite do céu
houve clarão sem fim

O mais notável arlequim
plantado em pleno jardim
serviu do seu camarim
pela fome voraz impelido

Nato divino perdido
dos próprios seus impedido
por soberba desterrado e banido
como a voz que ecoa no deserto

Por sorte deparou-se por perto
portal de palácio aberto
tratados pelo nome certo
acolhem novo irmão

“Faça teu nosso chão,
tal qual riqueza e pão
toma nosso coração
a saciar tua fome”

Gratidão sem findar me consome
e eu, Odi-Bil, juro em meu nome
que o que, por ventura, vos tome
volver-vos hei sem medida

Servi-me por toda vida
vinde, fazei-me saída
sua utopia perdida
sedimentarei num instante







Conquistastes o ouro, o brilhante
a terra vos nutre constante
mas vosso prazer de amante
desfrutais verdadeiramente?

Não vos falo à mente
no amor sois só paciente
Oh, homem, eterno inocente
toda mulher te pertence

Ainda que assim jamais pense
de reles vontade, não vence
merecimento seu não convence
é de servil existência

Coube-lhe tal indulgência
dar-se de toda paciência
quis partilhar de ciência
por métodos da serpente vis

Soprou-lhe Deus o nariz?
Viu-Se nela, feliz?
Tornou-se sim meretriz
a mãe dos males do mundo

Empurrou-te, lançou-te ao fundo
de caos e dor por segundo
prostrando-te pelo chão imundo
por tamanha deusa sensual

Na perdição sem igual
eclodira de tamanho mal
a guerra, a discórdia abissal
que a tudo devasta, mas não lhe atinge

com arte tamanha que finge
tal força sobre tudo tinge
qual a argúcia e o mistério da esfinge
a tudo resiste e observa









Mas vê no olhar de Minerva
por mais que cingido com erva
inextirpável condição de serva
distante da supremacia

Deveras onde é feita alegria
na inacessível tela da poesia
ou no arrebatamento do que alicia
cabendo-te força, poder, autoridade?

“És certa, sábia entidade
Ceifemos das fêmeas vontade
Só da máscula necessidade
ocupar-se-á seu destino

Ousando qual desatino
entoar próprio seu hino
seu mestre há de ser assassino
e sua doutrina queimada

Mais nada de ser amada
de imagens lisonjeada
submetida apenas, sujeitada
ao homem, criação sublime

A todas tomemos sem crime
ciúme não nos desanime
por que cativar em regime
abdicando da plenitude?

Doravante, os que têm saúde
gozarão em essência da virtude
o mundo não mais ilude
com seu mascarado amor

Guarde o homem carícias a flor
e para a mulher o terror
e o relutar da vontade impor
o marca e de morte faz réu.”








Não houve tempo bastante
pra que s’erigisse o levante
e a metade do mundo importante
acolheu implacável grilhão

talhada no coração
despida de comiseração
entregue à devassidão
de toda espécie apossada

sua veste confeccionada
que não atravancasse a caçada
fosse facilmente tomada
a quem em momento a quisesse

e se de modo nenhum se pudesse
por sorte, por jura ou por prece
a morte por fim lhe acontece
e segue o giro do mundo

Aos poucos o caos profundo
volta a reinar e mais afundo
o homem, ganancioso imundo
quer pela espada a primazia

e tanta beleza sadia
nutre sua anomalia
de querer o sol do dia
e o fruto do conhecimento

Cada um quis um cento
cada balão quis mais vento
Haveria para tanto intento?
Sobrava a visão do mais forte

A terra encheu-se de morte
a vida foi prêmio de esporte
os homens jogavam sua sorte
quando caso fosse de disputa








O permanente da luta
final empecilho amputa
desfruta do mal pós-cicuta
o mel inebriante da conquista

Até que a plena fadiga desista
em que presa passiva não resista
consente que ainda exista
lançando os restos aos vilões

Deleitam-se os fanfarrões
homicidas, facínoras, ladrões
parvos, farrapos, anões
desfrutam de mesma delícia

Já que nem é caso de polícia
mas d’ambição vitalícia
que o julgo escondeu a malícia
por sombrio nome indistinto

Que deflorou tal instinto
livro pra maior labirinto
por vil ensejo faminto
que pecado nenhum supera

Vê de malícia severa
prostrar-se sem rumo ess’Era
desflorar-se sem primavera
pulsando paixão violenta

Por entre lente que a tudo aumenta
perdeu-se em peleja sangrenta
do mau instinto se contenta
além do sucumbir da dor

Não se houve pedido de amor
só súplicas, tomada e rancor
sob a força do despudor
o fulgor que se acerca do destino








Mas se tal é o vibrar assassino
qual raivoso ímpeto canino
ceifou o raiar feminino
vertido escravo, refém.

Custando a surgir alguém
amásio da causa do bem
valer-se das armas que tem
pinçando filetes de esperança

Avesso de tanta matança
e somente da própria semelhança
aprouve-se sedimentar a aliança
movida pelo amor à vida

Guiada por alma ferida
sanada pela vingança nutrida
tendo a força mor acolhida
provinda da inteligência

De paralela ciência
marginal de antros e penitência
a gênese de então violência
além dos domínios do mito

Arrastou demônio maldito
ao corpo próprio, aflito
descaracterizando o bonito
mas por poder alucinante.


















Lançou-se o mundo moderno
em derradeiro martírio eterno
tormento primaz do inferno
mulheres na forma de horrores

de extirpados temores
mais impávidos do que seus precursores
a quem guardam muito mais dores
que as que lhes foram concedidas

“Oh, senhoras destemidas,
eu que livro vossas vidas
de penas vis, tão descabidas
tomo o manto da vossa sina

e digo que a mais tenra menina
não há de faltar heroína
até que a carnificina
cesse jamais sem vingança

Não comporta doravante a bonança
se só quem a valer não descansa
serve bem à austera aliança
fazendo o meu vir por merecer

pois eu sou OJESED, o poder
somente vivo para vencer
e tal qual a mim deve ser
todos os quem escolhi

Da força vos ungi
do medo vos cingi
do ódio vos nutri
mais tenebroso do que vossa feição

Para não conhecerem o perdão
nem respirarem compaixão
nada que lhes embote a visão
do extermínio do inimigo








Já quanto a Odi, deixai comigo
que pra vós há de ser um perigo
se pra mim é ele, infame castigo
jamais ambos fomos sozinhos”

E tudo seguiu tais caminhos
plantados os joios daninhos
nasceu o futuro sob espinhos
sem sobrevivência aspirar

Viu o homem a mesa virar
deleite habitual de sugar
tornado pesadelo sem par
suplantou de existência o direito

e nada que pôde ser feito
deu pena, esperança ou jeito
tal qual arrancado do peito
restou o coração do universo

Por mais implacável, o reverso
da ambição do demônio perverso
com seu ébrio acólito submerso
fez a cada um derrotado

Sobrou-lhe ser exterminado
e vencedor realizado
viu-se só então transmutado
reconhecendo cruel realidade

Perdida qualquer humanidade
a pena valeria viver sem vontade?
Cumprida justiça fica vã a liberdade
Sem princípio que a emoção ativa

Abatida em tal pena aflitiva
foi simples desgostar de estar viva
na derradeira harmonia coletiva
plantou-se da Terra nas entranhas ardentes









No vácuo e dissabor conseqüentes
ainda pelejam valentes
os espíritos equivalentes
mas viram o naufragar da vitória

‘inda que de concedida glória
testemunhas vitais da história
compuseram vilmente a escória
e corromperam sem pagar a pena

Um é o instinto, o impulso que acena
cuja inata natureza dá de força plena
seu nome é Odi-Bil e sua dor é serena
desconhece extremos sua resistência

D’outro, Ojesed, está a virtude na paciência
ainda que seja vontade e poder em existência
eterniza-se ao renegar o pecado da urgência
prima arquitetando o mapa da conquista

Enfim, tão breve chega o desfecho pessimista
previsto, perpetrado em ambição racista
de vida tamanho desperdício idealista
para então fluírem com a perda da textura

Suplantada a harmonia, que floresce? Loucura!
Odi-Bil e Ojessed vêem-se sem figura
tomada pelo rigor da ambição mais dura
no vácuo de qualquer esperança lançada

Até que em dia, diante de mais nada
chocam-se e em uníssono compõem uma alvorada
sob qual toda alma nasce libertada
de qualquer natural cilada do inferno.

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