FABIANO SANTOS SOUSA
THE
INVISIBLE THING’S DIARY
(ou CRIMES SOB
SUSPEITA)
Volume II
“...porque
morrer, de vez em quando, é bom.”
F.S.SOUSA
SUMÁRIO
XIV – Não há
leis contra atropelamento de cachorros
XV – Gárgulas
XVI –
Priscila
XVII – O
Híbrido
Bibliografia
XIV – NÃO HÁ LEIS CONTRA
ATROPELAMENTO DE CACHORROS
Estavam já a
mais de duas horas atravessando a densa floresta e ele, certamente estava
odiando tudo aquilo. Há muito o tolo palavrório enaltecedor dos guias se
tornara inaudível para ele. Tudo o que seu pensamento fazia era amaldiçoar
aquela lama fria e pegajosa aos seus pés, que tornava cada passo árduo e
penoso, além do sol escaldante que fazia toda a sua pele arder como em brasa e
principalmente os malditos insetos. Das mais diversas formas e tamanhos,
pernilongos os rodeavam e atacavam como caças tentando abater King Kongs enfurecidos.
Vandersom
não era, nem nunca fora um naturalista. Analisando um pouco de sua vida,
notar-se-ia que passara até bem longe disso. Amava a cidade, com seu ar poluído
e seu trânsito caótico. Todavia, apaixonara-se por uma guia-turística
absolutamente alucinada pelo contato extremo com a natureza. Tanto que
aprendera o roteiro das mais diversas florestas, serras e demais trilhas
naturais e selvagens nos principais cantos do Brasil. Toda aquela determinação
e coragem do espírito aventureiro de Fátima o impressionaram. Mas isso fora há
quatorze anos. Com o tempo, chegou a pensar que ela se adaptaria melhor à
rotina do casamento, o que não aconteceu. Ela continuou a seguir seu fascínio
de se embrenhar pelas matas, por dias, semanas a fio. Ele, Vandersom, que
sempre sonhara em ser repórter urbano, teve que mudar os planos e tornou-se
fotógrafo para poder acompanhá-la em suas viagens constantes. Era isso ou
praticamente não compartilhar de sua presença durante todo o mês. Mas a rotina
louca e as expectativas conflitantes fatalmente levaram a relação ao declínio.
Amenizavam aquilo quando Fátima partia para mais uma “expedição” e Vandersom, desta feita, optava por não ir. Seria mais
ou menos o que os casais modernos costumam chamar de ‘dar um tempo’. No fundo, os dois achavam que um dia, não seria
mais possível que ela retornasse, pois o lugar de um dos dois já estaria
ocupado, mas enquanto isso não acontecia, ela voltava e os dois se alegravam
muito com o reencontro como se nada houvesse acontecido e faziam as pazes, o
que geralmente culminava com uma longa e maravilhosa noite de amor.
Isso
até o dia seguinte, quando todas as suas diferenças tornavam a raiar tanto
quanto o sol. Ainda assim, por incrível que pareça, Vandersom nunca havia
traído a esposa durante suas ausências. Por um capricho do destino, isto se
daria justamente numa viagem em que ele a acompanhara.
Fátima
fora contratada como guia dentro de um projeto que vinha inovando e se
popularizando por contribuir para a conscientização das pessoas sobre a
importância das principais reservas florestais indígenas do Brasil. Tratava-se
de um intercâmbio planejado entre turistas e nativos, viabilizado por parcerias
das secretarias sociais e culturais do país com forças do poder privado. Os
guias conduziam pequenos grupos de turistas que junto com intérpretes e
supervisores era convidado pelos próprios índios a conhecerem suas aldeias e
seus costumes.
Mais
do que os costumes indígenas, nesta primeira viagem Vandersom conheceu Icoracy, ou simplesmente Cora, uma linda índia adolescente que se
insinuara para ele desde o primeiro momento em que pisara na aldeia. Seria
realmente muito difícil resistir aos seus encantos durante os quinze dias em
que permaneceram como hóspedes na aldeia. Certa tarde, enquanto ele passeava
sozinho na floresta, ela sorrateiramente o seguira e quando se encontraram,
fora inevitável deixarem seus desejos extravasarem. Embora sozinhos fossem
incapazes de se compreenderem por palavras, na linguagem universal do amor,
certamente tal empecilho desaparecera.
A
menina era linda: de semblante angelical e ao mesmo tempo insinuador e um corpo
divino de fêmea selvagem planamente desenvolvida; pele macia e morena, quase
dourada, cabelos negros como a mais alta noite sem estrelas e as curvas mais
voluptuosas sob ínfimos trajes que quase tudo revelavam, o que servia apenas
para atiçar de forma incontrolável a imaginação, a curiosidade e o desejo.
Logicamente,
Fátima não soube de nada a respeito de Cora. E nem ninguém da tribo. A índia
estava prometida ao filho mais velho do cacique, a quem certamente não
agradaria tal revelação.
Assim,
o grupo partiu tranquilamente de volta para a cidade, agradecido pela
hospitalidade e sob as bênçãos de todas as autoridades da tribo.
Antes
disso, Vandersom esteve mais uma vez com Cora. A danadinha dopara Fátima
durante o chá da tarde fazendo-a mergulhar a noite num sono profundo e
imperturbável; assim, na própria oca cedida ao casal, Vandersom teve sua noite
com a indiazinha sob o ressonar indiferente da esposa.
Cora parecia
ser um pouco mais jovem do que o índio a quem fora prometida, mas certamente,
perto dela ele deveria ainda ter muito que aprender.
Enfim, para
Vandersom tudo aquilo parecera estar prestes a se tornar memórias apenas, desde
que deixaram a aldeia para voltarem às suas rotinas civilizadas de conflitos
sentimentais urbanos.
Neste novo
retorno, porém, não houve o período de calmaria que tradicionalmente costumava
repousar sobre a relação dos dois após o estresse que marcava as discussões
sobre a real importância e necessidade da última viagem. E nesse ponto, Fátima
sempre levava vantagem, pois as viagens já haviam sido feitas e não se podia
mais mudar isso. Vandersom nunca conseguira fazê-la encarar seriamente as
discussões sobre importância e necessidade das viagens antes que a decisão
sobre se lançar na aventura já tivesse sido tomada. Mas desta vez pareceu que
iria realmente ter sua chance, (e isso explicava a ausência do ‘período-calmaria’). Conhecia bem os
modos da esposa e sabia pelas suas reações que mal havia voltado à civilização
e já se preparava para ingressar numa nova aventura expedição maluca, talvez
cruzando o rio Purus, ou escalando a Serra do Cachimbo. Às vezes poderia
matá-la...
●
- O que houve? – ela disse, estranhando
sua reação, a qual parecera acreditar estar realmente preparada – Perdeu a fala?
Após uma pausa
contemplativa e esforçando-se para se recompor, Vandersom respondeu:
- Fiquei... ... surpreso; só isso.
- Pareceu mais... ...motivado – ela
ironizou.
- Não diga bobagens, Fátima. O que me
motivaria a desejar, ainda que por um segundo, a voltar para aquele fim de
mundo?
- Talvez a paz e a harmonia, ainda que tão
brevemente experimentada.
- Brevemente para você, a quem o homem
moderno deveria voltar às cavernas. Como posso considerar breves duas semanas
rodeado de bichos fedorentos, insetos famintos pelo meu sangue e pessoas selvagens,
aparentemente hospitaleiras, mas que podem, a qualquer momento, se ofender com
alguma palavra ou gesto involuntário meu, podendo até conforme seus costumes e
lendas, absolutamente distantes do meu conhecimento, servirem-me num banquete
de lua cheia?
- Não seja dramático e muito menos injusto,
Vander. Ainda que selvagens como você diz, eles nos trataram com muito mais
sociabilidade do que nossos próprios pseudo-amigos da alta roda.
- Pois bem, que seja, mas isso ainda não me
convence a trocar meu quarto com ar-condicionado e DVD por uma oca úmida e
embolorada.
- Você não tem que ir se não quiser. Estou
dizendo que eu vou. É o meu trabalho, Vandersom.
- Sim, claro, conheço esse discurso. Quem
vamos levar desta vez? Mais alguns gringos excêntricos loucos para espalharem
para o mundo que todos os cidadãos brasileiros são nativos comedores de gente?
- Nada disso. É um projeto muito mais sério.
Guiaremos um grupo de pesquisadores que está estudando os incríveis processos
terapêuticos baseados na medicina natural e técnicas de xamanismo a que se
valem aqueles índios. A fama de alguns milagres de seus pajés ao longo dos anos
atravessou a floresta e chegou à civilização.
- O único milagre que os vi fazerem foi o de
dormirem pelados e não acordarem abarrotados de erupções cutâneas por causa dos
pernilongos.
- Não importa o que você pensa, Vander. Eles
acreditam tanto que pagarão para que os levemos até a fonte dos seus estudos.
- E o que o governo acha disso? Você sabe
como eles gostam de se meter nestas integrações que envolvem brancos e índios,
ainda mais quando o cunho é científico ou cultural e não apenas uma inocente e
lucrativa diversão para turistas.
- É um estudo muito bem organizado, também,
com total cobertura e supervisão do IBAMA e outros órgãos do governo. Há muito
mais gente interessada na magia e religião daquela tribo do que você imagina.
- E quanto a você, meu bem, acredita mesmo
em tudo isso?
Sempre, no
ponto em que ele a chamava de “meu bem”,
as tensões impetuosas da discussão já estavam totalmente aplacadas. Estava
claramente baixando a guarda e era a hora dela fazer o mesmo.
- Sou católica, você sabe, Van; mas respeito
muito a devoção dos outros e é inegável que a harmonização que os índios
partilham com a floresta é tão forte que realmente parece ter algum caráter
divino.
- Você sabe exatamente o que esses
pesquisadores estão querendo descobrir?
- Os índios chamam de Espíritos da Floresta. Ouvi, inclusive, boatos de que há alguns
infiltrados na própria aldeia.
- Eu também ouvi algo sobre demônios e
espíritos noturnos, no pouco que consegui compreender das conversas dos índios
com turistas e instrutores, mas achei que fossem, e certamente ainda acho, um
monte de baboseira supersticiosa.
- Talvez tenhamos então a chance de conhecer
a verdade.
- Mais uma vez, nada do que eu disser a fará
desistir dessa viagem, não é?
- Não sei. Preferiria que você dissesse que
me apoiará, mesmo que não queira ir comigo.
- Mas é claro que eu lhe apoiarei. E quanto
a não ir com você, isto nem passa pela minha cabeça. Só que desta vez pretendo
levar estoque para um ano de repelentes.
Fizeram amor naquela noite.
Impossível negar que em determinados
instantes fantasiou que estava com Cora...
●
Duas horas de
caminhada. Esta era a distância máxima permitida pelos índios para que seus
visitantes deixassem seus veículos motorizados ao se dirigirem para aldeia.
Tudo – diziam – para não porem em risco nem perturbarem a tranqüilidade dos
animais que rodeavam a tribo. Assim, para serem aceitos e bem acolhidos tinham
que deixar os carros em uma planície e seguir todo esse percurso atravessando a
pé a densa floresta.
Vandersom, no
entanto, desta vez não iria aceitar isso. Muito antes de chegarem à aldeia fora
tomado pelo receio de reencontrar Cora. Era muito difícil saber qual seria a
reação e a atitude da índia ao rever seu primeiro homem. Sim, porque embora ela
provavelmente já sentisse seu corpo arder no fogo da paixão antes mesmo de
conhecer Vandersom, ela era virgem quando estivera com ele da primeira vez, o
que aumentava a suspeita sobre ela poder estar, (ou achar estar), apaixonada
por seu príncipe branco da cidade. E uma vez apaixonada, aquela simples
excursão poderia propiciar a Vandersom sérias complicações.
Não a
encontrara, todavia, logo que chegaram à tribo. Ela e seu futuro esposo
cumpriam uma missão de paz em uma tribo vizinha, estando por chegar a qualquer
momento.
Para
Vandersom, claro que fora um alívio. Pudera se lançar na floresta sobre o
pretexto de passear sem correr o risco de ter a garota o seguindo e ameaçando
fazer cena pública se ele não aceitasse fugir com ela, podendo ser pego ainda
por algum ‘curumim’ bisbilhoteiro e
linguarudo pronto pra bradar o escândalo pelos quatro ventos da floresta. No
entanto o alívio passou à medida que concluiu que o reencontro com Cora seria
inevitável e a forma com que tudo iria ocorrer dependeria exclusivamente da
reação que a índia teria.
Para tentar
livrar os pensamentos de tais preocupações, lançara-se na mata para fazer algo
que desde a excursão anterior lhe ocorrera. Os guias haviam marcado com fitas e
sinais todo o caminho que haviam feito para facilitar caso alguém se perdesse,
ou precisasse voltar sozinho. Assim, foi fácil para Vandersom localizar o local
onde ficaram os carros, após claro, um bom tempo de caminhada. Levou assim o
carro até um ponto muito mais próximo da aldeia e procurou ocultá-lo bem. Se a
nativa fizesse qualquer menção de tornar pública a aventura dos dois, ele daria
um jeito de apanhar Fátima e fugir dali antes mesmo que ela abrisse o bico.
Durante o percurso
de volta, (muito mais curto a ser cumprido a pé dessa vez), passou subitamente
a ouvir ruídos e ver vultos rápidos movendo-se pela mata. A princípio achou que
fosse a índia, chamando-a inclusive. Não houve resposta; apenas ruídos,
arbustos e moitas que se mexiam. Resolveu continuar a andar, esperando
conseguir chegar à aldeia sem ser devorado por alguma fera.
A coisa
continuava a lhe seguir e parava exatamente quando ele também o fazia.
Certamente já não se preocupava tanto em não ter sua presença percebida, embora
continuasse ocultando sua figura na mata densa.
Vandersom se
lembrou de que tinha uma arma no porta-luvas do carro, mas seria tolice tentar
voltar para apanhá-la. Se aquilo lhe quisesse fazer mal, certamente não lhe
daria tamanha chance.
De súbito, até
meio sem saber o porquê, Vandersom começou a correr, numa debandada impetuosa
pela mata. Em determinado ponto, saiu propositadamente da trilha. Como previu,
aquilo pareceu atiçar e ao mesmo tempo desorientar seu provável algoz, que, sem
poder prever a direção dos movimentos do homem em fuga, viu-se obrigado a
abandonar seu processo estratégico de o seguir camuflado, passando a
persegui-lo diretamente dentro de seu campo de visão.
Assim que
pôde, Vandersom olhou para trás e viu o que lhe perseguia: era realmente um
animal; pra dizer a verdade, não muito assustador: de pequeno porte,
assemelhava-se a um cachorro. Seu pêlo, que conservava algumas mechas
acinzentadas, fora avermelhado como fogo, provavelmente por alguma espécie de
pigmento artificial. Impossível não o reconhecer: pertencia aos índios Aquanos, anfitriões de Vandersom, e era
considerado por todos um animal sagrado. Vandersom nunca o vira, porém, fora
dos limites da tribo. Teria fugido? Estaria perdido? Isto explicaria o porquê
de está-lo seguindo, mas como um animal selvagem se perderia em sua própria
floresta?
Os Aquanos tinham alguns animais
considerados por eles como sagrados, a quem prestavam homenagens com
esculturas, pinturas rudimentares e até determinados cultos que para os visitantes
brancos sempre pareciam incompreensíveis. E justamente aquele cachorro parecia
ser o mais importante deles. Talvez achassem que fossem os tais ‘espíritos da floresta’ sobre os quais
lhe falara Fátima.
Por hora isso
não importava. Para Vander, aquele era apenas um pequeno vira-lata selvagem que
o fizera correr assustado por boa parte da floresta. Já estava mais do que na
hora de dar um basta àquilo.
Provavelmente
nem precisaria se esforçar muito.
Concentrando
um pouco a visão, localizou facilmente um galho de árvore de tamanho médio que
serviria certamente para intimidar o valentão de quatro patas. E deu certo;
quando o bicho se deu conta de que sua caça estava disposta a enfrentá-lo,
pareceu perder boa parte da motivação. Precipitou-se a ladrar por alguns
instantes, mas logo silenciou por completo. Ficou apenas, a uma distância
segura, observando Vandersom com um olhar reprovativo. Desistira por completo
de qualquer idéia de lançar-se numa investida.
- O que deu em você, garoto? Seus donos não
vão gostar de saber que você costuma perseguir as visitas.
O cachorro
voltou a latir como se discursasse a alguém plenamente capaz de compreendê-lo.
- Não sei qual problema você pode ter
comigo, mas é melhor deixarmos de lado e voltarmos para a aldeia. Não quero que
seus amigos achem que seqüestrei o deus deles.
O animal
pareceu compreender a mensagem e curvou a cabeça, como que se dispondo a
aceitar a trégua com o inimigo.
- Espero que você saiba o caminho de volta.
Nem imagino o quanto nos distanciamos da trilha.
De fato, o
cachorro conhecia bem o caminho de volta e os dois retornaram sem problemas à
aldeia.
Logo na
entrada, Vandersom notou uma tranqüilidade acima da costumeira. Certamente, a
índia Cora e seu noivo já deveriam estar de volta e ela, provavelmente já
ciente da presença do homem branco com quem tivera recentemente uma relação um
pouco mais estreita do que o restante da tribo. Por um instante
Vandersom chegou a pensar que ela agiria como se nada houvesse e tudo
decorreria de forma tranqüila, podendo até ocasionalmente os dois continuarem a
se encontrar a sós, embora assim que aceitou viajar, Vandersom tivesse
prometido a si mesmo que evitaria ao máximo por em risco seu casamento, o que
incluía principalmente ter mais qualquer coisa com a indiazinha. Sabia, porém
que não seria nada fácil resistir. Todavia, um pouco depois de penetrar no
silêncio sinistro da aldeia sentiu suas costas serem cutucadas pela pontiaguda
extremidade de uma flecha e soube que toda aquela idéia de tranqüilidade era a
mais pura ilusão e que a coisa iria mesmo esquentar.
Foi conduzido
de forma pouco polida pelo guarda até uma oca no centro da aldeia. Lá estavam
os demais integrantes daquela expedição agrupados e cercados por guardas e
autoridades da tribo. Logo que o viram, os excursionistas começaram a vociferar
com ele, exigindo explicações.
Berrando
alguma palavra em seu dialeto, o chefe da tribo coibiu a algazarra que se
principiava.
Embora já
praticamente certo sobre a resposta, Vandersom se viu obrigado a questionar o
intérprete sobre os acontecimentos, já que pouco entendia do palavrório dos
nativos.
- O que está acontecendo?
- Achei que você fosse o mais indicado para
nos dizer, Sr. Vandersom – respondeu o intérprete, que se chamava Lúcio “de alguma coisa”.
Fátima tentou
esclarecê-lo do pouco que sabiam. Tinha um olhar perdido e atônito. Não fazia
idéia do que o seu marido estava sendo acusado e embora não estivesse certa
quanto a enxergá-lo como inocente ou não, até que o próprio apresentasse sua
versão dos fatos, certamente não estava esperando um caso de adultério entre
seu marido e uma índia de dezesseis anos.
- Eles dizem que você ofendeu a honra e a
hospitalidade deles, Van. O que você fez?
Um dos índios
começou a gritar descontroladamente com Vandersom. Após algumas palavras que
pareceram reprovativas do cacique ele se conteve.
- Ah, então foi isso – exclamou Lúcio,
que após ouvir as palavras do que era um dos irmãos da índia Cora, começava a
compreender tudo.
Para os
demais, a verdade pareceu também começar a vir à tona, não por palavras, mas
sim pela visão da própria Cora entrando no recinto arrastada pelos braços por
seus outros irmãos. Logo em seguida entrou seu futuro marido e assim como o dos
demais índios, seu rosto perdera qualquer feição de simpatia que já pudesse vir
a ter tido para com os brancos visitantes. Ele tinha sim um reluzente punhal na
cintura e as atenções, reveladas por um olhar que era de puro ódio, claramente
voltadas para Vandersom...
●
- Você
trepou com ela, seu desgraçado! – vociferou Fátima, tentando avançar
para cima de Vandersom, mas sendo intimidada pelas lanças dos soldados a
permanecer no mesmo lugar.
- Tenha calma, Fátima. Nós vamos conversar
melhor e...
- Não venha me pedir calma, seu cretino!
Como pôde fazer isso comigo?
- Escute, meu bem. É que...
- Não ouse me chamar de “meu bem”!
- Está bem. Só quero dizer que este não é o
melhor momento para conversarmos, ok?
- Vá se foder, cretino!
Os índios
recomeçaram um novo colóquio a que os brancos, com exceção do intérprete, não
podiam compreender claramente; mas, para todos começava a ficar mais do que
claro que por não controlar sua libido, além de arranjar grandes complicações
em seu casamento, Vandersom colocara a vida de todos em apuros. Os índios já
haviam dado provas de que sabiam ser amistosos, gentis e hospitaleiros, mas
viviam rigidamente sob suas leis as quais o homem branco acabara
deliberadamente de aviltar. Deixaram de ser visitantes para eles e se tornaram
intrusos.
Subitamente, o
noivo ofendido desembainhou o punhal e com extrema agilidade saltou para perto
de Vandersom, encostando a lâmina em sua garganta. Este, que permanecia tendo
os braços fortemente seguros pro dois guardas, apenas fechou fortemente os
olhos, esperando pelo suave e letal talho em sua garganta tênue. No entanto,
após ouvir algumas palavras austeras do cacique, o jovem índio, ainda que
visivelmente contrariado, tornou a guardar a arma na cintura.
Um outro índio
cutucou as costas do intérprete com a lança, dizendo-lhe algumas palavras. Logo
após, ele falou aos demais:
- Eles querem que a partir de agora eu
traduza para vocês tudo o que estão dizendo.
O cacique
lançou um último olhar reprovativo para Cora e depois lhe virou as costas.
Começou então a se dirigir aos prisioneiros. Paralelamente, o intérprete
começou a traduzir o que ele dizia:
“A tribo lamenta profundamente o que se
passou debaixo de sua guarda, mas temos plena consciência de que nem todos
foram responsáveis pelo ultraje as nossas tradições. Infelizmente todos deverão
sofrer com punições para servirem de exemplo contra futuras ousadias
semelhantes da parte dos homens brancos. Obviamente, o grau de punição entre os
culpados diretos e os demais será diferente.”
- Não há culpados indiretos – protestou
Vandersom – eu fui o único causador de
tudo.
Lúcio repassou
ao cacique estas exatas palavras ditas pelo acusado, mas isso não pareceu
alterar em nada a postura do velho índio. O cacique voltou a falar, no que ia
sendo simultaneamente traduzido pelo intérprete dos brancos.
“Embora tenha sido você o disseminador da
afronta, a culpa maior cabe também a sua esposa por ela não o ajudar a
controlar seus impulsos; por isso, também deverá ser rigorosamente punida
dentro das leis da tribo.”
- Isso é loucura! – inconformou-se
Vandersom.
- Parece que terei mais a agradecer ao meu
marido do que o belo par de chifres. – a moça ironizou.
- Diga-lhe, Lúcio, que aceitarei qualquer
castigo desde que eles deixem os demais partirem em paz.
A resposta do
líder da tribo à condição que o prisioneiro tentara impor não foi certamente das
mais animadoras.
- Infelizmente, ele diz que você não está em
condições de exigir qualquer coisa.
- Isso é um absurdo! Ele não pode fazer
isso!
Sem dar
qualquer atenção aos protestos e lamentações, o cacique continuou a falar.
“A primeira das punições, e é a que será
comum a todos é a de que todos deverão permanecer na aldeia por tempo
indeterminado e que deverá, no mínimo, superar o período que os homens brancos
costumam denominar de quatro estações,
ou um ano, para que toda a situação
se estabilize” – O quê?! Não posso acreditar nisso! (estas últimas pareciam
ser palavras de inconformismo do próprio Lúcio) – Nem fui eu que comi a índia e vou ter que ficar um ano enjaulado nesta
selva?
- Feche a boca para seus malditos
comentários, Lúcio, e continue traduzindo – exigiu Fátima.
- Certo. – “Continuarão a desfrutar do mesmo tratamento cortês que os Aquanos
costumam a destinar aos seus hóspedes, mas estão todos terminantemente
proibidos de deixar a aldeia, sob pena de serem presos e mesmo mortos...
- Quanto à mulher do traidor – continuou
– se tornará escrava do guerreiro
ultrajado, sendo obrigada a satisfazer seus íntimos desejos em todas as
circunstâncias.
- O que?! – esbravejou Fátima,
dirigindo-se ao cacique da tribo – Isso é
absurdo! Que espécie de bárbaros são vocês?
O velho índio
pareceu não gostar dos modos da mulher branca e gritou, exigindo silêncio. Se
continuassem a interromper sua sentença ela poderia se tornar bem menos amena.
“Enfim, o branco
traidor que se aproveitou de nossa confiança e hospitalidade para seduzir e
desvirtuar uma integrante comprometida em nossa tribo, afrontando
deliberadamente nossas tradições será obrigado a honrá-la, tomando-a por
esposa.”
Vandersom
ouviu sua sentença sem se alterar muito, pois era realmente a espécie de punição
que parecia mais evidente. E de certa forma, não havia como censurá-los por
isso já que, apesar de viverem em pleno século XXI, onde a idéia de ser forçado
a se casar apenas devido a uma transa sem maiores conseqüências já começa a soar absurdamente démodé, há
ainda pelo mundo grupos, tribos, famílias que mantinham tais tradições; tribos
como aquela, por exemplo, cuja dissipação plena começava justamente com tal
tipo de intrusão dos brancos.
Por
outro lado, passar um tempo dividindo a mesma rede com a jovem e belíssima
índia Cora não era o que se poderia chamar de punição aterrorizante. Quanto a
Fátima, assim que as coisas esfriassem, poderiam fugir de volta para a cidade,
onde os índios não se atreveriam a persegui-los, pois sabiam que lá de nada valiam
suas tradições. E se Fátima um dia lhe pudesse perdoar, (o que seria sem dúvida
a parte mais difícil), os dois poderiam reconstruir seu casamento. Era horrível
imaginar sua esposa tendo, por sua culpa, que se submeter sexualmente contra a
vontade a um desconhecido, mas até nisto eles poderiam dar um jeito, se ela
concordasse; afinal, o jovem poderia sofrer um acidente... Era uma atitude
terrivelmente drástica, mas que pela esposa, Vandersom não relutaria em
assumir.
Infelizmente
a punição ainda não havia sido totalmente anunciada e absolutamente não seria
tão simples.
“Esta punição – voltava o intérprete a
fazer a tradução do que o cacique dizia – é
tipicamente aplicada no caso da índia tomada pelo branco sem a benção da tribo
estar livre de qualquer comprometimento. Como, todavia, ela já estava prometida
ao guerreiro Inayê, por sinal, filho
do cacique e futuro chefe da tribo, os dois deverão lutar até a morte para
saber quem a tomará por esposa.”
Sem
dúvida, fora para Vandersom muito cedo para crer que seu pescoço estava a
salvo.
Lembrou-se
do furgão, oculto na floresta, bem mais próximo do que os índios imaginavam e
teve um único pensamento a luzir em sua mente: fugir...
À
noite, os prisioneiros voltaram para suas cabanas tradicionais, embora agora
sob vigilância. Somente Vandersom foi confinado numa espécie de “oca-prisão”, onde permaneceria também
sob forte vigília de dois guardas armados com arcos, flechas, facões e
zarabatanas. O duelo de vida ou morte entre ele e o maior guerreiro da tribo
pela posse conjugal da índia Cora dar-se-ia na tarde seguinte e por mais que
estudasse, Vandersom não conseguia vislumbrar um modo concreto de escapar em
tão pouco tempo. E certamente sabia que se entrasse na luta contra tão hábil e
experiente guerreiro deveria estar morto talvez antes mesmo que se apercebesse.
Do
lado de fora, ouviu um certo murmúrio dos guardas que até ali tinha estado a
conversar normalmente em sua língua, despreocupados por saberem que o
prisioneiro jamais teria coragem de tentar escapar, tendo que passar por eles.
Um
instante de silêncio após o murmúrio e tudo voltou ao normal, com os dois
conversando vez por outra, dando risadas até não muito discretas, talvez no
intuito de provocar o prisioneiro.
Vandersom
sabia que dificilmente conseguiria dormir naquela que poderia estar sendo sua
última noite. Ainda assim, esforçou-se para ignorar as provocações dos guardas
e fechou os olhos. Provavelmente adormeceu, pois quando os abriu, tudo era
silêncio absoluto, só quebrado por um próximo e intermitente piado de coruja.
“Será que eles adormeceram?”- pensou,
vendo se acender uma chama de esperança.
Pôs-se
cuidadosamente de pé e procurou caminhar quase sem respirar até a entrada da
cabana. Espiou por entre as cortinas de palha e os dois realmente jaziam como
que desmaiados no chão da entrada. Seu coração, que já estava aos saltos,
disparou de vez fazendo-o quase pensar que não escaparia porque teria um troço.
Passou pelos corpos como se caminhasse sobre nuvens e começou lentamente a se
dirigir à floresta, controlando-se para não debandar como louco enquanto ainda
estivesse na linha de visão de seus malfadados vigias. Era difícil compreender
como puderam os índios cometer tamanha displicência, mas não era hora para
questionar e sim aproveitar ao máximo a oportunidade.
Há alguns
passos de cruzar os limites da aldeia, um vulto saltou agilmente diante dele.
Era Cora e mais uma vez a jovem índia o surpreendeu.
- Não fugir! Loucura!
Vandersom a
fitou, por um instante, espantado.
- Como você aprendeu a falar minha língua?
- Treinar muito quando você partir. Cora
saber você voltar.
- E o que você está fazendo aqui? Vou estar
ainda mais frito se nos pegarem juntos.
- Vir salvar você. Dar chá de ervas do sono
para vigias.
- Então foi isso... Você é mesmo louca,
menina. Mesmo assim, obrigado. Mas agora eu preciso ir para buscar ajuda para
livrar os demais antes que sua furiosa tribo queira se vingar deles também.
- Não tentar fugir. Ser muito perigoso.
Tribo ter muitos olhos na floresta. Impossível escapar.
- E o que você sugere que eu faça? Por que
pôs os dois brucutus para dormir se não queria que eu fugisse?
Ela levou as
mãos à parte superior da diminuta peça feita de pele de animal que usava como
uma espécie de biquíni, bem entre os vultosos seios e apanhou algo; um
pequenino pacotinho feito também com pele. De dentro dele tirou um toquinho de
galho espinhoso e com cuidado estendeu para Vandersom.
- Tudo que precisar fazer ser arranhar Inayê
com espinho desse galho antes de começar luta.
Vandersom
começou a compreender tudo e cada vez mais se admirava da coragem e esperteza
da indiazinha.
- E o que vai acontecer com ele?
- Nada. Só vai ficar bem bocó.
- Muito bocó? – alegrou-se Vandersom.
- Sim – respondeu a índia, imitando os
trejeitos de um autêntico retardado – muuuito
bocó!
Tentando
conter a euforia, Vandersom ainda procurou argumentar:
- Não sei. Pode não dar certo. E se ele me
matar antes mesmo que eu me aproxime?
- Não vale! Regra ser luta corpo-a-corpo.
- E se esse negócio não funcionar?
- Cora ser filha de pajé. Conhecer como
ninguém as ervas e as plantas. Se fizer tudo certo, um pouco depois de começar
luta, guerreiro Inayê ficar fraco e molenga.
- E depois que eu vencer, o que acontecerá?
- Poderá ficar com Cora e também com mulher
branca.
- Fátima? Rá, rá. Ela jamais se sujeitaria a
isso.
- Ela não ter escolha.
Talvez a índia
tivesse razão. Além do mais, fugir loucamente à noite pela floresta parecia não
ser uma excelente opção, principalmente por colocar em risco a vida dos outros,
de sua esposa inclusive.
- Muito bem, caboclinha. Vou fazer o que
você diz e tomara que esteja certa.
- Sim. E vai viver com Cora pra sempre –
respondeu ela, com a animação de quem já tinha tudo planejado.
- Só mais uma coisa. Caso eu realmente vença
o tal duelo, vou mesmo ter que matar o filho do cacique?
- Poder deixar viver, mas ele se tornar
escravo e sempre lhe dever favor da vida.
- Bem, isso é melhor do que ter que
degolá-lo.
- Agora voltar cabana. Efeito de chá-do-sono
em guardas por passar.
Ele se
aproximou da índia e a beijou suavemente na lateral da face.
- Obrigado!
Ela
abruptamente lhe agarrou o rosto e lhe tascou um vigoroso beijo de língua.
●
Quando
despertaram, ainda que atabalhoados, os guardas não puderam se dar conta do que
havia acontecido. Assim, Vandersom tinha pronta e claramente definida a
estratégia para a luta e a vitória sobre o guerreiro, o filho mais velho do
cacique, no dia seguinte.
●
Toda tribo
amanheceu em festa. Havia muita música e dança sob o rufar dos batuques e
outros instrumentos indígenas. A tribo celebrava o vigor de suas raízes.
Os
prisioneiros estavam assustados. Vandersom também estava, mas em menor grau.
Tinha total convicção de que não iria morrer naquele combate e embora o
guerreiro tivesse a fama de ser um lutador imbatível, naquela tarde seria
vergonhosamente derrotado pelo valente homem branco, contando é claro que o tal
‘espinho bocolizador’ fizesse sua
parte.
Após a
refeição, foi concedido a Vandersom o direito de conversar com Fátima antes do
duelo. Ela estava furiosa, mas também parecia bastante assustada. Ainda assim,
foi ela quem falou primeiro:
- Como pode fazer isso com a gente, Van?
Vandersom teve
que fazer um grande esforço para encará-la. Se pudesse, evitaria aquela
conversa até que estivessem longe dali, ou pelo menos até que aquele duelo
insano estivesse terminado, mas ele próprio reconhecia que era preciso.
- Não posso pedir que me perdoe, meu bem.
Apenas posso dizer que sinto muito.
- Sim, você sente muito, mas agora ambos
vamos morrer; ou você acha que eu vou me sujeitar a ser perpetuamente violada
pelo selvagem que vai assassinar a sangue frio o meu marido?
- E não vai?
- Não. Teriam todo o meu apoio se apenas o
obrigassem a se casar com a índia e o mantivessem prisioneiro aqui para sempre.
Até lhe poderiam dar uma pequena sova segundo os seus costumes, mas eu jamais
desejaria a sua morte, Van. E daria a minha vida para que o deixassem ir porque
sei que no fundo, é por minha culpa que você está aqui.
Vandersom se
aproximou dela, desejando tomá-la nos braços, cobri-la de beijos e contar-lhe
tudo sobre o seu plano, inclusive sobre a chance de voltarem a ficar para
sempre juntos, caso ela o perdoasse, mesmo que por algum tempo ele tivesse de
manter um casamento de fachada com a filha do pajé. No entanto, chegando perto
dela, apenas permaneceu fitando-a, desistindo de lhe contar qualquer coisa.
Tudo estaria perdido, caso os índios desconfiassem de suas reações. Ninguém,
nem mesmo Fátima, pelo menos por enquanto, poderia saber de nada.
Como ele
apenas permaneceu a olhá-la sem nada dizer, Fátima se esquivou, voltando a se
distanciar dele alguns passos. Quando falou novamente, tinha a voz muito mais
fria e controlada.
- Infelizmente não há nada que eu possa
fazer para ajudá-lo agora, Vandersom. E nem sequer poderei dizer que lhe
perdôo, mesmo que seja para lhe atender uma última vontade.
- Certo – conformou-se ele – eu entendo.
Ela lhe lançou
um último olhar aonde novamente ele pôde reconhecer todo o amor que ambos
sentiam e deu-lhe as costas, rumando para a saída. Vander a reteve com uma
última consideração:
- Eu sei que você nem cogitou tal
possibilidade, mas e se eu vencer a luta?
Ela desdenhou
imediatamente:
- Impossível. A fama do índio com quem vai lutar faria os velhos Arnold e Silvéster parecerem Scooby-Doo e Salsicha.
Após uma
pequena reflexão ela continuou:
- Mas, se de alguma forma você acredita que
pode vencer, não pense o mesmo quanto a nós. Infelizmente esta batalha está
perdida para sempre.
Ela parou
ainda uma vez bem rente a cortina de saída.
- Boa Sorte.
E se foi.
●
Conduzido
pelos guardas até o centro da aldeia, onde os índios haviam improvisado uma
arena, Vandersom começou a ficar em dúvida quanto a sua sorte naquele combate.
Era, no entanto, tarde demais para tentar qualquer outra coisa, (a não ser
talvez quanto a rezar, mas encararia tal prática como uma hipocrisia sem fim,
já que nunca cogitara em algum dia precisar de Deus para resolver seus
problemas). Ainda assim, prometeu em silêncio repensar alguns de seus conceitos
caso tudo corresse bem.
A maioria dos
que estavam ali para assistir lhe lançava um olhar que parecia conter um misto
de satisfação e pena, se é que é possível conceber tal coisa. Todavia, assim
que avistou Cora, seus olhos se
encontraram e imediatamente o olhar dela o tranqüilizou. Era uma garota
excepcional, com a delicadeza e a ternura de uma menina e a coragem e sedução
de uma mulher. Não fosse por Fátima, Vandersom certamente teria prazer de abrir
mão de sua vida na civilização para viver com ela na floresta. No entanto, estava
decidido: mesmo após a vitória, não se casaria com Cora. Daria um jeito de fugir levando Fátima consigo, mesmo que
tivesse que a arrastar até o furgão.
Seu oponente
já o esperava no local do combate. Em torno da arena, a platéia se aglomerava,
composta por vários índios e também pelos prisioneiros brancos que deveriam
testemunhar a luta, como um sinal de alerta para que não tornassem a cometer os
insultos ou ousadias contra os costumes e tradições nativas.
Ao chegar
próximo da área da luta, Vandersom começou a protestar, tentando demonstrar-se
inconformado com aquela situação. Era, na verdade, parte da encenação para que
sua possível vitória não despertasse suspeitas nos índios.
Chegando enfim
diante do adversário, aquietou-se. Olhando nos olhos do garoto, viu que ele
realmente lhe odiava e que não relutaria mesmo em lhe matar caso tivesse
chance.
O medo de que
tudo desse errado voltou a afligir Vandersom. O jovem índio até que era bonito.
E se a índia tivesse se arrependido de ter traído o noivo e quisesse agora
apenas o ajudar a se vingar, inventando para ele, Vandersom, toda aquela
história de espinho venenoso na noite anterior, apenas para impedi-lo de tentar
fugir? Assim, nada aconteceria ao guerreiro durante a luta e ele teria a chance
de tranquilamente massacrar seu inimigo branco em público.
“Sinto muito, Vander, meu velho, mas esta é
uma hora errada para alimentar conjecturas pessimistas”.
Estendeu a mão
para o adversário que o fitou com certa desconfiança.
- Vamos lá. Em minha tribo é um velho costume
entre adversários cumprimentarem-se antes de grandes e decisivas batalhas.
Mesmo sem
entender as palavras de Vander, Inayê
aceitou o cumprimento. Não faria diferença, já que durante a luta iria matá-lo.
Mantendo os
olhares firmes, como se já estivessem travando o duelo, os dois se
cumprimentaram. Após isso, ao recuar a mão, o braço do índio foi levemente
ferido. Ele, que até então tinha os olhos firmes nos de Vandersom, voltou-se
para o próprio braço, percebendo o pequeno arranhão. Tornou a olhar para o homem
branco, aborrecendo-se.
- Oh, me desculpe – dissimulou
Vandersom, rigidamente dentro de sua estratégia – Às vezes esse tipo de problema acontece por causa deste meu maldito
anel – e tirou o anel do dedo, mostrando-o para o índio para que ele
compreendesse.
Num gesto nada
polido, o índio deu um tapa na mão que lhe apontava o anel, fazendo-o voar
quase para a floresta.
- Hei! – Vandersom protestou – É um anel entalhado de ouro e prata. Deve
valer uns trezentos Reais.
Na
verdade, pouco se lixava para com o anel. O importante era que a planta
venenosa fora usada com sucesso, da forma que lhe havia instruído a índia e sem
que ninguém se desse conta do que se passara. Restava-lhe agora confiar em sua
eficácia.
O
mediador, que se caso a luta fosse apenas um esporte corresponderia a uma
espécie de árbitro, deus suas últimas instruções que para Vandersom soaram tão
úteis quanto uma piada contada em Alemão.
E
a luta teve início.
Mal
ele deu o sinal e o incauto homem branco já teve o corpo suspenso a mais de
meio metro do chão por uma violentíssima rasteira habilmente aplicada pelo
guerreiro indígena. Aterrou cômica e dolorosamente com as nádegas no chão, como
um pesado saco de batatas.
Houve
muitos gritos e aplausos da platéia, que claramente não escondia para quem
estava torcendo.
Com
algum esforço, Vandersom se pôs de pé novamente, no que era atentamente
observado pelo índio, que parecia bastante concentrado, embora todos dessem sua
vitória como certa.
- Tenho certeza de que se resolvermos este
impasse com a diplomacia do diálogo, estaremos inaugurando uma nova era
democrática que pode ser de grande importância num futuro próximo de sua tribo.
Inayê procurava
ignorar completamente o palavreado enfadonho do adversário. Estava claro que
era uma técnica do homem branco para tentar distraí-lo e ganhar tempo. De
qualquer forma, além de irritante, tal técnica também parecia totalmente
inútil, afinal não havia contagem determinante de tempo para que a luta se
encerrasse e tudo o que o homem poderia ganhar com aquilo seria o prolongamento
de seus sofrimentos.
Quanto
a Vandersom, sabia que o índio pensava dessa forma, assim como também sabia que
ele estaria absolutamente certo caso o veneno não fizesse o efeito desejado.
Infelizmente, nada mais havia que pudesse fazer.
Nunca
fora um grande brigador, embora houvesse tido algumas aulas de defesa pessoal
em sua infância e adolescência. Nunca apanhara na escola, porque sempre vencia
os fortões, não com os músculos, mas com lábia e argumentos, ou se preciso, até
mesmo com suborno. De alguma forma, conseguia provar que bater nele poderia
acarretar em problemas maiores do que a passageira satisfação que eventualmente
tal ato poderia produzir.
Achou
que tudo mudaria quando se casou com uma mulher que fazia absoluta questão de
lhe contrariar as vontades, mas ainda assim, através de diálogos que no fim se
revelavam bastante equilibrados, puderam fundamentar sua relação, (ao menos até
a chegada de Cora).
Agora
sim era diferente. Não havia como argumentar com quem não falava sua língua e
tinha o coração fechado demais para refletir sobre gestos de arrependimento e
súplica. A diferença entre o triunfo e a morte achava-se no tempo provável que
poderia levar o veneno a surtir ou não algum efeito.
Chegou
a pensar que poderia resistir por mais tempos às investidas iniciais de seu
algoz, mas já os primeiros golpes que recebera revelaram-se capazes de
desorientá-lo de forma contumaz, deixando-o como uma presa fácil para a
derradeira investida do inigualável lutador selvagem.
Quando
se sentiu agarrado e imobilizado por um abraço inescapável, Vandersom achou que
chegara o fim. Logo, o impiedoso guerreiro teria drenado todas as forças e o
poder de resistência de seu oponente e ao largá-lo, tê-lo-ia absolutamente
prostrado, pronto para ter o pescoço esganado e torcido como um parafuso.
Tentou
uma última vez forçar sua escapada e surpreendeu-se ao perceber que os
poderosos músculos que até então o dominavam com facilidade tornavam-se frouxos
e amolecidos, como os de um velho alquebrado.
Com
extrema facilidade Vandersom se livrou do abraço, apoiando o próprio pé na
barriga do índio e projetando-o para frente como uma catapulta humana. O índio
caiu a alguns metros, rolando ainda algumas vezes pelo chão.
A
platéia, que até ali urrava extasiada, ficou subitamente muda, pasmada com a
incrível e repentina habilidade de luta do homem branco.
Visivelmente
desconcertado e com alguma dificuldade, Inayê
procurou se levantar o mais rápido possível. Não conseguia acreditar, mas o
golpe do homem branco o afetara mais do que poderia esperar. Mas junto com a
surpresa, o que veio foi uma raiva extrema do homem branco que pela segunda vez
o humilhava diante de todos. Tornou a avançar para ele, furioso, lançando o
punho com toda sua força para tentar esmurrá-lo.
Já
certo de que os ventos da mudança se viravam completamente em seu favor,
Vandersom recuperara plenamente a confiança e sem qualquer dificuldade agarrou
no ar o pulso do adversário, evitando o golpe e, mantendo-lhe o braço
firmemente preso, contra-atacou com um violento soco na face. Puxou-o novamente
para si e desta vez o golpeou no estômago.
Em
pouco tempo o índio não demonstrava mais qualquer condição de reagir, ficando
mais vulnerável a cada golpe. Até a platéia desistiu de torcer por ele e passou
a vibrar com o novo campeão que surgia. Vandersom certamente já estava gostando
daquilo. Cada um de seus golpes esdrúxulos, provavelmente imitações mal
sucedidas de golpes de filmes de Karate,
era ovacionado pelos índios eufóricos que esperavam ansiosos pelo desfecho,
embora se deduzisse que ele fosse altamente desfavorável ao representante de
sua tribo.
Vandersom,
por fim, encheu-se de espancar o garoto, que nada mais podia fazer. Segurou-o
então pelos cabelos, mantendo-o subjugado. Estava mais do que claro que poderia
matá-lo se quisesse e era só o que queria que os índios soubessem. Atirou-o no
chão, inconsciente e decretou, de sua parte, o fim da luta.
A
frustração inicial dos agitadores deu lugar ao reconhecimento à nobreza do ato
do guerreiro branco que abdicara de dar cabo da vida do seu rival, mesmo
sabendo que este, em seu lugar, de nenhuma forma seria tão clemente.
Provara
assim, ser valente, justo, ponderado e definitivamente merecedor do posto que
conquistara como o novo líder dos guerreiros da tribo dos Aquanos.
O
cacique reconheceu sua vitória e mostrou-se ainda mais grato por ter sido
poupada a vida de seu filho. Deveria este sim aceitar sua nova vida como servo
e escudeiro fiel do novo guerreiro. A índia Cora,
filha do pajé curandeiro da tribo lhe seria dada de muito bom grado como
esposa, mas ele poderia ainda escolher e tomar para si as jovens amantes que
quisesse, desde que ainda a ninguém estivessem prometidas. Obviamente, a mulher
branca que seria escrava do vencedor do combate, também lhe pertencia e via-se
obrigada a servi-lo como ele quisesse, não importando suas vontades ou
argumentos dos costumes de sua antiga vida entre os brancos.
No
entanto, Vandersom sabia que se quisesse mesmo salvar seu casamento, jamais
poderia permitir que Fátima fosse submetida a tais ultrajantes condições de,
além de ter que, contra a vontade, permanecer totalmente submissa ao marido,
ainda aceitar que ele tivesse outra, ou outras. Se quisesse sonhar ainda em
reconquistá-la, precisaria primeiro tirá-la dali, devolvendo-lhe sua liberdade
de escolha. Depois sim teria que confiar que o amor que talvez ela ainda
sentisse sobrepujasse a mágoa.
Primeiro,
porém, era preciso garantir a segurança dos outros membros da expedição pelos
quais infelizmente, mas com razão, sentia-se também responsável, já que por
conta dos impulsos de sua libido é que se achavam prisioneiros.
O
cacique, por sua vez, prometeu que eles estariam livres para irem embora após a
cerimônia de casamento de Vander e Cora.
Assim,
boa parte dos problemas de Vandersom parecia caminhar para suas respectivas
soluções; porém, esta verdade também, naquele mesmo dia começaria a ser
desmentida.
A
maioria das pessoas que haviam se agrupado para assistir ao espetáculo já havia
retornado aos seus lares. O próprio Vandersom, assim que pôde, fora procurar
Fátima, ansioso por contar-lhe tudo, inclusive sobre seus planos de fuga.
O
cacique com seu filho, porém, permaneceram próximos a arena. Provavelmente, o
pai reservava para o filho, sobre o qual depositara todas as suas maiores
expectativas, agora as mais duras palavras sobre desapontamento e decepção.
Junto
com seu pai, Cora também testemunhou
todo o alto teor de revolta e amargura nas duras palavras que o chefe da tribo
dirigiu a seu filho, que parecia sofrer de um desespero irreparável, mas sem,
de forma alguma comover o austero pai.
A
índia tentou intervir, mas foi severamente repreendida pelo cacique e por seu
próprio pai, o pajé. Precipitou-se então a partir. Nada mais poderia fazer sem
comprometer o plano tão bem armado. Instintivamente, lançou um último olhar à
arena da batalha, avistando abaré-açú, o cão sagrado da tribo.
Mais do que isso, notou que ele parecia procurar por alguma coisa.
Era
um animal extraordinariamente inteligente. Tanta perspicácia chegava, muitas
vezes, a assustar e por isso, a maior parte dos habitantes da tribo o temia.
Os
temores de Cora se confirmaram quando
já a uma certa distância tornou a olhar e reconheceu imediatamente na boca do
cão o ramo com espinhos que ela própria concedera para que o homem branco por
quem estava apaixonada vencesse a luta.
Abaré desceu da arena, após isso, com
seu achado preso entre os dentes e se dirigiu bastante ansioso até o pajé.
Tinham sido
descobertos.
Saindo daquele
cenário, a índia pôs-se a correr como louca até a cabana de Vandersom. Entrou
abruptamente sem pedir licença ou anunciar-se e pareceu, por instantes,
decepcionar-se com a presença de Fátima ali. No entanto, não havia tempo para
cenas de ciúme.
- Pai pajé e cacique já saber de tudo.
Precisar fugir depressa!
Fátima ficou
surpresa:
- Não sabia que essa sirigaita fala a nossa
língua. Também isso foi você quem a ensinou, Vandersom?
Ignorando as
irônicas palavras da mulher, Vandersom se dirigiu à índia. O que ela acabara de
dizer fora algo muito mais sério.
- Você está falando sério? Como eles puderam
descobri?
- Abaré mostrar a pajé ramo com espinho de
erva venenosa que você jogar em chão de arena e que deixar Inayê fracote e
abobalhado.
Fátima tornou
a espantar-se.
- Não acredito no que vocês estão falando.
Quer dizer que você trapaceou?
- Claro – respondeu Vandersom - ou você acha que aquela coreografia dos
‘Power Rangers’ poderia mesmo ser efetiva?
A índia
ralhou. Parecia mesmo ansiosa para que Vandersom fugisse:
- Conversar depois! Fugir agora ou ser
morto.
Vandersom
estendeu a mão a sua esposa, mas ela não fez menção de aceitá-la.
- Ela quer que você fuja, não eu.
- Está louca, Fátima? É claro que eu não
iria sem você.
- Eu não lhe disse que quero ir.
- Pois bem; ficamos, então, os dois.
A
mini-discussão do casal fez a índia explodir:
- Calar a boca os dois e acreditar: se
quiser viver, ser esta última chance.
Fátima e
Vandersom entreolharam-se.
Ele, novamente
estendeu a mão, mas mais uma vez ela ainda relutou.
- E quanto aos outros? – ela quis saber.
- Eles – respondeu Cora – apesar de tudo, ser prisioneiros inocentes.
Não ser maltratados. Cacique apenas os usar como isca para apanhar vocês.
- Está certo – assentiu Fátima.
Então ela
aceitou a mão oferecida pelo marido e os três saíram correndo da cabana, em
direção à mata.
●
- Não vamos conseguir chegar ao furgão antes
que nos alcancem – disse Fátima, enquanto corriam.
- Não iríamos, se o furgão não estivesse
mais próximo do que eles imaginam.
- Parece que até nisso você pensou...
- Infelizmente, sim. Não que previsse tais
circunstâncias, mas achei melhor facilitar caso quisesse ir embora mais cedo.
- Aplaudiria sua perspicácia se você não
fosse um canalha, Vandersom. Talvez por isso nenhuma de suas armações tenha
dado inteiramente certo.
- Não vou tentar justificar meus erros,
Fátima, mas eu nunca quis magoar você.
- Aposto que não. Com certeza achou que ser
traída me faria muito feliz.
- Será que não percebe o quanto se distancia
de mim a cada uma dessas suas viagens malucas?
- Ah, eu sabia que você não perderia a
oportunidade de tentar me culpar; mas desista Sr.Vandersom. Eu não vou aceitar
isso. Vim pra cá por que é o meu trabalho e eu o amo, você sabe disso. Não vim
pra transar com os nativos.
No ardor da
discussão, a índia Cora vinha abrindo
uma distância sobre eles que, ofegantes, não mais a conseguiam acompanhar.
Assim, a certa altura ela foi obrigada a esperá-los, o que pareceu enfurecê-la:
- Os dois calar já a boca. Não ver que
precisar de todo fôlego pra correr? Guerreiros da tribo estar cada vez mais
perto.
Embora prestes
a explodir de raiva com o atrevimento da indiazinha abusada, Fátima se conteve
e se preparou para fazer exatamente o que ela dizia. Estava claro que sem a
ajuda dela eles não teriam a menor chance.
De fato,
jamais teriam conseguido chegar até o furgão antes de serem alcançados pelos
excelentes rastreadores da tribo caso Vandersom não o tivesse trazido para bem
mais próximo da aldeia do que o ponto onde originalmente haviam estacionado os
carros. Ainda assim, quando o alcançaram, seus perseguidores já deviam estar
bem próximos, podendo surgir a qualquer momento.
Vandersom
apanhou as chaves, que desde que chegara de volta à aldeia, mantivera
escondidas em um bolso oculto da bermuda. Mal podia esperar para dar a partida
e cair fora dali, como um querubim tentando escapar das torturas do inferno.
Entraram os
três no furgão. Fátima se recusou a ir ao lado de Vandersom, preferindo
sentar-se atrás, ao lado de Cora.
Fecharam as
portas; Vandersom deu a partida e neste momento viu pelo retrovisor os índios
irrompendo em uma clareira na floresta e avançarem em sua direção.
Em meio a
gritos histéricos, dezenas de flechas começaram a se chocar com os vidros do
carro. Vandersom pisava fundo no acelerador, quando sentiu uma dor aguda em seu
pé, que há muito perdera o sapato, para melhor correr pela mata. Na mesma hora,
Abaré-açu,
o cão sagrado dos indígenas pulou em seu colo, rosnando como uma fera selvagem.
Momentaneamente desorientado, Vandersom perdeu o controle do carro, que rumava
certeiramente de encontro a uma árvore. Percebendo o perigo, deu uma virada
brusca no volante, conseguindo desviar no último instante. Com a guinada, o
animal também foi surpreendido, sendo projetado contra o pára-brisa. Vandersom
aproveitou para agarrá-lo pelo pescoço com uma das mãos. Apesar de seu pequeno
porte, o atrevido animal tentou resistir bravamente, arreganhando os dentes
para intimidar o homem que o mantinha firmemente seguro pela nuca, enquanto com
a outra conduzia a direção do carro pelo íngreme e perigoso caminho.
- Seu desgraçado! – bradou Vandersom
para o animal – Desde que eu cheguei você
não larga do meu pé.
O animal olhou
em seus olhos e de alguma forma pareceu sorrir. Furioso, Vandersom acionou a
ignição que automaticamente fez abrir a janela do carro e lançou o cachorro por
ela. Viu pelo retrovisor o animal rolar várias vezes pelo chão. Quando
conseguiu parar, sacudiu a poeira do corpo e a cabeça. Parecia tonto, mas
estava bem.
- Cuidado, Vandersom!
O alerta de
Fátima chegou na hora. Os índios haviam dado a volta e agora se punham todos à
frente do carro. Mais um pouco e o motorista teria avançado com o furgão para
cima deles.
Após a freada
brusca, uma nova saraivada de flechas voltou a ser disparada contra o veículo e
seus ocupantes. Vandersom engatou a ré
o mais depressa que pôde e pisou fundo. Quando se lembrou do animal que ficara
para trás era tarde demais pra tentar novo desvio. Pelo retrovisor viu pela
última vez o bicho, que permaneceu olhando com estupor para o grande animal de
metal vindo em sua direção. Houve um baque e um pequeno ganido que facilmente
passariam despercebidos se eles estivessem desapercebidos, mas que, justamente
por não estarem, soou ali dentro como um trovão.
Neste exato
momento, Cora, numa clara expressão
de desespero, levou as duas mãos aos ouvidos e gritou:
- Não!!!
Houve então,
exceto pelo ruído do motor do carro, um silêncio sepulcral. Todos os demais
índios que até então corriam e gritavam enfurecidamente, perderam qualquer
interesse pela perseguição e concentraram suas atenções no animal atingido.
Dificilmente seria mais do que uma carcaça agora, mas para eles realmente
parecia ser a carcaça de um deus.
A mente de
Vandersom insistia em querer refletir sobre o que estava acontecendo, mas ele
rejeitou, ao menos provisoriamente tal idéia, voltando a se concentrar na
floresta a frente e na fixa vontade de sair dali. Aproveitou o súbito
desinteresse dos índios por persegui-los e trocou a ré pela marcha normal,
fazendo a volta para continuar a fuga. O carro se afastou daquela área
tranquilamente, sem que mais ninguém os incomodasse. Todavia, o silêncio
absoluto e tenebroso que se instalou enquanto seguiam rumo à estrada parecia
indicar que de alguma forma certamente aquilo ainda não havia terminado.
Já rodavam a
mais de vinte minutos na estrada, em direção ao vilarejo mais próximo quando
Vandersom teve coragem de quebrar o silêncio:
- Será que eles desistiram de nos perseguir?
- Não precisar mais – foi tudo o que a
índia respondeu, de forma impassível.
Vandersom, por
sua vez, não pode evitar que a resposta lhe causasse uma aborrecida indignação.
Foi como se subitamente ele tivesse se tornado para aqueles selvagens
primitivos a criatura mais insignificante do mundo, ou...
(...estivesse encrencado demais
para que ainda pensassem em se vingar dele)
Era
um pensamento absolutamente sem propósito; afinal, por que ainda estaria
encrencado se acabara de conseguir escapar?
Talvez
a índia tivesse a resposta.
- O que você quer dizer com “eles não precisam
mais” – Vandersom insistiu.
Cora, que já havia muito parecia
bastante apreensiva, teve um ataque de histeria e começou a gritar e se
debater.
- Parar carro! Cora querer ir embora!
- Ir embora!? Está
louca? Você não pode descer aqui sozinha. Os Aquanos podem estar a caminho.
- Cora querer mesmo
voltar pra tribo.
- Parece que você
enlouqueceu mesmo. Se eles lhe pegarem, certamente vai ser severamente
castigada.
- Preferir castigo dos
Aquanos do que dividir com homem branco terrível maldição.
- Que papo é esse de
maldição?
A
índia voltou a gritar e se debater como louca no banco traseiro. Fátima apenas
se esquivava de seus encontrões estabanados.
- Parar carro agora! Parar agora!
Antes que
Vandersom pudesse refletir melhor sobre o que fazer, ela acionou a maçaneta,
empurrou a porta e saltou do carro em alta velocidade, caindo e rolando várias
vezes pelo chão exatamente como o cachorro.
Imediatamente,
Vandersom afundou o pé no freio, parando o carro e descendo em seguida. Não
encontrou, no entanto, mais qualquer vestígio da índia. Com extrema habilidade
já desaparecera na mata que margeava a estrada. Vandersom voltou para o carro,
bastante confuso. Não calculava a real importância do animal que atropelara
para aqueles índios.
Fátima
permanecia sentada em seu lugar, impassível. O estado taciturno da esposa
contribuía ainda mais para aumentar a tensão de Vandersom, mas sabia que não
devia, nem podia censurá-la. A única coisa que talvez ainda salvasse o seu
casamento chamava-se “paciência”.
Assim
que ele acionou a ignição, ela quebrou o silêncio:
- Isso ainda não está acabado, Vandersom.
Ele refletiu um
pouco antes de lhe dar uma resposta, que foi a que lhe pareceu melhor naquele
momento.
- Eu espero que também
entre nós tudo possa terminar bem.
- Não banque o tonto.
Sabe perfeitamente que não é disso que eu estou falando.
- Não sei, mas
desconfio – ele ironizou.
- Apesar de tudo, sou
obrigada a reconhecer que aquela índia tinha coragem suficiente para não se
deixar amedrontar por motivos pequenos.
- Parece que você
também vai engolir essa história de maldição.
- Você atropelou o
animal sagrado deles! – ela gritou.
- Não foi minha culpa, pelo amor de Deus!
Além de não ter o visto, ele estava no único caminho por onde tínhamos uma
chance de fugir.
- O que quer dizer que
mesmo que o tivesse visto, atropelá-lo-ia da mesma forma.
- Claro que sim! Ele
teve boa responsabilidade em toda esta confusão. O desgraçado me seguiu pela
floresta, quando voltei sozinho para buscar o carro; por isso já sabia onde
estava e chegou primeiro do que nós. Além disso, ele fez questão de delatar ao
pajé minha real conduta na luta.
- Só falta dizer
também que foi ele que lhe obrigou a transar com a indiazinha.
- Não disse que ele
foi o único responsável, mas é inegável que ele não aia com a minha cara e fez
de tudo para me ver morto. Infelizmente para ele a lei de sobrevivência
prevaleceu em meu favor e não vou me remoer por isso.
- Você se acha muito
esperto, não é Vandersom? Sempre levando a melhor em tudo, seja com lábia, com
dissimulações ou mesmo trapaças. Acha que está acima de qualquer espécie de
justiça.
- Já lhe disse o
quanto estou arrependido, meu bem. Eu sei que não é obrigada a me perdoar, mas
não vai me fazer crer que sou pior do que realmente sou. O que você chama de
justiça? Que eu me entregasse e ficasse lá para ser torturado, castrado e
morto, ou ver minha mulher ser currada por um bando de selvagens que seguem
leis sem qualquer coerência? Tudo para não aviltar a imagem de seu deus
estúpido que não passava de um vira-lata metido. Se é o que queria, esqueça, ou
pode formular por eles uma denúncia ao IBAMA, ou as associações de proteção aos
animais. Que eu saiba, não há lei contra atropelamentos de cachorro, mas mesmo
se houver, ela será melhor do que a opção que minha própria esposa tem para
mim.
Neste momento,
sentiu o ferrão ser cravado na lateral de seu pescoço.
- Merda! – gritou, enquanto levava a mão
ao local que começava a ficar extremamente dolorido.
Tirou
a mão e nela tinha um marimbondo, ou outro tipo de inseto voador parcialmente
esmagado.
- Desgraçado! – exclamou olhando para o
bicho agonizante. No entanto, para sua inacreditável surpresa, o animal lhe
picou novamente o fazendo gritar outra vez:
- Aaai! Filho-da-puta!
Por instinto,
largou o volante que era conduzido pela outra mão e com um violento tapa
certeiro na palma em que se alojava o agressor, deu cabo em definitivo da
ousadia absurda daquele inseto.
Fátima,
alheia a batalha que o marido travava, só pôde percebê-lo, após soltar a direção,
perder completamente o controle do furgão que, da estrada, virou para entrar
bruscamente na floresta, chocando-se contra arbustos e pequenas árvores, até o
motorista recobrar o controle da situação e pisar no freio. Foi, no entanto,
tarde demais para evitar que o carro invadisse se atolasse numa grande poça de
lama.
- Que diabos você pensa que está fazendo –
ela vociferou.
- Algum maldito inseto me ferroou por duas
vezes – justificou-se ele, levando novamente a mão ao ferimento no pescoço,
como que para dar testemunho. No local havia um caroço que parecia maior do que
uma azeitona.
Ela
desceu do carro furiosa, aterrando os dois pés na lama.
- Era tudo o que eu queria: completar a pé e
na sua companhia as pelo menos duas dezenas de quilômetros que ainda faltam
para chegarmos em casa.
- Deve haver um posto
policial por perto. De lá poderemos ligar para o resgate.
É desnecessário
dizer que para passarem todos aqueles dias numa aldeia isolada da civilização,
tiveram obviamente que abandonar privilégios como os celulares, já que apesar
de serem indubitavelmente uma das maiores evoluções na comunicação, os
aparelhos ainda dependiam da energia elétrica para serem carregados.
O
posto policial mais próximo ficava a cerca de 3 km de onde estavam. Ia alta à
noite e a estradinha pela qual seguia não possuía qualquer iluminação.
Dependeriam exclusivamente do “kit-florestal”
que havia no porta-malas do furgão, que incluía lanternas, sinalizadores,
facões para se abrir trilhas na mata, mapas detalhados da floresta e das
estradas vicinais, além da indispensável maleta de primeiros socorros.
Vandersom
apanhou sua pistola automática no porta-luvas e a colocou na cintura. Não sabia
de muitos casos de animais selvagens que atacavam pessoas naquela região, mas,
menos ainda costumava fazer mal andar-se prevenido.
Apagou
os faróis do carro para não deixar pistas sobre onde estavam, bateu a porta,
acionou a lanterna presa ao cinto e começou a seguir a pé pela estrada. Fátima
há muito já tinha tomado tal iniciativa, já guardando, por isso, uma razoável
distância entre eles, o que dava a clara impressão de que no momento realmente
depreciava a companhia do marido.
Ele,
por sua vez, mal começou a andar e já se viu envolvido por uma nuvem
impressionante de mosquitos. Centenas, talvez milhares, se alvoroçavam em torno
dele, como se tivessem acabado de descobrir a última reserva de sangue do
universo.
- Miseráveis! – ele protestou, dando
tapas violentos no ar, sentindo que a muitos atingia, mas dificilmente com a
efetividade desejada. Parou para abrir a bolsa do ‘kit’ e quase que instantaneamente começou a sentir as doloridas
picadas por várias partes do corpo. Um alvo imóvel, obviamente era muito mais
vulnerável. Mas isso iria mudar: apanhou o frasco de spray repelente e começou a aplicar sobre si e pelo ar ao seu
redor. Da mesma forma que a nuvem repentina de insetos surgiu, também se
dissipou, rendendo-se ao odor letal do repelente. Claro que as partes da pele
picadas permaneciam doloridas, mas ao menos alguns já estavam pagando caro por
aquela ousadia.
Fátima,
por razões óbvias, já havia aberto uma distância ainda maior entre ela e o
marido, tudo indicando que estranhamente não tivera qualquer problema com os
mosquitos. A prosseguir naquele ritmo, Vandersom teria que correr para não a
perder de vista. Ela não parecia preocupada, (ou ao menos se esforçava para não
se demonstrar), em seguir sozinha pela estrada deserta e escura, totalmente
cercada pela mata selvagem. Vandersom, por sua vez, reconhecia que sua única
sensação de segurança estava inseparavelmente ligada à arma em seu coldre.
Mesmo assim, precipitou-se a correr para alcançar Fátima, pois a simples
sensação de estar sozinho fazia sua imaginação trabalhar descaradamente contra
ele.
Nunca
fora um homem muito ágil, o que seus primeiros movimentos na luta com o índio
deviam certamente ter explicitado bem; embora, em seu processo de fuga viesse
até ali se empenhado muito bem, agora, ao menos em tese, não corria mais pela
própria vida e por isso, quando achou que já encurtara razoavelmente a
distância que o separava de Fátima, desistiu de alcançá-la e parou para
descansar.
Que diabos! Ela que o esperasse também, ou
isso afetaria profundamente o seu brio, afinal, em quase todas as vertentes ela
já demonstrara ter valores mais íntegros do que os dele. Estaria sepultando
também sua valentia se corresse e se enfiasse sob a saia dela como um coelho.
Sentou-se
numa pedra na beira da estrada para descansar. Aos poucos, foi estabilizando a
ofegante respiração.
Fátima,
sem olhar para trás, seguia a passos decididos, novamente pronta para alimentar
a distância que os afastava.
Instantes
após se sentar, Vandersom sentiu todo o seu corpo da cintura para baixo arder
como em brasa.
Olhou
para os membros inferiores e não pôde acreditar: formigas. Suas pernas e pés
estavam repletos de formigas pequenas e escuras e doíam como se recebessem
alfinetadas às centenas...
●
Levantou-se
desesperado, gritando e esfregando as pernas, esmagando o máximo de formigas
que pôde. Algumas ainda investiam contra as mãos que a atacavam tornando a
situação ainda mais dolorosa ao pobre homem que lutava desesperadamente para
livrar-se dos impiedosos insetos que o martirizavam, inclusive em regiões
sensíveis como virilha e genitais, já que muitas haviam lhe entrado sem
cerimônia por baixo do calção.
Sem
qualquer pudor Vandersom se livrou das calças e da cueca para facilitar a
remoção das formigas em seu corpo, que já haviam consideravelmente diminuído em
número, mas cujas remanescentes pareciam motivadas a feri-lo até o fim.
Podendo
visualizá-las mais claramente, foi massacrando as últimas, esfregando
fortemente as palmas sobre elas.
Suas
pernas e pés estavam totalmente inchados. Seu pênis fazia-o lembrar de um dos
slides que vira em seu tempo escolar numa palestra sobre sífilis. A dor, que
muito lentamente descendia aos limites do suportável, ainda o fazia derramar
com vontade lágrimas dos olhos.
Olhou
a fronte da estrada à procura da esposa e levou um susto: ela sumira. Sentiu-se
perdidamente só naquela maldita floresta, onde não só os índios, mas também
todos os demais seres vivos pareciam conspirar contra ele.
Apanhou
delicadamente as roupas que havia atirado longe. Achou melhor esquecer-se das
cuecas que só aumentariam o incômodo. Apanhou com extrema cautela o calção,
preocupado com as formigas e sacudindo-o para derrubá-las. No entanto, percebeu
um vulto muito maior do que uma formiga pular do calção. Direcionou a ele a luz
da lanterna elevou mais uma vez um tremendo susto. Era uma aranha enorme;
marrom, quase vermelha e bastante peluda. Provavelmente, se tivesse apenas
vestido o calção de forma imprudente, as formigas teriam sido o menor dos seus
problemas.
O
animal, percebendo a luz, embrenhou-se na mata.
De
repente, das entranhas da floresta, um pouco distante, veio um ruído semelhante
a um grito, ou grunhido.
Vandersom
tornou a sacudir o calção certificando-se de que nele não havia mais nada. Só
então percebeu que o coldre estava vazio. A pistola havia desaparecido.
●
Num
instante caminhava temerosa sim, mas absolutamente decidida e concentrada afora
pela estrada; no outro era arrebatada e imobilizada quase que simultaneamente
por uma gravata e arrastada para dentro da mata densa, sem qualquer chance de
reação. Só então pensou no quão longe poderia estar do marido. Provavelmente
longe demais para que ele pudesse sequer se dar conta do ataque que ela sofria.
E nem mesmo gritar poderia porque fora o braço que usava para lhe aplicar a
gravata, com a outra mão seu captor também a amordaçava, deixando-a
completamente a mercê. No entanto, foi fácil perceber que na verdade era uma
captora, já que embora seu corpo não devesse estar habituado aos mais caros
perfumes franceses e cremes para a pele, ainda assim, uma mulher não perde
absolutamente sua feminilidade.
Momentos
depois a pressão se afrouxou e ela foi liberta, reconhecendo assim quem a
atacara. Era Cora. Estava de volta.
- Ficou louca? – protestou Fátima,
recobrando-se do susto - O que você pensa que está fazendo?
- Mulher branca
desculpar. Cora não querer machucar, mas também não poder deixar que ele nos
visse.
- O que você está
fazendo aqui? Pensei que havia voltado para sua tribo.
- Cora ir, mas
desistir. Não ter coragem de abandonar vocês. Afinal ser seus problemas também
culpa de mim.
- De que problemas
especificamente você está falando?
- Da terrível
maldição.
- Que história é essa
de maldição, garota? Minha única maldição foi ter me casado com um homem que
não me respeita.
- Vocês achar que seus
problemas terminar, não é? Talvez sim com os Aquanos, mas algo muito pior
aguardar vocês na alma da floresta.
- Quer dizer logo do
que está falando...
- Seu marido matar
animal santo. Abaré-açú era personificação de espírito regente da Natureza.
- Eu percebi e não
fiquei feliz por isso, mas o que ele poderia fazer? Seus amigos queriam nos
esfolar.
- Vocês brancos sempre
encontrar justificativas para suas violações, mas as leis da Natureza não são
tão volúveis quanto as leis de suas tribos. Seu marido ultrajar divindade,
fugir e achar não haver conseqüências, mas agora, toda vida da floresta se
voltar contra ele.
- Como é que é?
- Animais, insetos e
pragas o ver agora como inimigo e declarar guerra a ele.
- Você deve estar
louca.
- Cora imaginar que a
princípio vocês brancos, sempre céticos, não acreditar; por isso seguir vocês à
distância, atenta ao início dos problemas que começar assim que vocês sair do
carro.
Fátima tentou rir
de descaso, mas deduziu que não conseguiria. Por mais incrível que parecesse,
isso explicaria o súbito desinteresse dos Aquanos.
- Até agora não senti problema algum.
- Não ser você que
atropelar animal sagrado. Mas, seu marido não dever estar tão tranqüilo.
☻
Crescia
a cada instante a impressão de estar sendo espreitado. Cada ponto
demasiadamente escuro da mata parecia ocultar um ‘sem-número’ de perigos. Além disso, o sumiço de Fátima também o
deixara bastante apreensivo. Pela primeira vez as coisas pareciam ir ao
encontro do modo como ele sempre se sentira ao chegar naquele lugar: um intruso
bastante indesejado num ambiente hostil e perigoso.
Um
pequeno e sutil movimentar de folhar numas moitas próximas pode ter sido um
diferencial crucial para o futuro de sua vida. Quase que pressentindo que algo
se lançava no ar em sua direção, Vandersom fez um movimento brusco para
abaixar-se e foi atingido com força num dos lados da face, próximo a bochecha.
No momento do golpe, gritou, sentindo nitidamente um bom pedaço de sua pele ser
arrancado como numa pinçada brusca. Quando se ergueu à posição normal,
procurando por vestígios do agressor, nada viu. Ouviu então o som sombrio de um
piado e encontrou, pousada sobre o galho de uma árvore próxima uma grande
coruja negra.
- Mas que diabo está acontecendo?! –
vociferou; o rosto repleto de sangue – Por
acaso os malditos índios amestram toda a floresta?
A
coruja piou novamente. Mantinha os olhões
fixos nele.
Vandersom
se abaixou e apanhou uma tora, intimidando-a.
- É fácil atacar em surdina, não é? Por que
não tenta agora, desgraçada:
O animal voou para
se embrenhar na floresta e desapareceu. Por via das dúvidas, Vandersom decidiu
manter provisoriamente a tora consigo.
“Parece que sua amiga sorte
entrou de licença, Vander, meu caro.”
Talvez
não. Ele quase não tinha dúvidas de que o alvo primário daquela coruja fora um
de seus olhos e não apenas a bochecha. Se não a tivesse notado a tempo
certamente estaria cego de uma vista àquela altura.
Começou
a sentir o efeito do cansaço nos músculos e na mente. Fora indubitavelmente um
dia estafante, mas não podia nem pensar em parar para descansar; uma, porque a
permanência pro qualquer minuto naquela floresta revelava-se para ele cada vez
mais perigosa e, outra: Fátima podia estar em perigo e por mais que suas
relações estivessem abaladas, ainda era sua obrigação como marido protegê-la.
Todavia,
quis o destino que aquele seu conceito sobre quem protege quem na relação homemxmulher fosse mais um a sofrer um
duro golpe, pois seria salvo por elas pela segunda vez num mesmo dia.
O
posto policial mais próximo já deveria estar por surgir e Vandersom alimentava
grandes esperanças de que Fátima estivesse lá a sua espera.
Então,
o silêncio da mata começou a ser quebrado por estalos de galhos se partindo
como se alguma criatura pesada caminhasse por sobre eles nos arredores. O
coração de Vandersom começou a saltar como louco. Logo em seguida ouviu um
rugido e veio a certeza: era pelo que ele mais estivera temendo; alguma fera
selvagem, valente demais para ser intimidada pelo sarrafo de madeira.
Nunca
tinha escutado tão de perto, mas estava quase certo de que fora rugido de onça.
Provavelmente a famosa canguçu, cuja
presença maciça naquela área era notória. As chances de escapar desarmado do
ataque de um bicho desses? Talvez alguns dos bravos guerreiros aquanos tivesse alguma, mas para ele, um
mero fotógrafo ranzinza da cidade, era de zero por cento. Seu corpo extenuado
certamente desdenhava de sua necessidade de fugir e escapar numa carreira
daquele bicho.
Talvez
fosse melhor mesmo nem tentar escapar. Tudo indicava que na linha do destino
alguém fazia de tudo para acertar as contas com ele. E certamente, cedo ou
tarde, acabaria acontecendo.
Sentou-se
tranquilamente no mesmo local em que estava. Se fosse fumante, com certeza
apreciaria um cigarro naquele momento.
Quando
enfim viu a onça, achou que realmente tudo estava acabado, embora nem de longe
aquilo lhe remetesse ao desespero. Só lamentava por Fátima. Gostaria de se
despedir dela. No entanto, preferia pensar que ela estava bem, a salvo no posto
da polícia e não tivera a oportunidade de topar com aquele animal feroz.
A
onça, que surgiu por entre os arbustos, ficou fitando-o do lugar onde estava.
Como caçadora nata sabia quando a presa abdicava de qualquer possibilidade de
fuga. Por intermináveis instantes os dois permaneceram assim; o animal a fitar
o homem sentado que não dava aparentemente a menor importância à sua presença,
embora na iminência de ser dilacerado.
Enfim,
a onça começou a se aproximar lenta e cautelosamente. Era enorme. Rosnava,
provavelmente para se assegurar de que o homem realmente sabia quem estava por
cima. Quando já estava a meio caminho de alcançar a presa, deu-se outro rugido
na mata, tão ou até mais forte do que os que ela até então emitira. Ela cessou
imediatamente o seu caminhar, voltando-se em direção à mata, provavelmente
exatamente para onde viera o rugido.
“Que legal! Parece que teremos mais um duelo
de arena hoje, só que desta vez eu sou o troféu.”
Dito e feito: do
ponto exato aonde a onça olhava surgiu outra, um pouco menor, mas não menos
arisca e ameaçadora. Alguém acabara de ter seu território de caça invadido.
As onças
começaram a se engalfinhar violentamente e aquilo reascendeu o medo e o
espírito de sobrevivência de Vandersom. Isso foi mais do que suficiente para
que ele se levantasse e procurasse desesperadamente por alguma forma milagrosa
de escapar.
Nem foi
preciso. Mais uma vez, o milagre vinha infalivelmente ao seu encontro...
♦
A sirene
ensurdecedora da viatura que se aproximou impetuosa, quase que instantaneamente
intimidou os felinos, a ponto de fazê-los desistir prontamente de resolverem
entre si o entrevero pela caça e debandarem visando garantir a própria
sobrevivência.
Da viatura
desceram um guarda-florestal e Fátima.
- Olá, querida – brincou Vandersom – que bom que sentiu saudades!
- Só vim tirá-lo dessa para não me
arrepender no futuro, Vandersom, mas nada mudou entre nós.
- Será como você quiser, querida.
- Vocês dois poderão explicar melhor o que
aconteceu no quartel mais próximo. Por hora é melhor irmos embora; em meus
vinte anos de profissão aprendi que a mata sempre oculta perigos, mesmo aos
mais ambientados e experien...
O discurso do
guarda foi interrompido por um estampido muito próximo. Imediatamente os três
se atiraram no chão. Fátima e Vandersom, para se protegerem, e o pobre guarda
porque estava morto, com uma bala no meio da testa.
Ao constatarem
o estado de óbito do policial, os dois correram abaixados rumo à viatura. Assim
que entraram, um novo disparo estilhaçou o vidro traseiro e a bala passou
zunindo, muito próximo ao ouvindo de Fátima e fazendo um furo no teto.
Vandersom deu
a partida, pois felizmente o guarda deixara a chave no contato. Constatou então
que uma de suas mãos sangrava, ferida pelos estilhaços. Pisou no acelerador e
não se ouviu mais nenhum tiro.
- Devem ser os malditos índios, deduziu
– e devem estar usando minha própria
pistola que sumiu. E eu que começava a pensar que eles haviam desistido.
- Não creio que tenham sido eles –
contradisse-o Fátima.
- Ora, e quem mais nesta floresta tem tanta
vontade de me matar:
- Talvez os próprios animais da floresta –
ela desabafou – Só que o uso da arma de
fogo também me deixa confusa.
- Animais? Do que você está falando, Fátima?
- Vai me dizer que você não teve nenhum
problema com animais em seu caminho até aqui?
- Quem lhe contou isso?
- Cora. Ela disse que os animais da floresta
são a maldição dos Aquanos contra
você.
Após alguns
instantes de meditação ele parou o carro e bateu com força os dois punhos no
volante.
- Droga! Droga! Mil vezes droga!
Fátima pareceu
não se importar com a crise histérica do marido. Quando falou, recuperara a
frieza que se lhe vinha tornando gradativamente peculiar.
- Não acho que seja seguro pararmos aqui.
Ainda não estamos longe e seguros o bastante.
- Não banque a espertinha comigo, Fátima – disse-lhe
quase gritando – Não vai me fazer engolir
por nada essa ladainha de maldição.
- Você pode pagar para ver e continuar testando
de forma inveterada os limites de sua sorte.
Por instantes
ele refletiu.
- Mesmo que aceitemos essa hipótese
ridícula, isso não nos ajudará em nada.
- Talvez sim se procurarmos a única pessoa
que talvez ainda possa lhe ajudar.
- E quem seria essa existência fantástica? –
ele perguntou com desdém.
- O pai da sua indiazinha, o curandeiro dos
Aquanos.
- Não diga mais nada, Fátima. Já vi que você
enlouqueceu de vez. A única ajuda que aquele velho canibal pretende me dar é um
bom impulso pra dentro de um caldeirão.
- Não seja melodramático, Vander. Nem sei se
são os índios os reais monstros dessa história.
- Certo. E por isso a senhora minha esposa
decide que eu mereço pagar minhas penas servindo de banquete?
- Talvez eles sejam razoáveis se nos
entregarmos, ainda mais cientes do problemão que você já tem.
- E por que correr o risco se tudo o que
tenho que fazer para que este pesadelo termine é rodar mais alguns quilômetros
pra fora desta maldita floresta?
- Será mesmo que tão facilmente terminará,
Vander? Há animais por todo o planeta. Mesmo na cidade grande não estamos
livres das mais variadas criaturas venenosas e peçonhentas.
- Não me queira contagiar com o seu delírio.
Grilos e mosquitos não possuem esse tipo de raciocínio que os fazem andar por
aí se vingando de pesso...
Antes que
pudesse terminar a frase, notou pelo retrovisor algo que o deixou paralisado.
Era um tipo de
macaco de média altura, talvez um chimpanzé. Nas mãos tinha, apontada bem na
direção da cabeça de Vandersom, a pistola desaparecida...
●
O macaco
lançou para Vandersom uma espécie de sorriso debochado que não continha
qualquer humor. Alguém ainda duvida de que eles foram nossos ancestrais?
Por instantes,
o olhar severo do símio se transformou no mesmo olhar de Abaré--açú, o animal sagrado que Vandersom atropelara. Sagrado sim,
pois até mesmo para o próprio Vandersom aquela versão também já não parava de
fazer o mais absurdo sentido.
Nesse
instante, um vulto se lançou contra o macaco que gritou e em seguida ouviu-se o
tiro. O vulto fora Cora que derrubara
o animal, mas fora alvejada na altura da barriga.
O macaco fugiu
cambaleante para o mato, deixando a pistola no local do crime.
Cora jazia ofegante, recostada numa
árvore à beira da estrada. O ferimento sangrava bastante.
Vandersom e
Fátima desceram do carro e correram até ela. A índia olhou-os e sorriu.
- Parecer Cora seguir chamado de Tupã.
- Fique calma – tranqüilizou-a Fátima,
alisando-lhe a testa – Você com certeza
vai ficar boa.
- Vamos levá-la rapidamente a um hospital
e...
- Não! – Cora – interrompeu Vandersom – Levar
Cora de volta para tribo.
- Não podemos – quis ele se justificar,
mas ela não permitiu.
- Nada de cidade, nada de curandeiros
brancos. Levar Cora para pai grande pajé e para que morra entre os seus.
- Não podemos voltar lá, menina –
irritou-se Vandersom mesmo diante do estado convalescente da moça – Seus amigos vão nos matar.
- Então ir embora os dois brancos e deixar
Cora aqui para morrer em paz.
Vandersom
levantou-se irritado, mas novamente se agachou junto à moça ferida.
Foi a vez de
Fátima interceder por ela:
- Talvez seja o melhor mesmo a fazer, Van.
Além do mais, como explicaríamos no posto policial o fato de estarmos chegando
com uma índia ferida numa viatura sem o guarda a nos acompanhar? Na certa vão
pensar que nós o matamos e roubamos o veículo.
Era verdade. E
quando encontrassem o corpo iria ser difícil explicar que o tiro fora obra de
um macaco integrante de uma seita de bichos da floresta.
- Está bem, decidiu-se Vandersom, por
fim – Vamos colocá-la no carro e voltar
para a tribo, se, claro, nossos amigos animaizinhos permitirem.
●
O retorno à
tribo foi surpreendentemente tranqüilo exceto pelo fato de Vandersom ser
gradativamente abatido por um mal
súbito, fazendo-lhe por vezes quase perder os sentidos ao volante.
Fátima logo
constatou que ele se encontrava em altíssimo estado febril. Obrigou-o a ir para
o banco de trás, junto à índia ferida, assumindo ela mesma a direção pelo
restante do percurso.
Logo pela
manhã cruzavam novamente os limites da aldeia dos Aquanos.
A índia Cora foi levada pelos demais da tribo
para a cabana do pajé. Havia perdido muito sangue e sua respiração estava
bastante fraca.
Fátima e
Vandersom, este também em péssimas condições, quase não agüentando se manter de
pé, foram conduzidos à presença do cacique. Estranhamente, toda a animosidade
anteriormente mostrada pelos índios parecia ter se dissipado, dando lugar à
indiferença e até a um arrogante e estranho ar de “estão gostando de nossa
vingança?”.
Lúcio, o
intérprete, também foi chamado para que pudessem se entender. Assim, ele
continuou a traduzir normalmente as palavras de ordem do chefe da tribo.
< - Realmente eu não
pensei que vocês fossem voltar aqui depois de todos os acontecimentos>
- Viemos devolver a menina – contou-lhe
Fátima – Pensamos que talvez o pajé ainda
possa salvá-la.
< - Foi uma decisão
acertada. Se ele não puder, certamente ninguém mais no mundo poderia. Todavia,
se ela sucumbir será fruto do castigo implacável de Tupã, pelo seu ato rebelde
e traiçoeiro.>
Fátima até poderia
tentar defendê-la, mas não quis. Não era heroína e muito menos tinha sangue de
barata. Vandersom até poderia estar devendo a vida àquela índia, (entre outras
coisas), mas era um problema dele. Assim como a ruptura das leis da tribo e
suas conseqüências também cabiam somente aos dois.
Como
que adivinhando os seus pensamentos, o cacique concluiu:
<
- E caso ela sobreviva, será responsabilizada dentro dos nossos costumes pelas
faltas que cometeu.>
Pareceu-lhe
que sua intercessão também não iria fazer muita diferença.
<
- Quanto a vocês brancos, estão livres. Não apenas podem, como devem deixar as
terras dos Aquanos o mais brevemente possível> - Hey! – interpôs-se
vibrantemente o tradutor – Isto é ótimo!
< Enfim, vamos para casa?> - perguntou ao cacique em sua língua.
< - Sim. Decidimos que vocês devem ser
julgados também apenas segundo os seus costumes, pela sua justiça e por suas
consciências, apenas lembrando que certamente jamais serão bem vindos novamente
às terras aquanas.>
- Esta é a melhor
punição que poderiam nos dar ironizou Lúcio, o tradutor.
Fátima tinha,
porém uma dúvida de crucial importância, principalmente para Vandersom e como
ele se encontrava praticamente sem condições para se expressar, precisava
ajudá-lo.
- E quanto à maldição?
Todos os
prisioneiros brancos olharam para ela sem nada entender.
- Do que é que você está falando? – quis
saber Lúcio.
- Eles sabem do que estou falando.
Com um gesto de
cabeça o cacique assentiu, entendendo o que a mulher branca dizia, mesmo sem
compreender as palavras.
<
- Quanto a isso não há o que possamos fazer. Da parte dos Aquanos, homem branco
pode se sentir perdoado por todos os crimes, mas nós não somos porta-vozes dos
desejos da Natureza. Das contas que tiver para acertar com ela, somente ela
própria poderá ou não o eximir.>
- Mas isso é injusto! –
protestou Fátima – Vocês devem saber o
que fazer. Ele está fraco e muito doente, não poderá lutar contra uma floresta
inteira.
< - Vocês podem passar
mais esta noite na aldeia para descansarem. O pajé examinará seu amigo e
certamente amanhã ele estará melhor. É tudo o que podemos fazer.> - Eu não
sei de que diabo de maldição vocês estão falando, - novamente Lúcio
abandonava a interpretação para se valer
de suas próprias palavras – mas não quero
ficar nem mais um minuto aqui. Se Vandersom está doente, problema dele. Que
fique sozinho, ou no máximo com sua esposa. Eu pretendo ir embora agora.
No
entanto, sua voz foi um murmúrio no deserto e ele foi obrigado a atender os
demais que se compadeceram da condição de Vandersom e resolveram esperar para
partirem ao alvorecer. Certamente faltou ao intérprete falastrão a devida
coragem de seguir sozinho pela floresta.
Durante
a noite, a febre de Vandersom prosseguiu. Fátima permaneceu o tempo todo ao seu
lado, na rede. Os delírios dos sonhos agitados do marido afirmando
constantemente que a amava e que não suportaria perdê-la mexeram com seus
sentimentos. Certamente ele agira muito mal, mas todo aquele sofrimento já não
lhe teriam sido o bastante? Embora a índia Icoracy
fosse linda, em nenhum instante ele fizera menção de que em qualquer
momento deixara de amar a esposa.
Em
alguma hora da madrugada o pajé entrou: a figura velha, mas imponente,
totalmente adornada com colares, objetos de pedras, palha e tecidos de pele.
Nada de maleta com remédios ou instrumentos ainda que rudimentares de medicina.
Apenas maracás, cetros e os mais diversos patuás.
Fátima,
que compreendia um pouco da língua dos Aquanos,
perguntou se seria necessário chamar por Lúcio, o intérprete. O velho não respondeu,
já começando a examinar o paciente. E ela também achou melhor não deixar o
marido sozinho com aquele bruxo. Não havia como ter certeza de que o perdão
deles era mesmo garantido.
- Ele ser pego pelo que vocês brancos
chamariam de vírus da floresta.
O
velho pajé também falava a língua dos brancos; até com mais desenvoltura do que
sua filha. Nada de surpreendente. Certamente deveria ser mais sábio e
experiente do que a menina, que já não ficava por baixo.
- Amanhã estará melhor. Mas se deixar aldeia
será pego de novo e em efeito prolongado vírus pode ser mortífero.
Vandersom neste
momento abriu os olhos. Parecia ter compreendido os últimos instantes da
conversa.
- Isto quer dizer que se ele deixar a aldeia
morrerá?
Ainda sem forças
para falar, Vandersom meneou vigorosamente a cabeça, inconformado.
- Chegará a hora em que terá que assumir
suas responsabilidades, homem branco. Ainda que para isso tenha que desistir
daquilo que mais ama.
O pajé se
levantou, precipitando-se a sair. Fátima lhe fez mais uma pergunta:
- Como está sua filha?
- Ela vai ficar bem. E
devo lhes dizer que sou grato a vocês por isso. Assim espero que homem branco
saiba decidir sensatamente qual a melhor opção a seguir.
●
Exatamente
como fora predito pelo ancião, pela manhã Vandersom se achava muito melhor
disposto. Era difícil acreditar que estivera tão mal na noite anterior.
Quando
ele se levantou, os demais ex-prisioneiros da cidade já estavam com as malas
prontas para deixar a aldeia. Mesmo Fátima teria que ir embora. Apenas ele,
Vandersom, tinha o consentimento para permanecer na tribo, mesmo porque, os
índios acreditavam que para ele não haveria mesmo outra escolha além da morte.
Assim, fazendo sempre questão de ressaltar sobre o espírito elevado dos Aquanos, o cacique permitiu que Vander
ficasse na aldeia desde que se submetesse a algumas condições, como se casar
com Cora e definitivamente se tornar
um aquano.
Como
nas palavras do pajé, “abrir mão do que ele mais amava”: Fátima.
Claro
que definitivamente o bom e velho Vander não estava disposto a se sujeitar
àquilo. Tanto quanto se sentia recuperado, sentia-se também pronto para seguir
com os demais para fora daquele lugar, afinal, os índios deixavam claro que não
era mais prisioneiro e só ficaria na tribo se quisesse
...ou precisasse.
Não
importava. Por nenhuma das razões, ou qualquer outra, ficaria. Achava que tudo
o que precisava era “voar” o mais
rápido possível para fora daquela floresta. E agora, desde o princípio eles
partiriam de carro, o que já seria de grande ajuda. Com a viatura eles poderiam
chegar rapidamente até o local onde estavam os carros dos pesquisadores.
A
decisão estava tomada. Antes, porém, uma conversa derradeira com a esposa
parecia pronta para dissuadi-lo.
- Acho que nem preciso
falar sobre qual foi a minha decisão, certo, meu bem?
- Creio que não. Mas
acho que você deveria ponderaras coisas mais friamente, Van.
(Primeira vitória: o fato dela já o estar novamente chamando daquela forma
era sinal de que a mágoa passara, ou estava por um fio).
- Nada no mundo vai me
obrigar a me separar de você, ou ao menos lutar para que isso não aconteça.
- Talvez seja melhor
você repensar sobre esse seu amor por mim e principalmente sobre todos os
problemas que permeiam a nossa relação. Será que vale mesmo a pena arriscar
altamente sua vida por isso?
- Mesmo antes de você
me dizer se terei ou não uma nova chance, eu sei que mil vezes valeria a pena
enfrentar a morte para não lhe perder.
- E quanto à índia
Cora?
- É uma bela jovem,
mas eu nunca quis nada com ela. Só provei o quanto me é penosa qualquer
hipótese de me afastar de você. Desista então de tentar me convencer de que a
opção dos índios não me seria tão ruim. Mesmo que você afirme que nunca mais
vai querer voltar para mim, não desejo ficar aqui, onde não terei qualquer
chance de lutar contra este destino.
Os olhos de Fátima
inundaram-se de lágrimas e ela finalmente deixou extravasar o que sentia:
- Também não quero ficar sem você. Eu o amo,
Van.
Ele sorriu e ela
se aproximou dele o mais que pôde. Os dois se beijaram profundamente.
Após
o beijo, porém, Fátima saiu dos braços dele e falou com uma tranqüilidade que o
assustou:
- No entanto, é melhor que você fique por
aqui.
Apesar de estar
ciente do espanto que causara ao marido, demorou ainda alguns instantes para se
justificar.
- Pelo menos por uns dois dias. Até lá
estará totalmente recuperado se ainda decidir ir embora. Aproveite bem o tempo
para refletir sobre como você quer que seja sua vida nos próximos anos. Será
que você poderá mesmo continuar agüentando a rotina louca do estilo de vida que
eu, sua esposa, escolhi, Van? Saiba que eu também vou aproveitar para avaliar
sobre que lição pude aprender disso tudo.
- Ao que parece, a
decisão que você tomou por mim também já é definitiva, não? – ele disse com
certa ironia.
- É o melhor a se fazer, por hora.
Vandersom não quis
mais argumentar. Ao menos ela lhe dera uma esperança de voltarem a ficar
juntos.
- Está bem. Eu concordo. Só me diga uma
última coisa.
- O que é?
- Quando eu for embora
daqui, e inevitavelmente eu irei, poderei ir ao seu encontro com as esperanças
renovadas:
- Daqui a 48 horas
estarei a sua espera no hotel da cidade mais próxima. Até lá, certamente já
teremos respostas definitivas sobre o segmento que pretendemos dar às nossas
vidas.
Ainda que
ciente das justificativas, ver a esposa partindo com os outros não foi, para
Vandersom, nem um pouco agradável. Teve a impressão de que nunca mais a veria.
Todavia, a idéia de Fátima parecia bastante lógica e apenas por um simples
motivo estava sendo difícil para ele a aceitar: mais uma vez, a esposa tomara
sozinha uma decisão que deveria caber a ambos. Parecia sem dúvida um prelúdio
de um futuro que em nada se alteraria, mesmo depois de tudo o que acontecera.
●
Nos
dois dias em que passou na aldeia, Vandersom praticamente não saiu de sua
cabana. Também porque precisava relaxar e refletir, mas principalmente para
evitar encontrar-se com Inayê, o
guerreiro que ele lograra e conseqüentemente ridicularizara na frente de todos.
Claro que depois toda a tribo ficou sabendo de tudo, mas por mais que o
guerreiro tenha recobrado parte de sua dignidade, muita dela tombara para
sempre junto com ele naquele ringue, a menos é claro, que houvesse uma nova
luta. O cacique havia garantido que tudo estava esquecido, mas por via das
dúvidas, queria evitar cruzar seus olhos com os do garoto.
Em
seu último dia na aldeia, uma grata surpresa ficou por conta da visita que
recebeu logo pelo amanhecer...
- Cora vir se despedir. Saber que Vander ir
embora mesmo correndo grande risco.
A menina parecia
muito bem. Apesar do curativo e da faixa em torno da linha do ventre, ninguém
diria que a menos de 48 horas levara um tiro quase mortal. Seu pai devia ser,
sem dúvida, um excelente curandeiro e toda a incredulidade da mente de
Vandersom a respeito do poder mágico e espiritual dos índios desaparecera
completamente.
- É a primeira vez que você me chama pelo
nome – ele disse a ela, sorrindo.
- Van...der...som – ela tornou a
pronunciar, emitindo lentamente uma sílaba de cada vez – Ser um nome bonito.
Ele
lhe tomou as mãos e ela o trouxe para um abraço apertado. Certamente já
compreendera que ele amava mesmo a esposa e jamais conseguiria deixá-la para
ficar com outra. Tudo o que eles haviam vivido fora apenas um acidente de
percurso em que talvez nenhum deles houvesse tido culpa.
- Obrigado por tudo – disse-lhe
Vandersom.
- Adeus – ela respondeu sorrindo e ao
mesmo tempo com os olhos cheios de lágrimas.
●
Cerca
de quinze minutos após ter deixado os limites da aldeia, o mal-estar voltou a
todo vapor.
Vandersom
ficou com a viatura do policial morto, para poder sair logo das entranhas da
floresta. Os demais haviam concordado em partir caminhando, já que para eles
não haveria nenhum problema para se chegar ao ponto de seus veículos, ainda
mais que alguns experientes índios conhecedores de todos os caminhos da
floresta ofereceram-se a eles como guias.
Agora
as fortes dores pelo corpo, principalmente nos membros e na cabeça, além de
intensos e arrepiantes calafrios voltavam a lhe acometer, como na noite em que
se contaminara com o tal vírus. Repentes contínuos de sonolência começavam a
tornar aquela sua estada ao volante extremamente perigosa. Ao que tudo indicava,
o velho pajé não mentira e provavelmente ele iria morrer nas entranhas daquela
floresta pelo vírus ou por acidente, sem sequer ter tido a chance de se
encontrar por uma última vez com Fátima.
O
carro, praticamente desgovernado, seguiu por um caminho irregular, por sorte,
cheio de moitas rasas que apenas o fizeram parar. Prestes a perder totalmente
os sentidos, Vandersom só teve tempo de fechar todos os vidros do carro.
Acordou
um pouco melhor disposto e teve uma surpresa: sentada ao seu lado no carro
estava Cora. Parecia bastante
apreensiva.
- O que você está fazendo aqui?
- Achar que salvando
você de novo.
Vandersom
relutou por um segundo e depois disse:
- Acho que você deveria desistir dessa idéia
fixa. Vai acabar herdando a minha maldição.
- Maldição
temporariamente suspensa.
Vandersom se
surpreendeu ao ouvir aquilo; no entanto, realmente parecia estar se sentindo
melhor. Ficaria feliz se fosse verdade, no entanto, o estado tenso da índia
indicava que havia algo mais.
- Como você sabe que a maldição está
suspensa?
- Olhar pescoço –
ela respondeu naturalmente.
Pela
primeira vez notou que pendurado em seu pescoço havia um estranho colar feito
com conchas, folhas e sementes.
- O que é isso? – quis saber.
- Ser mais poderoso talismã mágico de pajé.
Usando isso estar livre de qualquer feitiço e maldição.
Foi o bastante
para Vandersom se sentir aliviado.
- Não sei como agradecer.
- Não precisar –
ela respondeu sem quase alterar suas feições de alguém que parecia estar por
algum motivo em estado absoluto de cautela.
- Prometo que darei um jeito de devolver o
colar assim que deixar a floresta.
- Nunca mais poder
tirar colar, ou maldição o encontrar em qualquer parte do mundo.
No fundo,
Vandersom já esperava por aquilo. Afinal havia animais por todo o planeta e
mesmo que só os daquela floresta lhe afetassem, insetos e mesmo fungos, vírus e
bactérias sempre poderiam encontrar algum método de chegar até ele.
“principalmente os dotados de
consciência inteligente”.
- Tudo bem – conformou-se – Neste caso não terei qualquer problema em
usá-lo. Sinto-me ainda mais grato a seu pai, o pajé, que mesmo diante disso me
cedeu seu mais poderoso talismã.
- Cora dizer que colar
ser de pajé. Não dizer que ele o dar pra você.
Vandersom a olhou
incrédulo e ela sorriu marotamente.
- Você roubou o amuleto de seu próprio pai?
- Ser única maneira de
Vander escapar.
- Deveria ter me
consultado! Agora vou mais uma vez carregar a fama de trair a confiança dos
Aquanos. Mas que diabo!
Cora apenas
abaixou a cabeça entristecida. Vandersom sentiu-se imediatamente culpado por
ter esbravejado com ela. O que quer que a índia sentisse por ele, era de uma
dedicação espantosa.
- Desculpe – disse-lhe, acariciando seus
sedosos cabelos – Não quis ser rude.
- Cora não querer que
você se zangar com Cora – ela choramingou como uma criança mimada.
- Não estou zangado – e era verdade.
Afinal, o que custaria ao pajé ter-lhe oferecido de bom grado o tal colar por
vontade própria? Certamente deveria saber fazer muitos outros – Só estou preocupado com o que pode lhe
acontecer quando seu pai descobrir que você roubou o tal colar.
- Pai pajé bravo, mas
amar filha. Não aplicar castigo muito severo para sua conduta.
- Mas não haverá como
eu ter certeza disso...
- Não importar! Sem
colar Vander não poder cruzar floresta e voltar pra mulher que amar.
Vandersom se
aproximou grandemente dela e a beijou no rosto.
- Mais uma vez, muito obrigado.
Girou
a chave na ignição, mas o carro não pegou. O motor parecia adormecido como uma
múmia.
Vandersom
se precipitou a abrir a porta para descer do carro, mas Cora o conteve com um grito desesperado:
- Não descer! Lá fora haver perigo!
- Mas eu pensei que
com o colar a maldição estivesse acabada.
- Sim, mas onça estar
lá fora espreitando e isso não ter nada a ver com maldição. Ela ser caçadora e
não gostar da forma como você escapara da última vez. Ser agora pessoal.
- Mas que diabo de
floresta é esta onde o espírito humano de rancor e vingança perde de longe para
o de um bando de animais irracionais?
- Nós precisar escapar
com cautela.
Vandersom apanhou
a pistola que deixara no porta-luvas. Estava quase sem munição. No entanto,
talvez um ou dois tiros fossem mais do que suficientes para assustar a onça.
- Você deveria ter roubado também o colar
‘contra onças’, disse ele descendo do carro.
- Pensar em trazê-lo, mas não conseguir
distinguir do contra borboletas e capivaras – ela respondeu com a mesma
dose de humor.
Estavam
fora do carro e a onça os via.
De
mãos dadas começaram a andar pela floresta, olhando para todos os lados,
absolutamente certos de estarem sendo seguidos.
Se
por um lado Vandersom estava preocupado com a presença da onça como
perseguidora, por outro se sentia feliz por sua passagem voltar a espantar os
demais animais da floresta, como pássaros, esquilos e outros que apesar de seus
notórios instintos de auto-preservação, não fosse pelo colar que ele estava
usando, certamente estariam de forma petulante tramando ou investindo contra
ele.
Vandersom
empunhava a arma e Cora, uma pequena, mas bastante afiada faca.
Isso, todavia, os deixava longe de se sentirem seguros. Enfim, de súbito, a
onça surgiu; com um salto ágil se pôs diante deles, lançando fortes rugidos de
intimidação. Um pouco mais adiante estava a estrada, justamente por onde o
caçador não queria que as suas presas fossem.
Vandersom
e Cora imediatamente recuaram e se puseram a correr na direção contrária, ainda
que cientes de que poucas chances de
superar a habilidade velocista do animal. Naturalmente, também de imediato a
onça se pôs a persegui-los. E não costumava deixar escapar a mesma presa por
duas vezes.
Sem
parar de correr, Vandersom apontou a pistola e disparou na direção da onça,
sem, no entanto, atingi-la. Precisaria mirar melhor e o simples descuido de
parar para fazê-lo certamente selaria o seu destino.
Por
outro lado, o astuto animal percebendo que se se aproximasse muito poderia ser
atingido, limitava-se, ao menos temporariamente, a persegui-los a uma certa
distância.
- Querer nos
encurralar – Cora falou para Vandersom.
- E ao que tudo
indica, logo vai conseguir.
- Dever nos separar.
Você tomar dianteira e Cora virar em próxima clareira.
- Se fizermos isso,
certamente ela irá ao seu encalço.
- Sozinha Cora ter
muito mais chances de enganar onça. Guerreiro Inayê ensinar vários truques para
escapar de onça em mata. Além disso, Cora subir árvores e esconder-se entre
arbustos como ninguém.
Era verdade. Se a
velha onça tivesse que optar por ter que seguir um dos dois, certamente estaria
fazendo a pior escolha se decidisse pela garota selvagem.
“isto, desconsiderando que seu
velho anjo da guarda tem sido um trabalhador assíduo e incansável, certo meu
caro Vander?”.
- Cora agora diminuir
ritmo para dar à fera sinal de estar cansada. Você correr mais que puder por
esta mesma trilha.
Sem dúvida, a
autoridade em suas palavras indicava que tinha tudo para ainda vir a se tornar
a líder de sua tribo.
- Não sei ainda se
isto é o melhor a se fazer, Cora.
- Ser melhor sim. Como
estamos, onça nos pegar logo. E para Cora, ser moleza se livrar de perseguições
se não tiver de se preocupar em garantir também segurança de homem branco
desajeitado.
Ele
sorriu. Evidentemente era o jeito de ela dizer que tudo mais uma vez iria ficar
bem. Seria mesmo?
Enfim,
a decisão estava tomada e a valente guerreira já estava ficando para trás.
●
Assim
que o caminho se dividiu em uma clareira, Vandersom passou por ela
desapercebido, mas Cora, absolutamente
atenta, passou a correr por aquele campo aberto, torcendo para que o animal a
seguisse. Chegando a tal divisa, a onça relutou um pouco. Embora fosse mais
fácil investir contra a presa que, teoricamente já demonstrando sinais de
esgotamento ficara para trás e ainda por cima, escolhia um caminho bem mais
vantajoso para o próprio perseguidor já que a clareira, ao contrário da mata
densa, oferecia muito menos obstáculos e empecilhos no caminho, favorecendo o
mais veloz, seu interesse pela primeira presa que se adiantara, (no caso,
Vandersom), também parecia ser muito grande, (talvez até maior do que pela
índia). Somente após tensos instantes tudo veio a decorrer como a astuta
indígena planejara e a onça, pela clareira, pôs-se em seu encalço.
◙
Após
correr por mais algum tempo, Vandersom percebeu que nada mais havia em seu
rastro e pôde diminuir o ritmo e voltar a caminhar. Com alguma dificuldade seu
compasso respiratório ia ser reajustando; mais uma vez ele escapara de um
tremendo apuro.
“mas Cora está em perigo!”
“Impossível!”
Ele argumentou com
sua própria mente.
“Sem minha presença para retardá-la, ela
despistaria aquela velha onça em dois tempos”.
“na mata talvez sim; mas não em
campo aberto”.
“Cora era muito
esperta. Poderia perfeitamente retomar o caminho da mata, afinal, a clareira
nem era tão larga.”
“...e certamente a ausência desta
certeza não irá impedir que o velho e sortudo Vander continue a seguir com sua
vida numa boa, não é mesmo?”
Ainda
não estava plenamente recuperado da correria, mas novamente se lançou em
carreira, desta vez em direção aonde se dispersara de sua amiga e de seu algoz.
♦
Cora tropeçara e caíra deslizando por um
barranco íngreme. Só estava viva quando Vandersom chegou porque mesmo a onça
parecia estar encontrando muita dificuldade para chegar ao ponto onde ela
estava. Todavia, já estava a mais de meio caminho. Geralmente onças não se
arriscam tanto por carne humana, mas aquela tinha um instinto assassino e uma
determinação fora do comum.
Cora se encontrava sentada, com as mãos
apoiadas numa perna, aparentando pouco ou nada poder fazer além disso. Devia
estar fraturada. A onça se aproximava descendo lentamente pelo barranco,
escolhendo minuciosamente os pontos no chão por onde poderia pisar com
segurança.
Vandersom
gritou do topo, para chamar a atenção do bicho:
- Não acha mais interessante vir buscar a
mim, maldita?
A onça, vendo-o,
rugiu cheia de furor.
Cora, de seu ponto, também gritou:
- Não! Vandersom ir já embora! Nem dever ter
voltado afinal...
- Voltei porque é o
que certamente você teria feito por mim, menina, mesmo sem eu nunca ter lhe
prometido nada em troca.
- Cora não querer você
morrer – ela disse chorando.
- E eu também não. Mas depois de tudo, se
alguém tem que morrer, o mais justo é que seja eu, não você.
Infelizmente, a
onça se sentia muito próxima de Cora
para desistir da recompensa e recomeçar a subida em direção a sua outra caça
que a incitava.
Sendo
assim, ignorou as provocações de Vandersom e continuou rumo à mulher
encurralada.
- Ei, desgraçada! – inconformou-se
Vandersom – Volte aqui! Venha me pegar!
Tenho certeza de que é a mim que você quer.
Vandersom começou
a atirar pedras nela, mas era muito difícil a acertar num terreno tão
irregular.
Lembrou-se
da arma.
Era
sua única chance. Só que não sabia quantas balas tinha e se, sendo só uma ou
duas, por infelicidade ele errasse o alvo, Cora,
sem dúvidas, estaria perdida.
Precisava
atrair a onça para perto de sua mira.
- Ir embora agora, Vandersom! Onça já fazer
sua escolha e Cora ter velho canivete para cortar-lhe garganta.
- Gostaria de
acreditar nisso, querida, mas em suas atuais condições não creio que sua
faquinha possa lhe garantir qualquer proteção.
A onça já estava
chegando bem próximo e não havia mais o que esperar. Vandersom tirou pelo alto
da cabeça o colar mágico que estava usando e soltou-o no chão. Teve a
impressão, (quase uma certeza), de sentir novamente cair sobre si o peso da
maldição. Contudo, seu objetivo também fora alcançado. A onça pareceu perder
completamente o interesse pela índia, sua vítima tão mais próxima, e outra vez
se voltara para rugir para ele.
- Isso mesmo. Venha. Não era, no fundo, o
que você mais queria?
Imediatamente a
onça começou a escalar de volta pelo barranco, com muito menos cautela em
escolher o caminho, o que revelava uma raiva e uma pressa muito mais crescente
do que sua fome.
- Não... – choramingou Cora, ciente de que nada mais poderia
fazer.
Absolutamente
compenetrado nos movimentos da onça, Vander nada pôde fazer quando uma pequena
e multicolorida ave pousou próximo ao lugar onde se alojara o colar,
arrebatou-o no bico e se lançou para o alto, cruzando as folhagens das árvores
e ganhando o céu. Dava adeus assim, definitivamente a sua imunidade.
●
Dificilmente
a onça, naquele momento, desistiria dele e tornaria a se voltar para Cora, mas ainda assim, Vandersom
preferiu aguardar que ela chegasse bem perto antes de permitir que ela notasse
a arma. O animal imediatamente reconheceu um perigo com o qual com certeza não
contara. Rosnou como um grande gato acuado e retraiu-se.
Vandersom
disparou e atingiu-lhe um pouco acima das costas. A onça quase escorregou indo
rolar com tudo até as grandes pedras no fundo do barranco, mas conseguiu ainda
se firmar no chão graças às afiadíssimas garras.
Vandersom
tornou a engatilhar a arma. A onça ficou imobilizada. Reconhecia, sem dúvida,
que sua situação era crítica. Devia ‘conhecer’ bem a fama das armas implacáveis
dos humanos caçadores.
- Sinto muito, amiga, mas é você ou eu.
Seria ele. Tornou
a disparar para ouvir o “clic” seco
da arma absolutamente vazia.
●
- Não dá para acreditar nisso. Acho que Deus
nomeou algum lunático para desenhar meu mapa-astral.
A onça pareceu
entender imediatamente que uma nova virada acontecia. Certamente a tal maldição
ampliava a inteligência daqueles bichos.
Vandersom
se pôs novamente a correr, aproveitando a pouquíssima vantagem que tinha antes
que o animal enfurecido alcançasse o topo do barranco.
Desta
vez estava sozinho contra a onça e contra toda a floresta e, no entanto se
sentia feliz por crer pela primeira vez ter feito a coisa certa.
Foi
questão de tempo, (e não muito), para que a onça o alcançasse. Ele apenas
tropeçou em alguma raiz ou pedra e caiu, exausto demais para pensar em se
levantar. Fechou os olhos e aceitou tranquilamente a idéia de terminar como
banquete. Esperou pela primeira mordida a lhe destroçar a carne e os ossos de
qualquer parte do corpo, mas a demora angustiante pela concretização de tal
fato fê-lo imediatamente se lembrar de que as coisas costumavam acontecer para
ele de forma um tanto... digamos, diferente...
Abriu
os olhos e viu a onça a poucos metros dele; estava caída e tinha uma flecha
cravada no meio da testa.
Uma
sombra começou a se formar sobre a fronte de Vandersom e diante dele surgiu
seu, (aparentemente ex), desafeto, o índio Inayê,
filho do cacique e grande guerreiro
da tribo dos Aquanos.
- Homem branco ter sorte de Inayê estar por
perto.
Era
óbvia mentira. Certamente ele fora ali por vontade própria, ou a mando de
alguma autoridade da tribo, seu pai, ou o pajé. Não importava. Era mais do que
justo que o índio ainda pudesse exercitar um pouco de seu orgulho ferido.
- Sorte é minha
palavra predileta – respondeu-lhe Vander com humor. – Também você, então, já fala a minha língua...
- Sim. Aliás, cacique
achar importante que a partir de agora toda tribo aprender língua, cultura e
costumes dos brancos. Principalmente os bons costumes – acrescentou.
Vandersom
compreendia bem aquele desejo. Seu coração também se enchera de respeito e
consideração por aqueles a quem já havia considerado meros selvagens, quase
como subespécies da raça-humana.
- Cora está ferida – lembrou-se de
súbito.
Um
pouco mais adiante, a própria Cora surgiu
amparada nos ombros de seu pai, o pajé.
- Como vocês nos encontraram? –
Vandersom quis saber.
- Vigiar seus passos desde que os dois
deixar aldeia.
- Quer dizer que em
momento algum estávamos verdadeiramente sozinhos com a onça?
O índio jovem
assentiu com a cabeça e mostrou o arco.
- O tempo todo Inayê ter cabeça de onça em
mira de arco.
- Papai também saber
que Cora roubar colar? – Cora
perguntou ao pajé.
O
velho assentiu complacente, não demonstrando estar aborrecido ou zangado.
Inayê concluiu o que tinha a dizer.
- Pajé acreditar que guerreiro branco estar
pronto para se libertar de maldição.
- E é verdade – concordou Vandersom – se ainda me for permitido, vou voltar para
tribo e arcar com todas as minhas responsabilidades. Juro que acatarei qualquer
castigo que me for imposto.
- Vai aceitar viver longe de seu grande
amor? – perguntou-lhe incrédulo o pajé.
- Sim. Só gostaria de dizer que não sou nem
nunca serei digno de me casar com a valente índia Icoracy. Certamente ela
nasceu para viver ao lado do mais bravo guerreiro e futuro líder da tribo, este
sim, extremamente digno de desfrutar de seu amor.
Cora e Inayê entreolharam-se. Ela sorriu
para ele que embora se esforçasse ao máximo para se manter sério, não conseguia
tirar os olhos daquele sorriso.
- Os dois – Vandersom continuou – unidos, sem dúvida, formariam a base da
estrutura fortalecida que asseguraria a longevidade plena da tribo dos Aquanos.
Será uma honra me tornar um aquano se for preciso, mas não creio ter a menor
condição de ser o seu líder.
- Tudo que pai cacique dizer continuar
valendo – falou Inayê – Pode seguir
daqui seu caminho ou voltar para tribo dos Aquanos. Talvez até conseguir cruzar
floresta sem ser morto. Ser difícil, mas não impossível.
Neste exato
momento caiu do céu bem aos pés de Vandersom, sem que mais nenhum dos que
estavam ali percebessem, algo que tornou o ‘quase
impossível’ em ‘muito mais do que
provável’: o colar.
Olhou para
cima e viu sobre um galho altíssimo a ave que apanhara o colar bem diante dele
no penhasco. Lembrou-se do pensamento sobre o mapa-astral e riu.
Ele, que ainda
estava caído, quase que por instinto, apoiou as duas pernas sobre o colar,
ocultando-o da visão dos demais.
- Quer dizer que se eu quiser ir embora
agora vocês não vão tentar me impedir? – perguntou-lhes em um tom de voz
travesso.
- De forma alguma, disse-lhe o pajé.
Mais uma vez
os bons ventos voltavam a soprar a seu favor. Estava se habituando àquilo. Era
como se vivesse numa roda-gigante enlouquecida que ia constantemente do ápice
ao total declínio. Mas até quando se estenderia isso: Não seria essa
inconstância sua verdadeira maldição, como uma roda kármica inconformada lutando com todas as forças contra a tenebrosa
sorte de um filho-da-mãe? Até quando
ele e as pessoas com quem se importava continuariam a escapar, (ainda que por
um triz), da gana das perigosas confusões que os assolavam?
- Pelo visto, decidiu-se por partir –
falou o pajé, interrompendo seus pensamentos.
- Não sem antes lhe devolver isso –
respondeu Vandersom, revelando o colar oculto sob suas pernas juntas.
Cora e Inayê se surpreenderam com a
revelação. O velho pajé, nem tanto.
- Pode ficar com ele, guerreiro branco,
embora não possua mais a utilidade que você pensa.
Vandersom
estranhou.
- Quer dizer que o colar não neutraliza mais
a maldição?
O pajé sorriu.
Parecia estar se deliciando com a surpresa de todos.
- Não há mais maldição. Ela foi quebrada e
toda a floresta agora ser sua amiga, assim como os Aquanos.
Isso
explicaria a atitude do pássaro, devolvendo-lhe algo que embora não mais
necessário, havia-lhe sido tirado. Mas era preciso entender os motivos do
término repentino daquela sina.
- O que está tentando dizer é que desde que
eu siga com vocês, abrindo mão de Fátima, a maldição estará terminada, certo?
- Nunca lhe dizer que você ter que abrir mão
de sua esposa, mas sim do que você mais ama.
- Fátima é quem eu mais amo neste mundo,
velho – asseverou Vandersom, aborrecido.
- Talvez agora sim. Desde o momento em que
abriu mão da chance clara de escapar para tentar salvar pequena Cora. Porque
antes disso, o que sempre você mais amou foi sua própria vontade de sempre se
sair bem de tudo.
Vandersom
permaneceu mudo, incapaz de refutar o que o velho dissera, afinal, se tratava
da mais pura verdade. No fundo, sempre aplaudira aquilo que chamava de sorte,
mesmo que algumas vezes reconhecesse que para se dar bem deixara para trás
alguém injustiçado. Claro que tal sentimento naturalmente passava e ele podia
voltar tranquilamente a levar sua vida normal. Afinal, era a lei da
sobrevivência. No entanto, quando percebeu que alguém que tanto fizera por ele,
tornar-se-ia mais um de seus muitos sacrificados, questionou até que ponto
valia à pena vencer a todo preço. E apesar de todas as suas pseudo-vitórias, somente a última
mostrou-se ser a que realmente valeu à pena, pois preservara acima de tudo sua
consciência em paz.
- Pode ficar com colar – finalizou o
pajé – Ainda ser ótimo amuleto.
- Eu preferiria dar a alguém, se não se
importar.
- Claro. Ficar a vontade.
Vandersom
aproximou-se de Cora e colocou-lhe o
talismã no pescoço.
- Obrigado – disse a ela mais uma vez.
- Ser feliz, Vandersom – ela disse,
abraçando-o.
- Você também.
Após o abraço
ela sorriu e voltou para os braços de Inayê,
onde já se encontrava havia algum tempo.
- Adeus a todos.
- Adeus, guerreiro branco.
●
Colocara-se
numa situação bastante aflitiva, (pra não dizer estúpida). Se ele não chegasse
na hora marcada, como saberia se ele estaria bem e apenas desistira dela, os se
agonizava no meio da floresta, repleto de insetos pelo corpo a torturá-lo até a
morte?
Agora seu
louco desejo era ir imediatamente atrás dele, mas e se se desencontrassem?
Caminhou até a
portaria e fechou a conta do hotel. Estava na hora e Fátima não tinha a menor
idéia sobre o que faria. Apanhou o folhetim local no balcão da portaria. O
corpo do policial fora encontrado. Havia sido alvejado bem na testa de longa
distância, provavelmente por algum caçador surpreendido com dezenas de peles de
onça, ou um grupo de traficantes de madeira-de-lei. Aquilo poderia se tornar um
problema se a arma do crime fosse encontrada, pois estava no nome de Vandersom,
mas não havia outra solução além de deixar que a polícia se prendesse a tais
hipóteses. Bem mais complicado seria fazê-los acreditar que o pobre homem fora
morto por um chimpanzé que estava de marcação com o seu marido.
O carro
alugado estava na garagem. Deveria ser deixado no aeroporto da cidade.
Fátima entrou
no carro e ficou pensativa. Poderia seguir para a estrada que levava à floresta
ou para o aeroporto. Baixou a cabeça sobre o volante, absolutamente assolada
pela indecisão. Suportaria voltar até a aldeia e reencontrar Vandersom já nos
braços da indiazinha? E quanto a achá-lo morto, parcialmente devorado a poucos
metros da saída da floresta? Seria melhor opção? Ouviu, então, delicadas batidas
no vidro do carro.
Vandersom
estava sorrindo e Fátima imediatamente também explodiu num sorriso de puro
alívio.
- Não vai me deixar entrar? – perguntou
após alguns instantes daquela visível felicidade.
- Claro – ela assentiu, abrindo a tranca
do banco ao lado do motorista. Ele deu a volta e se sentou ao seu lado. Tinha
nas mãos um embrulho.
- Pra você, disse, colocando o volume em seu colo.
- O que é? – ela perguntou cheia de
curiosidade e já principiando a desembrulhar o pacote.
- Sinceramente é uma pergunta difícil de
responder.
Era um
cãozinho. Um filhote do mesmo tipo do que Vandersom havia acidentalmente
atropelado. Aquela raça era extremamente sagrada para os índios.
- Oh, Van, ele é lindo – desmanchou-se
ela.
O cãozito
saltou do colo dela para o dele.
- Ei! Parece que suas diferenças com os
habitantes da floresta estão mais do que resolvidas.
- Sim. E desta vez fiz tudo certo, meu bem.
Nada tenho pelo que me envergonhar.
- Estou orgulhosa de você, querido.
- Bem – disse ele, enxugando uma lágrima
– podemos ir para casa, então?
- Por que a pressa? Depois de tanto tempo
dormindo em redes e se banhando em rios, não gostaria de curtir a hidromassagem
do hotel?
Ele a agarrou
e os dois se beijaram profundamente.
≈
XV –
GÁRGULAS
- Pois bem. Claro que eu não vou ser
hipócrita de dizer que aqui no asilo alguém gostava do finado padre Bento.
Seria mais justo dizer que a grande maioria o odiava. Isto não quer dizer que
eu saiba quem o matou só porque sou o morador mais antigo deste inferno; oh
desculpe – censurou-se, mas com um toque de ironia – desta digníssima e acolhedora casa de repouso.
- Não precisa se sentir acuado, seu Antônio –
disse-lhe a jovem investigadora – Quero
sempre deixar claro que não o estou acusando de nada. Apenas faço umas
perguntas para tentar esclarecer algumas coisas, certo?
- O problema não é com você, filha.
Definitivamente não. Sou um velho e a resignação parece ser também uma doença
típica da velhice. Mas, assim como o corpo, que no decorrer dos anos se enche
de chagas, desperta em determinados dias com lampejos de saúde e vitalidade
imponderáveis que quase levam muitos velhos alquebrados a correrem para o
bordel, nossa alma também às vezes se farta de tanta resignação e regurgita emoções
tão vibrantes que fariam sacudir as montanhas do Himalaia.
- O que o senhor quer dizer com isso?
- Quero dizer que o padre Bento, a despeito
de sempre ter mesmo falado demais, acabou vendo enfim o dia em que sua linguona
comprida e arrogante externou sua resignação de forma atrevida demais.
- Como assim, Seu Antônio? Ficarei muito
agradecida se o senhor me contar tudo o que sabe, para que eu possa entender
melhor.
- É o que vou fazer, detetive, embora não
ache que você tenha motivos para me agradecer por isso. Mas, sei que faz bem o
seu trabalho e espero que ele lhe valha os riscos. É católica, Srta. Deise?
- Já fui. Hoje apenas acredito em Deus.
- Faz bem. Talvez vá mesmo precisar Dele se
quiser resolver este caso.
●
- Devo lhe confessar que nunca fui católico,
mas quando conheci o padre Bento até passei a simpatizar com a doutrina. O
safardana, com aquele jeito atarracado e sua extrema timidez, tornava-se um
leão quando defendia os preceitos de sua santa igreja. Inclusive foi dele,
junto com mais algumas beatas e herdeiros de velhos empresários da cidade,
loucos para se livrarem dos pais que insistiam em manter seguro o
‘freio-de-mão’, a iniciativa de fundarem este asilo, chamado a princípio apenas
de casa de repouso, no mesmo terreno da paróquia. Certamente ele não contava de
que um dia fosse enlouquecer aqui dentro e acabar também como um interno. Veja
bem, ele nunca admitiu que fosse louco e creio que concretamente também nada se
pôde provar, mas quando ele se pôs a vomitar em suas missas, ainda que de forma
dissimulada, em espécies de parábolas, todos os maiores e mais graves pecados
cometidos pelas pessoas da cidade e a ele declarados em confissão, logo todos
concordaram que o trancafiarem definitivamente em seu próprio asilo,
sentenciando-o de vez como louco, era a única forma de neutralizar as sementes
de intrigas que ele lançara.
O velho parou
para coçar a barba rala que parecia ter sido esquecida apenas nas turbulências
dos últimos dias. Então continuou:
- Claro que ele poderia ter acidentalmente
morrido já naquela época, mas isso certamente fortaleceria as sementes para que
brevemente germinassem. Assim, o Dr. Valmir Perez, excelentíssimo juiz que,
segundo um dos relatos bombásticos do padre, era integrante e um dos cabeças de
uma quadrilha especializada em roubo de cargas com assassinato de
caminhoneiros, teve prazer em assinar a intervenção mental do padre que
desembestara a falar coisas que não devia e que só não seria execrado e
excomungado da igreja porque os envolvidos trataram de providenciar um laudo,
ainda que forjado, atestando sua loucura e em conseqüência lhe desmerecendo
qualquer crédito. E embora padre Bento, ainda que absolutamente ausentado de
culpa tenha errado gravemente quebrando o sacro juramento de não revelar sob
hipótese alguma confissões, os crimes cometidos contra a ética pelos supostos
ofendidos da cidade também se disseminaram numa torrente, ainda que muito bem
disfarçados dentro da lei.
“Mas nenhum deles cometeu realmente um crime”, a senhorita poderá
dizer. E não mesmo; apenas o de saberem que o padre era inocente.
●
- O médico-legista,
elaborador do laudo atestando a incapacidade mental do padre, adorava fornicar
com os cadáveres das mocinhas que chegavam para a perícia no IML, vítimas de
afogamentos, acidentes e até crimes passionais, desde que não estivessem muito
desfiguradas, quase sempre durante os seus plantões noturnos; tinha um
interesse todo especial pelas pré-adolescentes de sete a doze anos.
“Que criminoso sou eu?” – dissera ao padre,
quase exigindo nas entrelinhas a absolvição de sua alma – “Ao menos faço depois
que elas estão mortas” – mas se algum dia lhe tirassem os cadáveres, certamente
procuraria por alvos móveis.
Era o caso do mais popular e respeitável
vereador da cidade, que foi carro-chefe da campanha de interdição do padre.
Quase sempre em tempo de campanha, contratava dezenas de meninas e
pré-adolescentes carentes para entrega de panfletos. A maioria delas sofria
abuso sexual em seu próprio gabinete durante as suas famosas ‘entrevistas
particulares’, que geralmente asseguravam além de um empreguinho chinfrim caso
ele assumisse o mandato, também uma modesta, (pra não dizer insípida e
miserável), ajuda financeira às famílias das vítimas que por necessidade, mas também
por medo, viam-se obrigadas a aceitar tudo de bom grado e em absoluto sigilo.
No caso de uma ou outra denúncia chegar até a delegacia, era logo abafada pelo
próprio delegado que pouco interesse tinha por se envolver nos ‘assuntos’ do
rico vereador. Sua principal missão, a que se empenhava com extremo afinco,
consistia em dar a máxima cobertura aos grupos rivais que dominavam o tráfico
da cidade. Isto, é claro, sem que cada um deles soubesse que a lealdade jurada
pelo delegado fosse tão polivalente. Ele também se comprometeu a vigiar de
perto o padre e de um jeito ou de outro, assegurar que ele cessasse com aquela
perigosa falácia. Até as beatas que o ajudaram na implantação desta casa de
repouso e que sempre somente haviam se derretido em elogios, (até demais), ao
velho padre, na época, nem tão velho, se auto-proclamaram imperdoavelmente
ultrajadas quando veio a lume para correr livre pelas principais rodas de
fofocas da cidade a história de que a mais velha delas, tida até como uma
espécie de líder das distintas e de conduta irretocável senhoras católicas,
teria se declarado ao padre, no ato da confissão, relatando-lhe todos os seus
pensamentos pecaminosos que pululavam sua mente fazendo explodir as mais
intensas sensações por todo seu corpo, o que invariavelmente culminava em
violentas masturbações durante a noite, em pleno leito, tendo ao lado o marido
dorminhoco e babão, mas na sua imaginação, apenas a presença do padre, seu amor
secreto e proibido. Desta forma, também assim as velhas aplaudiram a reclusão
imediata do padreco, com seus impropérios e blasfêmias, a um asilo. Ou seja,
poucos existiam na cidade que não haviam tido motivos para querer o tal padre
louco fora de circulação. O asilo, ao menos provisoriamente, surgiu como melhor
opção. Só que trancafiar o padre Bento aqui foi a pior coisa que eles fizeram,
pois justamente aqui estava a coisa que o estava deixando realmente doido,
entende?
●
- Elas começaram a chegar cerca de um ano
após o início das atividades da casa de repouso no terreno da paróquia. Nesta
época, o padre Bento, com sua empatia já era querido por todos, desde
empregados, auxiliares, até os próprios internos, a quem ele sempre parecia ter
guardadas sábias palavras de encorajamento e conforto, não às vezes, sem uma
boa dose de humor, capazes de ajudar qualquer um a se sentir melhor. Se a Srta.
o tivesse conhecido, principalmente nos últimos tempos, levantar-se-ia agora e
iria embora, esboçando um sorriso falso de agradecimento, mas sairia daqui
dizendo a toda pessoa sã que encontrasse que toda lucidez mental do velho Seu
Antônio embarcou há muito tempo num foguete para fora do sistema solar.
- Não é verdade. Até que me prove o
contrário, não tenho por que duvidar do senhor.
- Agradeço a sua confiança. Confesso que
esperei durante quarenta anos em meu casamento para ouvir estas mesmas palavras
que a Srta. me disse e elas nunca vieram.
- Não precisa me chamar de senhorita. Aliás,
nos dias de hoje ninguém mais fala assim.
- Os tempos não mudam, Srta. Deise. As
pessoas sim mudam radicalmente e esse monstruoso contraste entre o que é e o
que elas querem que seja é que nos conduz ao caos em que estamos vivendo.
- Está certo. Mas continue me contando sua
história. Falava de pessoas que chegaram depois do início das atividades desta
casa.
- Não sei se bem as definiria chamando-as de
pessoas. Talvez o termo mais apropriado, embora macabro, seja “não
pessoas”. Isto mesmo –
parabenizou-se – As malditas coisas
falam, se movimentam, andam, mas não são pessoas; são imagens. Não meros
espectros etéreos que talvez nem pudessem nos fazer mal, mas imagens esculpidas
de gesso, ou madeira, ou qualquer outro material do inferno. Imagens de santos
católicos...
†
A idéia de alegrar e proteger o asilo, além
de ampliar a fé e em conseqüência acalentar a alma dos que vivem neste ambiente
por meio de diversas imagens de santo partiu do próprio padre Bento, no que foi
muito aplaudido por sua equipe, principalmente pelas velhas “papa-missa” que
hoje devem estar saltitando sobre o caixão do pobre homem. Ele acreditava mesmo
que as imagens são um estímulo insubstituível à fé dos católicos. Também sabia
que justamente daí provem o argumento dos protestantes de que a fé católica é
materialista, por só acreditar, como Tomé, no que vê. Admitia ser um argumento
forte já que qualquer um, crédulo ou não, costuma acreditar no que vê. Em
contrapartida, para ele, a falta de uma visualização concreta que
personificasse sua crença, faz com que muitos evangélicos se sintam órfãos e
passem apenas a fingir e se apoiar num palavrório vazio. Isto sem falar que
algumas imagens, como a de Cristo, ou dos próprios anjos, estão tão impregnadas
em suas consciências e em seus corações que mesmo que nem sob pena de morte
admitam, ver-se-iam perdidos e desamparados se não pudessem se valer delas em
seus momentos de contato íntimo com o divino. Bem; na verdade sei que a
detetive não está aqui para debater sobre religião com um ateu velho e
desenganado, então deixemos de lado estas concepções pessoais do padre Bento.
- Pode discursar à vontade – ela o
redargüiu com simpatia – Tenho bastante
tempo para ouvi-lo.
- A continuar a discursar assim, a Srta.
logo verá este velho apaixonado.
Ela sorriu e
ele retribuiu. Estava estabelecido um grande elo de amizade.
●
- Pelo que eu soube, elas vieram da grande
catedral do Estado. Encontradas em uma velha capelinha nas ruínas de uma
micro-cidade que simplesmente sumiu do mapa, talvez devido à expansão econômica
e industrial das cidades vizinhas, talvez por algum desses tenebrosos
acontecimentos típicos de cidades-satélite, que raramente chegam ao
conhecimento de alguém fora dos limites da própria cidade, ou por qualquer
outro motivo, as imagens foram endereçadas à capital, onde passaram por um
processo delicado de restauração. Estimou-se que elas têm mais de duzentos
anos. Demorou quase um ano para que o ofício com a solicitação do padre Bento
fosse aprovado, mas enfim, as imagens foram autorizadas a serem liberadas da
capital para este nosso humilde asilo.
- Mas por que mandariam para cá, em vez de
imagens de santos comuns, outras que foram tão zelosamente tratadas e até com
um certo valor histórico?
- Aí é que está, Srta. Deise. Isto seria
realmente inconcebível, a menos que quisessem se livrar delas.
●
-
Quando as autoridades maiores da diocese
do Estado autorizaram a liberação de algumas imagens da catedral para a pequena
casa de internação e repouso da cidadezinha, não poderiam conceber que o
cardeal-mor da catedral se aproveitaria da oportunidade para se livrar das tais
imagens recém descobertas e que desde a chegada vinham lhe causando intensas
sensações de mal-estar, principalmente durante a noite, fazendo-o tirar todas
as imagens, quadros e referências de santo de seu quarto e ainda assim, só
conseguindo pensar em tentar dormir após dar a terceira ou quarta volta na
tranca da porta do seu quarto. Era a oportunidade que há muito ele vinha
esperando, pois se futuramente indagado, poderia simplesmente alegar um
equívoco pela dispersão das imagens. Às vezes me pergunto como ficou sua
consciência após ter mandado seus maiores pesadelos para cá e a resposta
geralmente é que, ao menos nos primeiros momentos, fora para ele a coisa mais
fácil do mundo ignorar sua consciência. Quando, enfim, ela o trouxe aqui e ele
me contou tudo o que estou lhe dizendo, ao menos para o padre Bento, já era
tarde demais.
●
- Sem dúvida as
imagens foram recebidas com muita alegria por todos os que aqui viviam.
Todavia, embora nunca me tenham confessado, aposto que, assim como eu, todos
logo começaram a perceber que havia alguma coisa errada com as estátuas. Seus
olhares sombrios cercavam o ambiente a nos espreitarem. Comentei certa vez
sobre o assunto com o padre Bento e lhe juro que desde meus tempos de
travessuras na escola não recebia um sermão tão duro. Certamente ali elas já o
aliciavam.
●
- O senhor está
dizendo que as diversas imagens deste lugar possuem uma espécie de
personalidade macabra?
Só então a
detetive Deise pôde perceber claramente que a certa distância, uma das imagens
parecia lhes observar. Como não era especialista em santos perguntou a Seu
Antônio:
- Aquela imagem ali de quem é?
- Aquele é Pedro: o
mais famoso deles. Vê as duas chaves que ele carrega? Uma é de ouro e a outra é
de prata. A de prata abre para nós os tesouros da Terra e a de ouro nos dá
acesso aos tesouros do céu. Escolha a sua, detetive.
●
- Elas passam o dia
como estátuas comuns de madeira, gesso, ou qualquer outro material de que se
fazem estátuas. No entanto, a certa hora da noite, algo lhes acontece e as
coisas começam a ganhar movimentos e inteligência. Sim, se tornam extremamente
astutas. Acha que parece loucura, Srta. Deise? – ele deu um tempo para que
ela respondesse, mesmo sabendo que não o faria – É claro que parece e é loucura – continuou – mas é a verdade. E se estou louco, estou com muita propriedade, pois
não hesitei em explodir com um tiro a maldita cabeça de São Sebastião.
●
- Sempre fui um ateu
conformado, se é que me entende, Srta. Deise. Na infância ia às missas obrigado
por minha mãe; fiz a primeira comunhão, da mesma forma, contra minha vontade e
justamente por isso, em minha vida adolescente e adulta o catolicismo tornou-se
um sinal muito maior de sacrifício e privação da liberdade do que de satisfação
espiritual. E isso absolutamente não mudou quando vim para cá sob decisão de
minha família.
- Por que eles não
puderam ficar com o senhor? Não me parece, sob hipótese alguma, um homem
inválido ou incapaz.
- Por que ficariam? A
família estava crescendo e a casa proporcionalmente diminuindo. A gravidez de
minha filha pareceu ser a desculpa perfeita para o meu genro aproveitador
explicitar seu desejo de se livrar de mim. Eu confesso que no começo poderia
ter simplesmente ido embora, mas não fui porque achei que estando ali, com o
cretino debaixo de minhas barbas logo o conseguiria pegar no pulo em alguns de
seus muitos desvios de caráter e provaria à tonta da minha filha que ela
escolhera como marido um membro da pior espécie de mulherengo sem escrúpulos e
aproveitador. Por capricho do destino e também por uma certa astúcia do
salafrário nunca pude comprovar nada. Pior do que isso foi descobrir
tardiamente que o diabo vinha colocando alguma droga hiperestimulante ou sei lá
o que nas minhas garrafas de Wiscky. Sou um apaixonado por wiscky, mas nunca
minhas doses diárias me apartaram por mais de um segundo de minha consciência.
No entanto, seja lá o que o famigerado colocava naquelas garrafas, deixava-me
mais doido do que aqueles hamsters de laboratório perseguindo queijo, e eu me
punha a falar e fazer sem qualquer pudor tudo o que eu queria e não queria,
podia e não podia. Daí até o canalha convencer minha filha a me trancafiar como
alcoólatra foi um pulo. No fundo sempre foi o que ele quis. Não me queria solto
por aí usufruindo de um patrimônio que também é meu. Pra isso se casou com
minha única herdeira.
- E quanto a sua
esposa?
- Roberta se foi antes
do casamento de nossa filha. E ela é que teve sorte de não ver sua menina
ajuntada com um traste da pior espécie. A esta altura estaria aqui comigo, ou o
maldito a estaria infernizando tanto que logo a mataria.
- Sua filha não se
recente por deixá-lo aqui?
- Verônica é uma mimada.
Sempre teve tudo que quis. Na única vez que fomos contra a postura de um de
seus namorados ela acabou se casando com ele. E ele sabe muito bem como
manipulá-la, fazendo-a sempre pensar que é ela quem está por cima. Mas qualquer
tentativa para abrir seus olhos de minha parte é vista como um ato de
implicância e autoritarismo. Assim, admiti que o melhor é que ainda por duras
penas ela aprenda sozinha, mesmo que leve uns vinte anos. Sim porque não vão
faltar as madrugadas sozinhas no leito enquanto ele se empenha em contínuas
‘reuniões’ de negócios, ou os recados anônimos na secretária, ou as contas
enormes na floricultura, sendo que para ela, raramente chegará até mesmo um
botão de rosa. E quando descobrir que ele possui mais mulheres e filhos do que
o tio Patinhas, moedas, ou ela vai assumir definitivamente o seu papel de
esposa traída e conformada, ou vai chutar a bunda do ex-maridinho pro outro
hemisfério. Apesar de tudo, não duvido que mesmo daqui a tanto tempo ela tenha
suficientemente coragem para isso. Melhor do que isso só mesmo o milagre de eu
estar vivo por pelo menos mais dez minutos e com força suficiente nos braços
para soltar uns bons rojões.
A detetive sorriu.
Sem contar a história das imagens assombradas, o velho não dera qualquer
demonstração de desequilíbrio.
Seu
Antônio também riu satisfeito por suas palavras terem divertido a moça. Sem
dúvida simpatizara muito com ela. Talvez até lembrasse Verônica, sua filha.
- Mas chega de roer velhos ossos – ele
disse - A senhorita deve estar muito mais interessada
nos acontecimentos que levaram à morte o padre Bento, certo?
- Certo – ela
assentiu. Mas, na verdade já não sabia se queria mesmo ter conhecimento da
história que Seu Antônio tinha para contar. Não queria terminar por descobrir
que o pobre velhinho era mesmo louco. E se não fosse, que outra razão teria
para mentir? A menos que fosse o próprio assassino do padre.
●
Na verdade, antes do
padre Bento, embora pouquíssima coisa se tenha comentado ou saído na imprensa
sobre o assunto, mais quatro mortes haviam ocorrido na casa de repouso após a
chegada das imagens católicas. Todas apontadas como paradas cardíacas, o que a
polícia nem se preocupou em investigar mais afundo, afinal, quem se importa com
velhos a desfalecerem num asilo? Se estão aqui é porque geralmente nem a
própria família se preocupa. Outra coincidência é a de que apenas cinco dentre
os internos deste lugar não eram católicos. Um deles é a pessoa que vos fala e
os outros quatro são justamente os que estão comendo capim pela raiz. Eu mesmo
creio que só escapei dos santos por milagre.
●
D. Helena foi a primeira a implicar com as
imagens logo que elas chegaram. Viúva de um ex-bispo da Igreja Batista, chamava
a todo tempo a atenção para o claro alerta bíblico de que toda imagem
construída por mãos humanas para adoração ultrajavam os desígnios de Deus e
toda aquela ladainha de crente. Responsabilizava o padre, que como coordenador
do asilo ‘não poderia sujeitar os internos não-católicos, ainda que fossem em
absoluta minoria, a conviverem com tamanha heresia’. Seus argumentos foram
ouvidos, mas ignorados. Padre Bento lhe disse que ninguém a obrigaria a se
ajoelhar ou fazer preces diante das imagens e da mesma forma ela não poderia
privar este direito aos outros. No dia em que ela amanheceu falando que a
própria imagem de N.Sª. de Fátima entrara em seu quarto e lhe alertara a deixar
de lado os traços de rebeldia, todos acharam que era mais um ato de implicância
dela com as imagens. Vivia apavorada, acuada em seu quarto com a Bíblia na mão,
rezando em voz alta orações de exorcismo. Então, certo dia, amanheceu morta em
sua cama, em meio à grande quantidade de seus próprios excrementos. Disseram
que foi um enfarto fulminante; muito provavelmente deve ter mesmo sido esta a
‘causa-mortis’ principal, não é como vocês da polícia chamam?
- Sim – a detetive
assentiu.
- É, mas eu estava lá quando o cadáver foi
encontrado e vi as marcas de pequenos dedos no pescoço da mulher. E mesmo que
não haja indícios de que a morte da velha fora por esganadura, isso já
justificaria a pobre coitada ter batido as botas de tanto medo.
●
- Quando o Anjo da Anunciação apareceu para Seu
Raimundo, claro que ele mantinha bem fresca na memória a história de Dona
Helena. Na época, como todos, ele duvidara da velha bruxa evangélica, mas
quando ela morreu, não sabia dizer quanto aos outros internos, mas certamente
ele passara a enxergar com outros olhos as imagens deste asilo. E para ele
aquilo foi fácil, já que também não gostava de imagens. Não pelos mesmos
motivos da velha crente faladeira, mas porque sua ex-mulher era macumbeira e
sempre mantivera um monte daqueles troços, com seus malditos olhares de
superioridade dentro de casa. Aquilo por muitos anos foi motivo para as mais
intensas brigas. E justamente um acidente com uma das peças, provocado por ele
foi o estopim que terminou com a separação do casal. Daí para frente projetou
sua vida para sempre livre de qualquer imagem e estátua de santo, até vir parar
aqui e sua voz de decisão passar a valer menos do que uma goma mascada na sola
do sapato. Então, ver a estatueta angelical entrar à noite em seu quarto e
ouvi-la dizer que ele deveria esquecer totalmente a mágoa e começar a aceitar
como os outros as verdades reveladas que as imagens traziam, mais do que
assustado, Seu Raimundo ficou furioso. Pela manhã, a todo vapor, estava
gritando a plenos pulmões que assim que suas mãos estivessem empunhando algo
consistente, preferencialmente um belo porrete, partiria em incontáveis
pedacinhos cada uma das estatuetas metidas a quererem ser gente. Infelizmente,
apesar de ele até ter conseguido arranjar o seu porrete, cada um de nós fez um
esforço para impedi-lo de fazer isso naquele dia. E nunca mais ele teria outra
chance, pois na manhã seguinte estava morto, com o porrete no chão ao seu lado.
Alguém, (disseram que ele próprio), golpeara seu peito com tanta força com
aquela coisa que seu coração simplesmente parou. Concluíram que foi ele porque
apenas as suas impressões constavam na arma do crime. Isso não quer dizer que
alguma coisa que não possui impressões não a possa ter usado, se é que a
senhorita me entende...
●
- Após esta segunda
morte, todos os que aqui viviam, (ou conviviam), já sabiam que nossas sacras
imagens eram um tanto diferenciadas das de outras igrejas. Isto, porém, não
impediu que outras mortes acontecessem e muito menos fez com que houvesse qualquer
sinal de um levante para protestar de qualquer forma possível, embora poucas
fossem imagináveis. Na verdade, todos começavam a achar que estas coisas eram
mesmo sagradas, autênticos instrumentos personificados da própria vontade de
Deus. E esta impressão tornou-se para os que vivem aqui uma certeza quando eles
começaram a ouvir isso da própria boquinha das imagens, embora dificilmente
algum deles vá lhe admitir que os ouviu, por medo de passarem a ser tratados
como loucos. Mas sim, detetive Deise, elas falam e a lembrança soturna das suas
vozes fica ecoando em sua cabeça 24 horas por dia, como a de uma buzinada
estridente em meio a uma brusca freada a poucos centímetros de projetar seu
corpo numa longa viagem para a morte.
Ele então a fitou
duramente nos olhos como se quisesse desafiá-la a testar sua sanidade apenas
naquele confronto de olhares. Desta forma mesmo lhe falou:
- Só que eu nunca caí nessa esparrela de
instrumentos divinos. Isto é baboseira, ou Deus sentiu que é hora de castigar a
humanidade com uma boa dose de sadismo. Pra mim estas coisas são gárgulas. Vindos diretamente das
galerias do inferno.
●
Seu
Antônio fez a pausa mais longa de todo o seu relato e isso indicava que já
estava chegando, ou já tinha chegado ao fim de tudo o que tinha, (e queria), a
dizer.
- Já pode se levantar e ir embora se quiser,
detetive.
- Prefiro ouvir tudo,
se não se importar.
- Por que, se não
acredita em nada do que eu disse?
- Não disse se
acredito ou não. Preciso conhecer todos os fatos para tirar minhas próprias
conclusões. Conte-me tudo sobre os outros crimes.
Ele suspirou, mas
de certa forma pareceu satisfeito por ao menos não se sentir já sendo tratado
como doido. E não importava se ela estava acreditando ou não se aquelas
estátuas esculpidas em gesso ou madeira podiam andar, falar e pensar; ao menos,
ele lhe via através dos olhos que sinceramente em seu íntimo a jovem detetive
não caçoava nem tinha pena dele. Ela era
como um cientista infiltrado numa convenção de bruxos, ouvindo tudo atentamente
e procurando analisar cada feitiçaria sob os auspícios da ciência.
●
- As duas outras mortes foram por punição e
não por exclusão. Para punir severamente erros de devotos e não para expulsar
incrédulos. Os católicos têm a mania de se apegarem demais às deidades, aos
santos com que por um motivo ou outro costumam cultivar uma maior afinidade.
Muitos esquecem que para tudo há uma hierarquia e que tal demasiada devoção às
classes baixas tende a despertar o ciúme e o despeito das classes superiores.
●
Eles também possuem um
supremo superior a quem chamam de O Nazareno. Nada mais justo, pois se trata
da própria imagem do Cristo flagelado no momento da crucificação. A coisa está
lá, no altar principal da capela, com os olhos bem abertos, vigiando a tudo e a
todos os que estão aqui, para ao menor deslize enviar durante a noite os seus
anjos e mártires vingadores com uma inextirpável sentença de execução.
- Resta-me uma última
dúvida, seguindo a linha de raciocínio de sua história: por que o padre Bento
enlouqueceu e por fim foi morto?
-É muito provável que
após essas mortes ele já soubesse, (ou ao menos tivesse grande desconfiança),
que havia algo de errado com as estátuas. O que acredito é que talvez ele, como
padre, tenha acreditado que poderia vencê-las e não apenas se livrar delas como
o cardeal que as enviou para cá. Digo isso porque nessa época o surpreendi
várias vezes absolutamente concentrado em sua liturgia sobre exorcismos e
combates a espíritos malignos. Certamente ali as imagens já o atormentavam,
afinal, ele era o diretor daqui e se elas queriam conquistar a obediência de
todos, é por ele que deveriam ter começado, não? O padre se tornou então
extremamente fechado e carrancudo. Raríssimas vezes aparecia por aqui durante o
dia, embora não tivesse família, ou qualquer vida social além de sua
congregação. Em compensação, vinha todas as noites ‘armado’ até os dentes,
desde a batina, crucifixos, água-benta, a indispensável Bíblia e diversos
outros livros e coisas que certamente constam no “manual
contra vampiros e assombrações”. Passou a sempre dormir
dentro da própria capela. Trancava-se lá, sozinho, e só o víamos novamente no
dia seguinte. Em compensação, muitas coisas ouvíamos, (os que se atreviam a
tentar), principalmente palavras quase gritadas do padre em latim. Às vezes
ouviam-se vozes diferentes dialogando, embora o padre Bento fosse a única
pessoa humana trancada lá.
●
- Todas as imagens
haviam sido levadas para dentro da capela, por ordem do padre Bento e ainda
assim ele não se intimidava em se trancar com elas durante toda noite.
Certamente estava tentando evitar que elas fizessem mais vítimas por aqui. O
estranho era que todos os internos haviam perdido toda e qualquer simpatia que
tiveram por ele. Guardo-me o direito de não lhe revelar de quem, mas até ouvi
de alguns daqui do asilo que ficariam muito felizes caso as estátuas o
matassem. Antes disso, de alguma forma elas o enlouqueceram. Ele ficou
absolutamente convencido de que eram obras divinas de punição pelos excessivos
pecados do mundo. Deus havia pegado nossa pequenina e modesta cidade, (nem por
isso menos passível de injúrias estrombólicas contra Ele), para que servisse de
exemplo para todos os povos e nações. E era preciso que se entendesse que Deus
é sábio e justo em Suas decisões e não por acaso fomos alvo de tal implacável
sentença. Assim, o padre abilolado se pôs a dar com a língua nos dentes sobre
os mais escabrosos pecados de cada um dos habitantes que já haviam passado pelo
seu confessionário, o que justificava a punição da cidade. Alguns dias depois
estava também enjaulado por aqui, sem a batina e com um monte de gente querendo
pintar sua caveira. Só que isso não o fez calar a boca. Ele continuou pelos
corredores soltando os podres de todo mundo para quem quisesse ou não ouvir.
●
- Pelo que eu entendi,
acreditando na sua história, já vou começar a investigação sobre a morte do
padre com um bocado de suspeitos – disse-lhe a detetive.
- Sim. Todos os que tiveram motivos para
querer interná-lo aqui e todos daqui que não gostavam dele.
- Isto exclui... –
ela ponderou analiticamente - ...aparentemente
apenas o senhor.
- Talvez sim, mas não
se precipite Senhorita Deise. Há ainda um motivo que me torna o maior de todos
os suspeitos...
●
- Lembra-se de como
lhe disse que com um tiro reduzi a quantidade de imagens deste asilo, tendo
despachado a de São Sebastião? Pois é; embora não tenha saído ainda o resultado
do laudo da perícia, certamente nele constará que a bala partiu da mesma arma
que instantes depois acabaria com a vida do pobre padre Bento.
●
Aquilo
tudo certamente contribuía para aumentar a hipótese de que Seu Antônio estava
louco. Totalmente gagá embora não parecesse perigoso a ponto de matar um homem.
Talvez o padre também estivesse louco e os dois dividissem a crença em toda
aquela história maluca. Sendo o último interno incrédulo na “dádiva das imagens” após as mortes,
talvez o padre estivesse tentando convencer Seu Antônio a se converter para que
adorasse também as tais imagens supostamente falantes. Irritado, Seu Antônio
poderia ter disparado no primeiro santo que avistou e em seguida no próprio
padre.
Mas,
tudo isso eram apenas conjecturas e já estando ali, ela ouviria até o fim o
depoimento do suspeito. Graças a ele, tinha mais quatro mortes no mesmo local
para investigar.
Seu
coração deu um pulo.
A
imagem que os ‘observava’, por um
ínfimo instante pareceu realmente piscar um dos olhos para ela.
●
Claro
que poderia ter sido uma falha num golpe de vista, mas a atenção sobre aquela
estátua durante o resto da conversa seria, sem dúvida, redobrada...
●
- Eu vou lhe contar como tudo aconteceu,
Srta. Deise. Se você vai acreditar ou não, não me compete saber e na verdade,
pouco me importa, pois, mesmo que acredite, vai ser muito difícil provar que
não fui eu quem atirou no padre Bento, já que as únicas digitais que vão
encontrar naquela arma serão as minhas, afinal, estátuas de gesso não possuem
digital.
●
- Aquela parecia ser a
derradeira investida do padre contra as coisas endemoniadas. Os ruídos
aterradores que vinham da capela podiam ser ouvidos por todos os corredores do
asilo. Claro que ninguém queria se meter. O padre puxara para si toda a
responsabilidade quando resolveu se confinar com todas as imagens num único e
fechado ambiente. No mais, ele sempre dissera que ninguém na cidade merecia o
sacrifício que ele estava fazendo. Estavam todos afastados quase que
irremediavelmente de Deus e apenas por isso, alguém precisaria lhes dar um
exemplo forte de fé e confiança em Nosso Senhor. Parecia que todos haviam se
esquecido o quão bom o padre Bento já havia sido para nós e de como ele sempre
havia sido um bom servo de Deus, o que tornaria injustificada a ação daquelas
coisas contra ele caso fossem realmente divinas. Acho que, no fundo, todos
sabíamos que Deus nada tinha a ver com aquilo, mas o medo e algum tipo de força
maligna nos repelia. Só que eu nunca me esqueci das primeiras palavras que o
velho padre Bento me disse assim que eu entrei aqui, destituído de todos os
meus direitos como cidadão por um atestado de maluco com carimbo e rubrica do
juiz. Já conhecendo minha história, ele me disse: “Tranqüilize-se, Seu Antônio,
pois o senhor não está, em absoluto, perdendo sua filha. Ao contrário, todo
amor que vocês sentem verdadeiramente um pelo outro só virá mesmo à tona quando
ela tornar a entrar por aquela porta para levá-lo daqui”. E acredite, Srta.
Deise; talvez eu jamais viva para ver esse dia, mas esta esperança é só o que
me faz suportar os momentos de solidão e amargura que preenchem atualmente a
maior parte da minha vida. Assim, naquela noite fatídica, repeli todo o receio
e covardia que infestavam este lugar e fui à capela com o único objetivo de
salvar mais do que o padre, mas o meu amigo Bento. Claro que, como morador mais
antigo deste lugar, eu sabia perfeitamente onde se guardavam as chaves reservas
de cada sala, inclusive as da capela.
●
- Sem dúvida as
criaturas poderiam tê-lo matado antes, afinal, desde o princípio ele, como os
demais que morreram, também não simpatizaram nem um pouco pelos desígnios
soturnos que as imagens ofereciam.
- E o senhor faz idéia
de quais sejam esses desígnios?
- Eu sei que lhe cabe
mais do que a mim a área das suposições, mas acho que essas imagens se
personificaram por sua própria vaidade e agora exigem para si um tipo de
adoração muito maior do que a que o ser humano aprendeu a praticar; sim, porque
no fundo, todos sabemos que estátuas de santos, por mais sagradas que sejam
consideradas, não passam de átomos sem vida. Talvez tenha a ver também com o
lugar de onde elas vieram. Não da catedral, mas da sua cidade original. No
pouco que pude conversar com o cardeal, ele me contou que ouvira fala, em seus
tempos de seminário, de uma pequena cidade que deixara de existir porque os
moradores de comum acordo resolveram abandoná-la. Isto porque um grupo de
adolescentes de uma gangue, que logo se tornaria uma seita, roubou as imagens
do templo da igreja e passou a utilizá-las em pesados rituais da chamada ‘missa-negra’, uma espécie de paródia
invertida da missa católica. Ele disse que certa feita alguém ateou fogo no
templo dos profanadores enquanto eles lá dentro realizavam sua celebração
macabra, o que matou a todos. O culpado, o próprio prefeito da cidade foi
descoberto e preso, mas o mesmo não se deu com as imagens que simplesmente
desapareceram. Isto bastou para que as pessoas passassem a receber a visita de algumas
delas durante a noite. O prefeito foi enforcado e os moradores fizeram um pacto
para dizerem a todos que o incêndio no templo fora um acidente; até a polícia
do lugar concordou que seria esta mesmo a melhor opção. Por via das dúvidas e
prontamente, cada um fez suas malas e partiu para sempre daquele lugar maldito,
esperando com ardor que nenhum pesadelo os seguisse. Ao menos pesadelos
demasiadamente físicos.
- Isto é tudo
fantástico além da conta.
- Espero que a
senhorita não peça minha transferência para o hospício mais próximo. Minhas
juntas de velho não suportariam a rigidez das camisas-de-força.
- Conte-me o que o
senhor encontrou na noite em que foi à capela para salvar o padre.
- Como eu havia dito
antes, as imagens já o poderiam ter matado, mas não o fizeram talvez por terem
pensado que, convertido, ele serviria muito bem à causa. Isto não aconteceu,
mas quando ele começou a falar demais elas devem ter suspeitado que os próprios
cidadãos da cidade, que estavam vendo seus podres inenarráveis serem revelados,
dariam cabo do padreco falador. No entanto, mesmo internado aqui ele continuava
a desafiar as suas vontades, o que representava um perigo a sua autoridade
diante dos fiéis. Então, naquela noite, certamente da boca do próprio Nazareno,
a sentença de morte do padre Bento já havia sido decretada.
●
- Com certeza, a
imagem que vi quando entrei lá convenceria não apenas a senhorita, mas até o
mais cético dos juízes. Padre Bento estava caído. Gritava ao seu Deus palavras
de invocação e súplica insistindo em acreditar que aquilo o protegeria. Por
cima dele estava São Sebastião em
miniatura. Eu sei que parece inacreditável, mas com suas mãozinhas que devem
medir cerca de ¼ das nossas, ele segurava pelos cabelos a cabeça do padre de
encontro ao chão impedindo-o de se levantar. Nas pernas do pobre homem, um São Jorge e um São Pedro, estes menores ainda, apoiavam da mesma forma suas
canelas contra o chão, privando-lhe também dos movimentos das pernas. Também
sobre seus braços havia duas ‘virgens’
com aterradores sorrisos que expunham afiados dentes em seus rostos pequeninos.
Não me recordo muito bem, mas me pareceram ser Fátima e Conceição. Além de estarem de pé sobre os pulsos do homem
indefeso, cada uma delas tinha na mão um reluzente punhal. E quem observava
tudo sentado em seu trono no meio do altar, com um prepotente ar de
contentamento? Ele; o Nazareno; o Cristo crucificado, muito mais
senhor de Si do que estamos acostumados a ver...
- Assim que eu entrei
na sala, um querubim veio voando em direção a minha cabeça, ao que tive que me
abaixar. Ele cumpriu seu intuito que era o de bater a porta e trancá-la com a
chave que tinha na mão. Naquele momento, a atenção de todos se voltara para
mim, o intruso, e pela primeira vez até então eu tive a franca percepção de que
a velha arma que trouxera oculta em minha cintura talvez não fosse suficiente
para salvar a minha pele e muito menos a do padre.
●
- Após esse desvio de
atenção momentâneo, eles voltaram a concentrar as atenções em seu ritual
homicida. Eu presumo com quase total certeza que tenham achado que eu fosse dar
meia-volta em direção à porta, com minha outra chave na mão, irremediavelmente
disposto a dar o fora dali, esquecendo-me completamente do padre que viera
ajudar. Jamais conceberiam que um velho alquebrado se atreveria a enfrentá-los.
Só se deram conta quando o tiro, modéstia à parte, extremamente preciso,
esfacelou a cabeça de pedra de São
Sebastião.
●
- Houve um grito
aterrador, como um estridente grasnar, enquanto o local em que estava o padre e
as imagens enchia-se de uma fumaça branca. O santo sem cabeça tombou para trás
como uma árvore desterrada pelo golpe derradeiro do machado. Aquilo me provocou
uma enorme satisfação momentânea. Todavia, com sutileza de fazer inveja aos
mais exímios bailarinos, várias imagens já haviam se aproximado muito de mim
sem que ao menos me desse conta e uma delas me golpeou violentamente pelas
costas, derrubando-me e levando-me a largar a arma.
●
- O padre se
aproveitara da confusão e da ausência da pressão na cabeça para livrar também
as mãos e erguer o corpo, sentando-se. Ficou assim muito mais vulnerável e nada
pôde fazer quando a bala encontrou certeiramente alojamento no centro do seu
peito. E certamente eu seria o próximo, não fosse pelas vigorosas batidas que
alguém começava a dar na porta.
●
- Todas as estátuas começaram a correr
alucinadamente de volta aos respectivos lugares em que o padre as deixara.
Quando a polícia, que por prévia medida eu mesmo havia chamado, estourou a
tranca da porta com um tiro e entrou, as imagens já estavam imóveis em sua
condição de estátuas, mas haviam cometido seu primeiro e único erro.
●
- A arma fora deixada no local onde fora
utilizada pela última vez, o que era um pouco distante de onde eu estava caído
quando a polícia entrou. Isto seria para mim o álibi perfeito, indicativo de
que o assassino havia fugido e nos deixado lá trancados, eu ferido, quase
desacordado e o padre morto. No entanto, quando o laudo pericial sair e
indicara presença apenas das minhas digitais na arma, certamente para a polícia
o caso vai estar mais do que esclarecido.
- Um laudo pericial minucioso poderá
inocentá-lo neste caso, determinando a sua posição e a da arma no momento do disparo
que matou o padre.
- Isto até pode ser possível, Srta. Deise,
mas se eles abrirem mão da prova das digitais, o que lhes restará além da minha
história? Não havia ninguém humano na capela além de mim e do padre Bento.
- Como o senhor mesmo disse, o assassino,
que poderia estar de luvas, pode tê-los trancado lá e fugido.
- Mas as duas únicas chaves existentes para
aquela fechadura estavam do lado de dentro...
- Ora, chaves são a coisa mais simples de se
arranjar. Uma coisa é certa: se o senhor quiser se livrar da acusação de
homicídio terá que esquecer a sua história e tentar algo mais... ...plausível.
- Está sugerindo que eu minta no tribunal,
detetive?
- Não. Longe de mim sugerir. Estou afirmando
que será sua única alternativa.
Após um certo
tempo de meditação, ele quebrou o tenso silêncio que havia se estabelecido.
- Percebo que a senhorita ao menos acredita
em minha inocência, posto que está me dizendo isso. É por que crê na minha
versão ou na sua?
- Se o senhor quiser escapar da cadeia, isto
não deve ter qualquer importância...
●
O laudo
pericial só confirmou o que ela já esperava. Na noite do crime, a arma havia
efetuado dois disparos; um que tingiu a imagem do santo e o outro que matou o
padre. As únicas digitais que nela constavam eram as de Seu Antônio, o que o tornava cabalmente o grande suspeito do crime.
O trabalho minucioso da perícia, que ela levantara, sobre a distância entre a
arma e o atirador nem chegou a ser feito, afinal eles não conheciam a versão
original do Seu Antônio e portanto
não tinham porque imaginar que não fora ele quem disparara a arma, já que nela
constavam suas impressões digitais e mais ninguém havia no recinto naquele
momento. Para tentar provar que não fora ele que atirara no padre, seu advogado
precisaria de argumentos dignos de alguma credibilidade e sem dúvida, a
história das estátuas vivas assassinas lhe seria de péssimo auxílio.
“a menos que ela tentasse
ajudá-lo...”
E
por que o faria? Certamente porque, por mais incrível que pudesse parecer,
acreditava em Seu Antônio e sua
profissão lhe ensinara a geralmente acreditar nas pessoas certas.
●
Provavelmente
na manhã seguinte a ordem de prisão contra Seu
Antônio seria expedida e ela teria poucos motivos para ficar por ali. Então
a solução era só uma: passar a noite naquele asilo e ir checar de perto as tais
estátuas ambulantes.
●
“Aquele padre tinha mesmo que morrer. Foi
bem feito para ele”.
Era o que havia
dito a maioria dos internos a quem ainda naquela tarde a detetive Deise Martins solicitara um depoimento
informal. Nem todos a atenderam, mas dos que concordaram, todos haviam ficado
felizes com a morte do seu tutor e outrora amigo padre Bento.
“Aquela boca enorme dele começou a falar
demais. Primeiro foi sobre nossas imagens, depois, sobre os inomináveis desvios
de conduta de todos na cidade. Tinham mesmo que puxar a tomada dele”.
Tudo
indicava que o padre estava realmente lutando contra todos naquele lugar.
●
Numa
rápida passada em casa armou-se até os dentes, como um típico herói de cinema
americano. Ao menos, pelo que contara Seu
Antônio, as coisas eram suscetíveis a balas. A tradicional 38 ia no coldre
na cintura, absolutamente dentro dos padrões normais. No entanto, sua real e
fiel companheira, uma micro 22 ia oculta no coturno. Ambas devidamente
municiadas, era óbvio, mas ainda parecia pouco. Somente um doido suicida se lançaria
numa missão dessas sem solicitar reforço. Mas o que alegaria? Que tentava
bancar a “caça-fantasmas” por conta
da história absurda de um velho gagá? O detetive Marcelo, seu parceiro no Departamento de Polícia, certamente se
prontificaria em ajudá-la, mas não queria envolvê-lo profundamente naquela
história. Pelo menos não até que tivesse alguma prova concreta em mãos. Para
isso estava levando também uma micro-câmera digital. Se pudesse registrar o
menor movimento das imagens demoníacas, por certo sua voz ganharia mais força
para se fazer ouvir.
Sabia
que Marcelo ainda estava de plantão,
então telefonou para sua casa apenas para deixar uma mensagem na secretária:
“E aí, parceiro? Juro que não queria
interromper suas mais do que merecidas horas de descanso, mas talvez neste
momento em que você ouve esta mensagem eu esteja com alguns pequenos problemas.
Creio que os poderei resolver sozinha, mas se você por acaso sentir que poderia
vir dar uma espiada só para ter certeza, ficarei lhe devendo mais uma. Espero
que já não esteja sob as cobertas e com uma bela companhia. Se estiver, nem
pense em mostrar seu traseiro por aqui, ouviu bem? Prefiro encarar sozinha a
máfia a ter de agüentar pelo resto da vida choramingos por um motivo desses da
parte de um homem. Bem, estou no asilo do padre Bento, aquele velho padre
assassinado, que tinha por hobby reunir a imprensa para contar os pecados
alheios. Eu sei que o crime já aparenta ter sido resolvido, mas tem algumas
coisas que eu ainda gostaria de esclarecer. Para compensar-lhe, se for alarme
falso, prometo que você terá sua tão sonhada revanche na sinuca. Só não espere
facilitação da minha parte, pois aí já seria demais”.
Provavelmente
ele iria. Restava saber se não chegaria tarde demais.
●
Sem dúvida,
aquele lugar, (como a maioria dos lugares), era muito mais aterrador durante a
noite. Toda a sutil melancolia dos corredores praticamente vazios durante o dia
se tornava sombriamente mais soturna à noite. E havia ainda as imagens que,
talvez por ela agora conhecer a história de Seu
Antônio, pareciam prontas para saltarem no seu pescoço e a esganar.
Havia pelo
menos uma dúzia e meia de imagens de santos e anjos espalhadas por aquele
asilo. A maior parte delas estava concentrada na capela, mas também em cada um
dos corredores uma pairava imponente, como uma guardiã. Justamente uma destas
foi a primeira coisa que a detetive Deise
viu ao chegar e por pouco o simples olhar da estátua não a fez desistir.
●
Os
administradores do asilo, que agora pertencia a um grupo de empresários,
torceram os narizes, mas no fim, permitiram que ela pernoitasse no local para
concluir as investigações. Mal sabiam que ela não tinha qualquer autorização do
juiz, ou mesmo do departamento para fazer aquilo.
Era difícil
saber por onde começar. Talvez devesse montar vigia diante das estátuas, mas
não poderia ficar na ânsia por movimentos de apenas uma delas. Se era na capela
que elas se concentravam, justamente lá ela deveria ficar de guarda, exatamente
como fizera o padre, na noite de sua morte.
●
Todos os
internos já estavam recolhidos em seus quartos, mas ainda assim ela não
conseguia se sentir verdadeiramente sozinha. Com a cautela de quem toca num
artefato repleto de explosivos, a detetive abriu a porta da capela. As imagens
aparentemente permaneciam lá, imóveis em seus andores, exceto por uma. Já havia
visitado a capela após tomar o depoimento dos moradores do asilo e tivera o
cuidado de memorizar a posição de cada uma daquelas imagens prevendo que talvez
fosse necessário para confrontar com a história de Seu Antônio. Agora, dava por falta de uma; a mais importante e que
ficava no topo do altar central: a do Cristo crucificado. A do Nazareno.
●
Sempre se
considerara uma boa policial, mas somente naquele momento percebeu os
admiráveis reflexos que tinha. Num instante, sentiu uma mão pousar
repentinamente em seu ombro, no outro, já dera meia-volta, sacara a arma e a
tinha engatilhada na testa do agente surpresa. Suspirou aliviada ao reconhecer
o rosto de Seu Antônio.
- Faça isso de novo e eu o mato –
falou-lhe um tanto aborrecida pelo susto.
- Desculpe – ele respondeu sorrindo
levemente – Ao menos está provado que
dificilmente seremos surpreendidos.
- O que faz aqui?
- Antes de a senhorita deixar o asilo, pude
ler em seus olhos o que tinha em mente.
- Isto não reponde a minha pergunta.
- Responde sim. Não vou deixá-la sozinha com
esses gárgulas malditos.
Seria difícil
dissuadi-lo e inegavelmente sua presença a fazia se sentir mais segura.
- Pelo que me contou sobre a precisão com
que acertou a imagem sobre o padre, o senhor deve ser um exímio atirador, não?
- Modéstia a parte, fui o melhor aluno no
curso de tiro de um acampamento de verão no ano de 59.
- Fique com isso – ela disse,
entregando-lhe o 38 – Sabemos que por
motivos óbvios a polícia ficou com o seu.
Abaixou-se e
apanhou a 22 no coturno. Perdia assim o elemento surpresa, mas ao menos ganhava
um aliado em condições de se defender.
- O que pensa em fazer, afinal, detetive?
- Vou filmá-los. É a única chance de provar
sua inocência.
O velho
permaneceu pensativo por um instante, mas certamente pareceu ter admirado a
idéia.
- Seria uma ótima idéia, não fosse tão
arriscada. De que vai nos adiantar filmá-los se depois eles nos matarem? Não
sei como ser preso poderá ser pior do que ser morto.
- Não precisa ficar, se não quiser.
- Sim, eu quero. Mais até do que a
senhorita.
Ela começou a
caminhar a passos lentos rumo ao altar, com a arma firmemente em punho. Seu Antônio a seguia, parodiando uma
cobertura. Quem os visse, apesar da acentuada diferença de idade, não hesitaria
em apontá-los como parceiros.
- O senhor também já deve ter percebido que
ele sumiu.
- O Nazareno? Certamente foi a primeira coisa que
notei desde que cruzei a porta de entrada.
- E todas as demais que nos cercam parecem
apenas aguardar algo para nos atacarem.
- Algo como uma ordem...
- Exatamente.
- E quando vamos começar a enchê-los de
bala?
- Certamente assim que primeiro dos miseráveis
se mover.
- Sou realmente muito agradecido pela
senhorita ter acreditado em mim.
- Então pode começar a me chamar de Deise. É
pelo nome que amigos se tratam.
- Está bem, Deise. Como a senhorita, digo,
como você quiser.
- Agora está bem melhor.
Chegaram ao
altar. Permanecia da mesma forma em que estava na noite em que o padre morrera.
A polícia técnica ainda não havia autorizado que fosse rearranjado, limpo ou
arrumado. Na parede bem acima da mesa estava o andor onde costumava a ficar a
imagem do Cristo.
- Os peritos que me perdoem, mas vou subir
na mesa para olhar melhor o andor. Talvez eu possa encontrar impressões ou
alguma pista de como ele foi tirado, ou simplesmente desceu dali.
Ela depositou
a arma no altar e solicitou a ajuda de Seu
Antônio para apoiá-la e impulsioná-la para cima da mesa. Por questão de
respeito tirou as botas antes de subir. Lá em cima começou a analisar
minuciosamente o andor a procura de digitais que poderiam sugerir que alguém,
talvez um dos internos, estava tentando fazê-los pensar que a imagem saltara
dali sozinha.
- Encontrou alguma coisa? – veio de
baixo a voz d Seu Antônio.
- Calma. Tenha paciência – ela
respondeu, mas já abrindo um modesto sorriso de satisfação ao reconhecer claras
marcas de digitais principalmente nas paredes laterais do andor.
- Sem dúvida, há alguma coisa aqui.
- Digitais?
- Quase que com toda certeza.
- Você é sem dúvida uma ótima policial,
detetive Deise.
- Obrigada – ela agradeceu, sem desviar
muito a atenção.
- E, além disso, é uma mulher linda, que me
lembra muito de minha filha.
- Fico feliz por isso. Talvez seja o que
inexplicavelmente me mantenha tão compelida em ajudá-lo. Agora me ajude a
descer – ela disse, arrancando cuidadosamente o oratório da parede – Vai ser interessante conhecer de quem são
estas impressões.
Ele a abraçou
pelas pernas e fê-la escorregar junto ao seu corpo, até pousá-la no chão. Ainda
a manteve assim, de costas para ele, apertada num abraço por um certo tempo,
aparentando até maior do que o necessário. Suas mãos que inevitavelmente haviam
deslizado por sobre os seios dela também haviam aparentado ter permanecido ali
mais por deleite do que por prestatividade.
Imediatamente
reparou que sua arma não estava no local em que deixara...
●
Assim que a
soltou definitivamente no chão, Seu
Antônio já empunhava a arma apontada em sua direção. Logicamente também já
estava a uma distância segura.
- Lamento desapontá-la, Deise, mas não verá
nenhuma imagem se mexendo hoje. Sugiro que se mantenha à distância ou terei que
provar que sei usar muito bem esta arma que você me deu.
●
Mal podia
acreditar que havia pouco tinha se gabado intimamente de suas habilidades como
policial. Fora pega como a maior das inocentes.
- Quando nosso padre ficou maluco e inventou
essa história de que as estátuas estavam lhe transmitindo mensagens, eu logo
previ que aquilo tinha tudo para não acabar bem. Mais ainda quando ele começou
a berrar aos quatro ventos os podres de todo mundo que via pela frente.
Encontrar-se com ele por acaso, ou por necessidade tornara-se um perigo.
Bastava ele olhar para a sua cara para se lembrar de que conhecia cada porção
de merda que já saíra de suas tripas. Devo dizer que no começo até achei
divertido ver a cidade toda, dos maiorais aos mais miseráveis, correndo e se
trombando em polvorosa, aflitos e atônitos, à procura de maneiras de fechar a
matraca do padre. Ainda assim, até tentei fazê-lo abandonar aquela conduta tão
perigosa quanto maluca, mas não consegui. Ninguém poderia. Louco ou não, ele se
apegara a uma convicção absurda. E como não poderia deixar de ser, ele acabou
enclausurado aqui até que a poeira sentasse e ele pudesse ser silenciado
definitivamente, se é que a senhorita, desculpe, se é que você me entende.
Infelizmente para ele, por mais escabrosos que fossem os pecados que ele já
havia revelado, justamente aqui, entre os internos de seu asilo, havia um que
jamais se poderia permitir que escapasse de sua boca. Ainda que para isso, sua
irremediável sentença fosse mesmo a morte.
●
- Quer dizer que o senhor mentiu o tempo
todo...
- Depende do ponto de vista. Não menti, por
exemplo, quando disse que a senhorita, quero dizer, que você...
- É
realmente senhorita, para você! –
ela o atravessou quase gritando.
- Que seja; quando disse que a senhorita é
bonita e que lembra muito a minha filha.
- Por que será que não consigo mais enxergar
gentileza de sua parte?
- Até sua personalidade é igualzinha a dela;
geniosa e metida a senhora de si. Justamente por isso ela me colocou aqui sem
sentir um pingo de remorso.
- Sinceramente não acredito que tenha sido
só por isso.
O olhar dele
se tornou firme como ela nunca vira até ali.
- E não foi, embora somente uma pessoa no
mundo além de nós dois tenha ficado sabendo do real motivo.
- O padre Bento – deduziu a detetive.
Ainda que atrapalhadamente, as idéias começavam a se encaixar.
- Exatamente. Quando cheguei aqui, ele, com
sua conversa mole e seu jeito de bonzinho me induziu a acreditar que a
confissão me traria alguma paz à alma. Então, de repente, ele pirou, o
trancaram aqui e ele estava com a língua coçando para contar para todo mundo
sobre os meus... assuntos de família.
- O que fez com sua filha, Seu Antônio?
O homem a
fitou como se não esperasse tamanha ousadia de alguém que estava prisioneira e
sob a mira implacável de seu revólver. Pareceu aborrecer-se a princípio, mas,
por fim, como uma criança pega em flagrante com o dedo na tigela de glacê,
sorriu.
- Nada que ela não precisasse vir a saber um
dia.
●
- Começou quando Verônica tinha seis anos.
Não o aflorar de meus instintos, que já datavam de muito antes, mas que eu me
esforçara muito para reprimir. Mas nossa primeira relação íntima.
- Seu primeiro estupro incestuoso, você quer
dizer.
- Silêncio! – ele vociferou balançando a
arma - Não está em condições de me
interromper e muito menos de me reprimir, detetive.
Ela era extremamente linda e delicada e eu
não poderia deixar de me deleitar com tamanha maravilhosa pureza tendo eu mesmo
a posto no mundo. A princípio tive que ameaçá-la de morte para que não contasse
para sua mãe, mas logo percebi que ela jamais teria coragem de fazê-lo. Embora
a amasse muito e prestasse atenção na filha, Roberta jamais conseguiu
compreender os motivos da rebeldia e revolta que brotaram no coração de sua
menina. Isto porque seria inconcebível para ela que o marido a quem tanto amava
vinha a tanto tempo em suas barbas transando constantemente com a filha deles.
Assim, precocemente Verônica saiu de casa aos quinze anos, carregando uma mágoa
brutal, embora já há dois anos eu não a tocasse, por compreender que ela
entrava numa idade em que se tornava extremamente arriscado continuar confiando
em seu silêncio. Já ali eu via em seus olhos cheios de ódio que se não parasse
logo ela explodiria e tudo viria à tona independentemente de minhas ameaças.
Ela se afastou drasticamente de mim e de sua mãe, o que contribuiu para que o
mal de que Roberta padecia evoluísse até um estágio irreversível. Quando
Verônica voltou a nos procurar, estava noiva, às portas de um casamento que,
felizmente minha esposa nem chegou a ver. Seu noivo, um idiota metido a
intelectual, a trata como a uma débil mental. Embora eu tenha absoluta certeza
de que Verônica nunca tenha lhe contado nada, ele não faz a menor questão de
esconder que desconfia seriamente que fomos eu e minha mulher, (principalmente
eu), os únicos culpados pelo sofrimento e pela infelicidade de nossa filha. Às
vezes chego até a pensar que ele desconfie de algo mais, mas acho que se fosse
verdade o cretino certamente já teria me feito alguma insinuação. Quando a mãe
dela morreu, Verônica me convidou para morar com eles após se casassem, o que
aceitei sem saber de que a convivência com seu marido tornaria minha vida um
inferno. Talvez, analisando-o profundamente, ele até seja um bom homem, mas o
que mais me atormentava era o fato de que ele estava desfrutando de um prazer
que por muito tempo eu achei que fosse ser exclusivamente meu. Quantas noites
colei o ouvido à porta só para tentar reconhecer e matar a saudade dos gemidos
que por tantas vezes haviam me conduzido ao delírio...
- O senhor é mesmo um pervertido –
disse-lhe a detetive, ignorando o alerta que ele já lhe fizera.
- É claro que sou – ele respondeu
tranqüilamente – e você sabe que eu
pretendo ser muito mais, não é mesmo? Já deve saber que vai morrer, ou eu não
estaria lhe contando todas estas coisas. Antes, porém, teremos ótimos momentos
juntos, eu garanto.
♦
- As intensas brigas e
discussões tornaram minha convivência com meu genro insuportável, o que me
conduziu invariavelmente à decisão de deixar aquela casa. Antes, porém, eu quis
ter a minha despedida. Aproveitando de certa ausência de seu marido protetor
aborrecido, investi uma última vez contra ela, ameaçando-a com uma faca.
Infelizmente, desta vez ela se dispôs a resistir até a morte e naquele momento
eu percebi que nunca mais a teria.
●
- Todo o ódio que ela
acumulara por toda a vida voltou com força total e ela exigiu que eu me
retirasse da sociedade e me confinasse aqui, sob pena de que contaria tudo ao
marido e inclusive à polícia. E aqui procurei levar minha vida normal até me
deparar com esses desvarios do padre e agora com você.
- O senhor sabe que
será preso pelo homicídio do padre Bento. Tudo o mais que fizer só piorará sua
situação.
- Ainda não entendeu,
não é Srta. Deise? Mais difícil do que aceitar uma condenação para alguém que
cometeu o meu tipo de crime é ter que conviver com a idéia de que todos já
sabem o que você fez. Certamente a polícia interrogará Verônica a meu respeito
e certamente ela, sabendo que fui condenado por duplo homicídio e estupro, terá
prazer em incluir sua saga em minha lista de crimes. Por isso também não tenho
mais intenção de deixar vivo esta sala, detetive. Se isto, de alguma forma lhe
consola, você será a última mulher que sujeitarei a mim em minha vida.
- Se tem tanta
vergonha do que fez a ponto de preferir morrer a aceitar que outros saibam, por
que mergulha tão irracionalmente no mesmo erro?
- Você não entende? Eu
mereço isso. Mereço estar com minha filha ainda que uma última vez.
- Não sou sua filha,
Seu Antônio.
- Não, mas você vai
ser, pois quando eu a estiver possuindo com ardor e violência, vou fechar os
olhos e deixar minha imaginação transmutá-la no maior prazer de minha vida.
Era inútil
ponderar. Por sua conduta amadora como policial, estava terrivelmente
enrascada. Confiara em um maníaco como um bebê de um ano confiaria que os
simpáticos furinhos de plugar a televisão na parede não iriam causar mal nenhum
aos seus dedinhos. Deus a guardasse do que ainda estava por vir.
●
- Jamais pensei que alguém além daquele
padre doido varrido acreditaria nessa história de estátuas assassinas, mas sabe
de uma coisa Srta. Deise? No fundo, acho que em seu lugar, também uma outra
pessoa teria acreditado, isto, claro, se ainda não conhecesse os meus
antecedentes: minha filha Verônica. Até nisso vocês são extremamente parecidas.
Ela também possui essa estúpida mania de confiar cegamente na sinceridade das
pessoas. Por isso foi tão fácil dominá-la por tanto tempo, já que ela sempre se
apegava as minhas falsas promessas de que fora a última vez.
- O senhor fala como
se sentisse o maior orgulho por ter destruído a vida de sua filha.
- Destruído por quê? O
que tirei dela? A honra? Mas eu lhe dei a vida. Alguém quer pesar na balança?
- Embora seja um
pensamento digno de um psicopata, sua frialdade me diz que é uma pessoa normal,
abjeta e sem qualquer bom sentimento no coração.
- Engraçado que
instantes atrás estava quase a me pedir a benção, como se eu fosse o seu
avozinho.
- Talvez queira receber
as palmas por seu excelente desempenho interpretativo.
- Na verdade, o que
quero mesmo é encerrar com este diálogo que não nos levará a lugar algum. Tenho
em mente uma forma muito melhor de aproveitarmos estes nossos últimos momentos
juntos.
Ele estendeu
firmemente a arma, apontando para a cabeça dela.
- Com muito cuidado vire-se de costas e
junte os punhos para trás, detetive. E nem pense em bancar a espertinha.
Ela obedeceu, sem
imaginar outra opção. Quase que imediatamente sentiu o metal frio das algemas
atando os seus punhos. O velho viera mesmo precavido. Em seguida ele tirou as
próprias algemas da cintura dela e usou-as para prender-lhe também os pés. Por
fim, tirou do bolso uma grossa tira de pano e deu duas voltas em torno da boca
dela, apertando o nó até mais do que o necessário, mas que a impediam de emitir
qualquer som além de gemidos surdos praticamente inaudíveis. O velho estava
pronto para refestelar-se em seu banquete.
●
A cada dia ficava
mais impressionado sobre como aquela garota conseguia conhecê-lo tão bem. Mais
do que qualquer uma das namoradas que ele já tivera. Talvez mais até do que sua
própria mãe. Era certo de que às vezes aquilo se tornava bastante útil, já que
ela era sua parceira na polícia e o elo estabelecido entre os dois, além de
inquebrantável, tornava-os uma dupla sincronicamente quase que perfeita. No
entanto, insistia em recear sobre até que ponto é saudável para um homem que
uma mulher lhe conheça tão bem.
Fora
difícil convencer a bela morena, que já estava praticamente despida, (exceto
por uma calcinha cuja cor era difícil distinguir se era preta ou apenas
transparecia seus pelos pubianos), de que ele teria que se ausentar e
conseqüentemente não passariam aquela esperada noite juntos. Provavelmente ela nunca
mais iria querer olhar na cara dele e ainda que mandasse flores, bombons, ou
outros galanteios com pedidos de desculpa, certamente poderia recolhê-los ainda
intactos minutos depois na lixeira do prédio de um dos dois.
Mesmo
assim, nem por um instante ele cogitara deixar de atender o chamado de sua
parceira, o que, pela primeira vez o fez refletir sobre qual a verdadeira
importância dela em sua vida. Depois que estivesse certo de que ela estava bem,
voltaria a se fazer tal pergunta e exigiria de si uma resposta convincente.
●
- Acredito que cooperar comigo seria um
golpe muito duro a sua altivez, não Srta. Deise?
Ela o observou,
assustada, mas ainda sem compreender bem onde ele queria chegar, pelo menos até
o golpe violento da coronha da arma em sua omoplata lhe derrubar imediatamente
no chão.
- Eu compreendo –
ele falou, começando a respirar ofegante – felizmente
posso dominá-la causando dor intensa por seu corpo, mas sem provocar grandes
hematomas que danifiquem seu lindo rosto, ou suas encantadoras formas de
mulher.
Chutou
então com força suas costelas. Era evidente que estava se precavendo para não a
deixar com qualquer condição de reagir.
- É uma pena ter que agir assim. Com minha
verdadeira filha tais métodos nunca foram necessários. Claro que eu, e agora
você também, sabemos o porquê. Ela foi condicionada a se comportar desde a mais
tenra infância, o que infelizmente não pude proporcionar-lhe, não é mesmo,
Srta. Deise? Então o melhor caminho é a precaução para evitar que você tente
alguma tola reação que por ventura possa atrapalhar nossos momentos que
prometem ser tão agradáveis.
Um novo pontapé na
boca do estômago fê-la urrar, ainda que abafadamente, e contorcer-se de dor.
Tudo o que poderia fazer seria chorar, mas não o fez. Estava nas mãos de um
monstro implacável e impiedoso e imaginou o quanto a própria filha dele havia
sofrido em suas mãos. Mas, no fim ela o vencera. Conseguira expulsá-lo da
sociedade, enclausurando-o naquele asilo. Isto não o fez se arrepender de seus
crimes, mas certamente o fez tomar consciência de que nenhuma pessoa de bem,
muito menos ela, a vítima da monstruosa libido do próprio pai, jamais perdoaria
sua conduta abjeta. Deise teve vontade de conhecê-la. Apesar do pai que tinha,
deveria ser uma garota formidável.
O
velho se agachou junto onde a policial estava caída e a segurou firme pelo
queixo, olhando diretamente em seu rosto, procurando analisar por que espécie
de reação ainda poderia esperar. Sorriu, na certa por deduzir que ela não
pretendia mesmo resistir. Sua outra mão entrou por baixo da blusa dela e
agarrou-lhe um dos seios sob o sutiã.
Então,
ouviram as batidas...
●
O homem
recolheu a mão num ríspido movimento. Olhou nos olhos dela com raiva, como se
fosse o único garoto da classe a ter seu convite para sair rejeitado pela aluna
mais oferecida da escola.
- Que surpresa resolveu me aprontar,
detetive? – ele disse, apoiando o cano do revolver na testa dela.
Ela
meneou a cabeça negativamente, embora a imagem de Marcelo não deixasse de pulular em sua mente. Teria chegado tão
rápido?
- Pois é o que vamos descobrir.
Ele a forçou a
se levantar, puxando-a bruscamente pelo braço. Aos tropeços, obrigou-a a
caminhar até a porta, sempre com a arma apoiada firmemente na linha da cintura
dela.
“Cuidado,
Marcelo” – foi só o que pensou.
○
- Quem está aí? – Seu Antônio perguntou, procurando controlar a voz, mas claramente
exaltado.
Não houve
resposta.
- Estou com a arma na cabeça dela, então é
melhor não me provocar.
O silêncio
angustiante perdurou até que num movimento rápido e repentino, o velho abriu a
porta, apontando a arma para fora, em várias direções, pronto para atirar sem
pensar duas vezes em qualquer alvo móvel que entrasse em sua linha de visão.
Não havia
ninguém. A alguns metros, apenas uma imagem de anjo que há muito estava ali.
- Alarme falso. Talvez tenha sido o vento –
concluiu ainda um tanto desconfiado, após checar bem as redondezas – Vamos continuar de onde paramos, sem perder
mais tempo.
Arrastou-a de
volta para dentro da capela e trancou novamente a porta.
O velho asqueroso
parecia não querer mesmo perder mais tempo e assim que obrigou a detetive a se
deitar, foi-se atirando por cima dela e começou a beijar seu pescoço, suas
orelhas e lamber depravadamente o seu rosto. A jovem detetive desistiu de
tentar conter o choro. Apertava com força os olhos e as lágrimas fluíam com
vontade.
Então,
recomeçaram as batidas.
●
Primeiro foram
duas seqüenciais e mais nada. Agora eram intermitentes. Definitivamente não era
o vento.
Seu Antônio se levantou, parecendo desta
feita mais irado do que nunca.
- Não vá embora, boneca – falou,
engatilhando a arma – eu volto já.
E partiu
novamente rumo à porta.
○
O detetive Marcelo entrou no asilo saltando pelo
portão, sem querer saber de anunciar-se. Sua condição de elemento surpresa
certamente poderia ser útil se sua amiga estivesse em apuros. Arrombou, fazendo
o mínimo de barulho possível, a porta dos fundos do recinto e assim que
adentrou no local ouviu o grito e o tiro...
●
Embora suas
condições não fossem das melhores, a preocupação com a segurança de seu
parceiro era muito maior e a detetive Deise
fez um grande esforço para se levantar. O som do tiro fez seu coração disparar
e ela ficou apavorada com a possibilidade de inconscientemente ter atraído seu
amigo para a morte.
“Talvez mais até do que um simples amigo”, era
o que seu impiedoso coração só agora lhe dizia.
●
Seu Antônio entrou correndo de volta à
capela, enquanto efetuava vários disparos contra alguém que estivesse do lado
de fora. Quando a munição do 38 acabou, ele a atirou fora e apanhou a pistola
na cintura, para continuar atirando. Deise
o observava à distância. Sem qualquer noção do comprimento da sala, ele
continuava recuando de costas e atirando a esmo para fora através da porta
aberta. Acabou trombando com a parede próxima ao altar e foi quando algo
inesperado aconteceu: embora o impacto não tivesse sido muito violento, uma
grande imagem que se encontrava exatamente acima do ponto onde o homem dera o
esbarrão despencou junto com a pilastra que a sustentava, atingindo em cheio a
cabeça de Seu Antônio...
●
Quase que em
seguida, o detetive Marcelo entrou na
sala, de arma em punho. Vendo o corpo inerte do velho com a arma na mão caído
no chão sobre uma grande poça de seu próprio sangue, constatou que sua arma não
seria necessária. Sorriu ao avistar sua parceira viva, ainda que aparentando
não estar se divertindo muito.
●
- Foi ótima a sua idéia de atrair a atenção
dele, mas permanecer escondido – ela disse enquanto ele abria as algemas
com as chaves que apanhara nas roupas do defunto.
- Do que é que você está falando? – ele
indagou surpreso.
- Ora, não foi você quem bateu na porta para
atraí-lo?
- Lamento desapontá-la, mas acabei de
chegar. Ouvi os tiros e vim correndo, mas assim que entrei a situação já tinha
encontrado o seu desfecho.
- Quer dizer que não era contra você que ele
estava atirando?
- Certamente não. A menos que de tão
preocupado, meu espectro tenha chegado primeiro que o meu corpo físico. Mas o
que aconteceu aqui afinal, parceira? E como aquela santa fez tamanho estrago
nos miolos dele?
- Eu não sei. Ela apenas caiu. Só sei que
lhe devo a minha vida.
- Você e muita gente. Não a reconhece? É Santa Rita de Cássia; a santa das causas impossíveis.
●
Pouco
importava se o pequeno pilar sobre o qual a imagem da santa repousava estava
úmido e cheio de infiltrações. Escolhera para Cairo único e exato momento em
que salvaria a vida da detetive Deise
Martins, que seria absurdamente ingrata se não aceitasse a benevolente
proteção da santa. Procurara pelas marcas de bala no corredor aonde Seu Antônio disparara várias vezes antes
de morrer. Incrivelmente nada encontrou. Ali havia apenas a imagem imponente de
um anjo guardião com uma espada no começo do corredor. E ela, Deise, já não tinha dúvidas de que
verdadeiramente as imagens daquele asilo iam muito além do que Seu Antônio acreditara.
●
Foi fácil para
a detetive reconhecer a filha de Seu
Antônio no enterro do pai. De alguma forma, reconhecia e compartilhava
muitos dos sentimentos dela. Após a cerimônia, Verônica se adiantou ao marido e se pôs diante do túmulo,
introspectiva. Parecia triste, mas também aliviada.
A detetive Deise aproveitou para se aproximar.
- Olá, Verônica. Como está?
- Detetive Deise?
- Isso mesmo – disse-lhe, estendendo a
mão.
Verônica
retribuiu a saudação.
- Soube que ele tentou atacá-la.
- Sim; mas antes disso me contou sobre você,
pois achou que me mataria assim como ao padre.
Verônica levou
as mãos ao rosto e começou a chorar. A detetive acariciou-lhe ternamente os
cabelos.
- Se precisar de ajuda, terei prazer em
recomendar alguns amigos meus.
A moça
simplesmente se recompôs. Certamente teria forças para em breve superar tudo
aquilo.
- Obrigada.
Despediu-se e
caminhou de volta para os braços do marido. Sem dúvida era de quem ela mais
precisava naquele momento.
○
Intimamente
sentia-se radiante. Acabara de derrotar indiscutivelmente seu pretenso
desafiante mais uma vez na sinuca. No entanto, dera também a ele motivos para
celebrar. Aceitara seu pedido de namoro, feito algumas horas antes. Menos de
uma semana depois, já plenamente certos de que sempre haviam se amado desde o
dia em que se conheceram, ficaram noivos. Deise
solicitou e conseguiu permissão dos diretores da casa de repouso para que
pudessem se casar naquela capela. Ela mesma fez questão de participar dos
arranjos da igreja e dispôs um lugar para cada uma das imagens.
●
Sua carreira
também parecia seguir para um caminho promissor. Foi convidada a assumir a
chefatura de polícia da cidade. Sentiu-se como alguém a realizar gradativamente
todos os seus grandes sonhos. No entanto, logo percebeu que para prosseguir
naquele cargo teria que fazer vistas grossas para toda a grande podridão que
infestava a cidade.
Passou então a
esperar ansiosamente por uma visita noturna e quando ela veio, a detetive Deise abandonou a polícia esperando que
fosse o bastante...
≈
XVI - PRISCILA
DIÁRIO NACIONAL
Cerca de oitenta anos após
assombrar o mundo com a descoberta de um poderoso combustível capaz de gerar a
potência necessária para deslocar um corpo à velocidade da luz, iniciando um
novo ciclo de desbravamento espacial para além do sistema solar, já não por
passivos telescópios, mas através de precisas sondas espaciais, a ciência
espacial humana, em recompensa aos seus incansáveis esforços, pôde enfim colher
seu maior fruto que figura, talvez equiparado apenas à invenção da escrita,
como o maior prodígio da raça humana. Foi divulgado nesta semana pela revista
científica americana “THE WORLD”, a mais importante do
mundo no gênero, a descoberta pela NASA de
um complexo e esplendoroso sistema solar muito parecido com o nosso, dentro da
própria Via Láctea, acerca de 28 anos-luz de distância, apresentando
vários planetas inclusive mais convidativos do que os nossos vizinhos.
Certamente, mesmo na época da descoberta do “supercombustível”,
tal distância pareceria quase intransponível a uma expedição tripulada, já que
mesmo a tamanha velocidade, (300 000
km/s, que corresponde à velocidade da luz), seriam gastos mais de ¼ de
século apenas para cumprir o percurso de ida, o que levaria uma pessoa com uma
excepcional expectativa de 100 anos de vida a gastar metade dela dentro de uma
nave, caso tencionasse voltar à Terra. Levando-se em conta que a expectativa de
vida normal decai em uns trinta anos, teria realmente o impávido viajante de
abrir mão de inúmeros privilégios de uma vida tradicionalmente terrestre, a
menos que fosse possível construir uma fantástica espaçonave capaz de
reproduzir todas as melhores condições de sobrevivência de um planeta.
Tudo isso faria desse novo
sistema solar, sem dúvida, uma grande descoberta, mas não de proporções tão
singulares quanto dissertamos ao iniciar esta matéria, já que deve haver outros
bilhões de bilhões de sistemas solares como este, que poderão quiçá ser
descobertos e também até visitados futuramente no caso de alguns. O que faz
deste sistema solar então algo tão importante para o futuro do homem?
A resposta é tão simples
quanto imponderável: pelo menos dois dos cinco planetas que compõem o complexo
oferecem condições favoráveis não apenas à visitação, mas como também de
sobrevivência do homem. Dos três restantes, outros dois talvez também ofereçam
condições, embora em seus casos seja preciso uma análise ainda mais minuciosa.
O que torna possível a composição maravilhosa destes planetas é a presença em
suas atmosferas de um novo elemento que se soma aos 118 conhecidos da tabela
periódica e que compõem absolutamente todas as coisas que existem. Batizado
pelos astrofísicos de Spirit
(Sp), tal elemento tem uma característica que o torna mais valioso do
que qualquer outro dos elementos conhecidos aos seres vivos, até mesmo do que o
vital Oxigênio. Também bastante
presente na estrela que é o coração do sistema planetário, tem a incrível
peculiaridade de impedir a degeneração da matéria orgânica. Além disso, é
perfeitamente respirável, embora seja necessária à sobrevivência regular a
presença de Oxigênio livre, ao menos
num período inicial de adaptação. Possui também algumas propriedades de outros
gases da atmosfera terrestre e pode tal como ela servir como um manto protetor
para os planetas.
Em teoria, tudo isso
significa que, um ser vivo, vivendo sob a influência desse gás, seria
virtualmente imortal. Uma vez desenvolvido, deixaria simplesmente de
envelhecer, além de se tornar imune aos efeitos letais de qualquer doença.
E os deslumbres e prováveis
vantagens que estes novos mundos têm a oferecer ainda não terminaram:
calcula-se que o mais convidativo dos planetas, batizado sugestivamente de “Tomorow”,
ou “Amanhã” possua um diâmetro aproximado de 125 000 km, dez vezes maior do que o da Terra, sendo quase tão grande quanto Júpiter, o maior planeta do nosso
sistema solar. Tal descoberta deverá por certo causar um abalo de inigualáveis
proporções no modo como passaremos a contemplar o futuro. Certamente, idéias
sobre como se conduzir a essa tão cobiçada nova realidade já estão sendo
concebidas e até postas em prática. Resta saber se alguém de nossos dias verá
tal concretização ou se o privilégio caberá apenas à longínquas vindouras
gerações.
A seguir daremos um panorama
fornecendo dados a respeito desses fascinantes recantos celestes.
A
ESTRELA – O coração do sistema
Tal como o nosso, o novo sistema tem
uma estrela como seu centro e corpo mais importante. Essa estrela possui muitas
similaridades, mas também algumas discrepâncias com o nosso Sol. Batizada pelos astrônomos de “Priscila”,
a estrela branca tipo A, de 3ª
grandeza é, como o nosso Sol, uma
estrela madura, provavelmente um pouco mais jovem, (cerca de sete ou oito
bilhões de anos – lembrando que o nosso astro-rei possui cerca de dez bilhões
de anos). O diâmetro da nova estrela
é também cerca de sete vezes maior do que o do Sol, (7.000.000 km),
, mas ainda assim pode ser
considerado normal comparado ao de algumas estrelas gigantes e supergigantes conhecidas,
cujo diâmetro pode ultrapassar os três bilhões de quilômetros.
A temperatura na superfície da estrela é de cerca de
9600°C, (+de seis vezes a do Sol). É
composta essencialmente, como o Sol,
de Hidrogênio (cerca de 89%). Nos
outros 11% se faz presente quase que exclusivamente o misterioso gás “Spirit”, cujas alterações que
eventualmente poderia ocasionar na estrutura da estrela ainda são uma
incógnita, embora já se tenha sugerido que o combustível consumido no interior
da estrela não resultaria em cinzas no seu núcleo, (que é o que conduz todas as
estrelas, numa linha de tempo astronômica, a inevitável extinção). Neste caso,
teria surgido a primeira estrela imortal conhecida...
Certamente haverá muito tempo para que se estude e se
desbrave tais probabilidades caso o homem decida realmente se aventurar rumo ao
sistema estelar fascinante de “Priscila”.
Obviamente, a estrela não é parte única em seu
sistema. Mais interessantes do que ela, para o homem, são, sem dúvida, os
planetas que a circundam.
OS PLANETAS
O primeiro deles, por motivos óbvios foi o último a ser
descoberto: é o que está mais próximo à estrela, a apenas 800 milhões de
quilômetros. Pode parecer muito, já que Mercúrio,
o planeta mais próximo à estrela em nosso sistema está a apenas 58 milhões de
quilômetros do Sol, mas deve-se levar
em conta que “Priscila” é mais de dez vezes maior do que o nosso Sol. Este planeta possui o modesto,
(quase inexpressivo), diâmetro de 1000 km, (menos de 1/3 do de nossa Lua). Por seu reduzido tamanho foi
chamado de Little II, já que Little 1 já havia sido descoberto
pouco antes. Contudo, nem de longe chega a ser um planeta totalmente
desinteressante, já que também possui atmosfera rica em gás Spirit, (cerca de 80%) e também contém
razoável quantidade de Oxigênio, (±
10%). A temperatura, de 43ºC, é perfeitamente suportável, ainda que não tão
aprazível quanto à de alguns de seus outros “irmãos”,
como veremos a seguir.
O segundo e último “anão”
dessa família predominantemente de gigantes foi oportunamente batizado de Little
e posteriormente de Little I, após a descoberta de seu irmão menor. Com um diâmetro de 14.000km, Little um é, na verdade,
pouco maior do que a Terra. Sua maior
e mais frustrante particularidade é a de que ele não possui atmosfera e
conseqüentemente não foi detectada pelas sondas espaciais qualquer presença do
elemento Spirit em sua superfície.
Esta ausência se reflete drasticamente em sua temperatura, que oscila entre
140ºC durante a noite a até 1000ºC durante o dia. É, sem sombra de dúvida, o
menos convidativo dos planetas desse sistema para uma excursão humana.
Os membros gigantes do Sistema “Prisciliano” são
compostos por três planetas de proporções realmente descomunais. Future,
o menor dos três, é um astro circular com um fantástico diâmetro que totaliza
110.000km, em comparação com o nosso Sistema Solar perdendo apenas para Saturno e Júpiter. Também da mesma forma que estes, Future é essencialmente gasoso. Estima-se que no caso de conter um
núcleo sólido, o mesmo não deve ultrapassar uns 5.000km de diâmetro. Tudo o
mais que compõe e circunda o planeta é uma mistura de gases e poeira cósmica. A
presença do gás Spirit é também
preponderante, (cerca de 55% da totalidade). E justamente isso, de alguma forma
influencia todos os demais componentes atmosféricos tornando a pressão
gravitacional do planeta fenomenalmente baixa, mesmo com essa estupenda
quantidade de gases envolvendo o núcleo. Tão baixa que, ao que parece, qualquer
corpo capaz de gerar um impulso independente e controlado poderia literalmente
flutuar livremente por sobre os milhões de quilômetros acima da superfície do
planeta, como um verdadeiro “super-homem”.
Tal peculiaridade do gás Spirit parece aplicar-se exclusivamente neste
planeta, já que nos demais não foi encontrada qualquer evidência de que isso
ocorra. A temperatura “futuriana” também é bastante convidativa aos
nossos padrões, aproximando-se dos 30ºC. Um dos problemas teoricamente seria a
dificuldade de controlar os movimentos numa atmosfera tão tênue, mas isso
poderia ser resolvido valendo-se de mecanismos propulsores. Em outras palavras,
ninguém mais precisaria se locomover por veículos automotores ou aviões; todos
voariam por si mesmos valendo-se de pequenas máquinas de propulsão.
Um problema um pouco mais grave no tocante a um processo
de colonização se dá pela pequena área sólida do planeta. Menos da metade do
espaço da Terra e pouco maior do que
nossa Lua. Um lugar absolutamente
difícil de se conter uma explosão demográfica.
A resposta para este dilema se apresenta nitidamente no
penúltimo planeta do sistema estelar de Priscila;
o nome escolhido foi Tomorrow, o “amanhã” e certamente não por acaso, pois é para ele como a nenhum
outro que a humanidade já projeta o seu futuro.
O PARAÍSO ESPACIAL CHAMADO “TOMORROW”
Tomorrow tem um
diâmetro dez vezes maior do que o da Terra
e seu volume seria capaz de abrigar 770 exemplares de nosso planeta.
Excetuando-se o tamanho, todas as demais condições de sobrevivência são
espantosamente similares entre os dois planetas, (temperatura, boa presença de Oxigênio livre e água potável, etc.).
Some-se a tudo isso o acréscimo em 25% do fantástico gás Spirit, um autêntico “elixir
da longa vida”, na atmosfera do
planeta e o homem terá finalmente diante de si a grande probabilidade de
concretização de seu eterno sonho de viver para sempre. A agradabilíssima
temperatura repousa nos constantes 22º e claro que jamais faria alguém morrer
de calor ou frio. A água faz seu ciclo de forma idêntica ao que ocorre em nosso
planeta e embora os mares não ocupem tanto espaço quanto o fazem por aqui, mesmo
assim, a quantidade de água em Tomorrow ainda
supera em mais de trezentas vezes a da Terra.
É certo que os dados quase precisos sobre a distância a
ser percorrida para se chegar até lá de fato impressionam, (duzentos e
cinqüenta e cinco trilhões, oitocentos e cinqüenta e três bilhões e oitocentos
mil quilômetros), mas é bem provável que valha a pena, pois uma vez lá,
ter-se-ia literalmente a vida inteira pela frente.
O último dos planetas do novo sistema estelar é quase tão
grande quanto o nosso Sol e bilhões
de bilhões de vezes mais denso e pesado. Seu impressionante diâmetro atinge a
colossal marca de 900.000km, cerca de 75 vezes maior do que o da Terra e faria
certamente o gigante Júpiter, com
seus incríveis 141.930km de diâmetro parecer um micróbio. O nome escolhido para
esse imensurável mundo pode soar extremamente pretensioso para alguns, mas é
absolutamente propício para outros: “God’s Throne” – o “trono de Deus”. Teria a
humanidade descoberto nos céus a morada de seu criador?
Tão grandiosos quanto seu abissal tamanho são os
mistérios que o cercam. Em primeiro lugar, God’s
Throne possui uma atmosfera composta quase que exclusivamente pelo gás Spirit, (mais de 99%), contendo apenas
0,02% de Oxigênio. Ainda assim é
possível que o ser humano consiga habituar-se no caso de uma eventual
transferência para o planeta, desde que tenha feito “estágio” nos seus vizinhos com mais Oxigênio para se adaptar ao novo gás. A temperatura é baixa, entre
cinco e 0ºC, mas nada assustador aos nossos padrões. O mais impressionante é
que toda essa gigantesca esfera é totalmente sólida, diferentemente dos comuns
planetas gigantes gasosos que conhecemos. Felizmente, este Golias sideral transita numa distância de 50.000.000.000, (isto
mesmo, cinqüenta bilhões), de quilômetros de sua estrela-mãe, o que lhe impede,
mesmo com todo o seu tamanho, de perturbar as órbitas de seus ‘irmãos’ menores.
O SISTEMA PLANETÁRIO DE PRISCILA
ESTRELA
NOME
|
DISTÂNCIA DA TERRA
|
DIÂMETRO EQUATORIAL
|
ESCALA DAS IDADES
|
TEMPERATURA DA SUPERFÍCIE
|
TEMPERATURA DO NÚCLEO
|
COMPOSIÇÃO
PRINCIPAL
|
PRISCILA
|
28 ANOS-LUZ
|
7.000.000
de quilômetros
|
Branca tipo A
|
9600ºC
|
±65.000.000ºC
|
Hidrogênio (89%);
Spirit (10%)
|
NOME
|
1- God’s
Throne
|
DIÂMETRO
|
900.000km
|
ATMOSFERA
|
99%Spirit;
0,02%Oxigênio
|
TEMPERATURA CONSTANTE
|
0ºC
|
DISTÂNCIA MÉDIA DA ESTRELA
|
50.000.000.000 de km
|
NOME
|
2-
Future
|
DIÂMETRO
|
110.000km
(diâmetro total – núcleo + atmosfera)
|
DIÂMETRO
EQUATORIAL PROVÁVEL DO NÚCLEO
|
± 20.000km
|
ATMOSFERA
|
40%
Spirit, 40% Oxigênio, 20% outros gases
|
TEMPERATURA
|
29ºC
|
PARTICULARIDADE
|
Gravidade
extremamente tênue permitindo que os corpos se locomovam livres pela
atmosfera
|
DISTÂNCIA
DA ESTRELA
|
5.000.000.000
de km
|
NOME
|
3- Tomorrow
|
DIÂMETRO EQUATORIAL
|
125.000km
|
NATUREZA
|
sólido
|
ATMOSFERA
|
Similar a da Terra + 25% do novo gás
|
TEMPERATURA CONSTANTE
|
22ºC
|
DISTÂNCIA DA ESTRELA
|
9.200.800.000 de km
|
DISTÂNCIA DA TERRA
|
±
255.853.600.800.000 de km
|
NOME
|
4- Little I
|
DIÂMETRO
|
144.000km
|
NATUREZA
|
Sólido
|
ATMOSFERA
|
Não possui
|
TEMPERATURA
DA SUPERFÍCIE
|
140ºC(noite); 700ºC(dia)
|
DISTÂNCIA
DA ESTRELA
|
998.000.000
de km
|
NOME
|
5- Little II
|
DIÂMETRO
|
1000km
|
NATUREZA
|
Sólido
|
ATMOSFERA
|
80% Spirit,
10% Oxigênio, 5% Hidrogênio, 5% outros
|
TEMPERATURA
CONSTANTE
|
±45ºC
|
DISTÂNCIA
DA ESTRELA
|
800.000.000
de km
|
Ainda pouca coisa sabemos
sobre a magnitude de tal descoberta, menos ainda aqueles que não são astrônomos
servidos pela mais alta tecnologia, mas ainda assim, quase podemos afirmar que
esta é sem dúvida uma forte e evidente indicação de que muito em breve, grande
parte do espaço deverá estar sendo colonizado pela raça humana.
»
DIÁRIO
NACIONAL
EDIÇÃO ESPECIAL
Saiba
o que é a
R.T.O.
INTRODUÇÃO
Após a realização da mais
importante reunião do Conselho Mundial de países em todos
os tempos, medidas surpreendentes e de certa forma preocupantes foram
discutidas e sancionadas traçando os futuros rumos que o amanhã reserva para os
seres humanos. Há um ano, a descoberta de um planeta desabitado, mas que
oferece plenas condições de sobrevivência, além de ser várias vezes maior do
que a Terra, despertou no espírito do homem sensações sem precedentes devido
principalmente à possibilidade de chegando lá poder viver para sempre. Muitas
polêmicas começaram a surgir; algumas ganharam esclarecimento na reunião do
Conselho, outras permanecem cintilando nas mentes de muitos, já que o assunto
envolve os interesses de cada ser vivo na Terra. Talvez a maior dessas
polêmicas seja a acusação de que os EUA, em confabulo com outra, (ou outras),
grande potência, já tenha enviado, ou esteja prestes a enviar uma expedição
colonizadora ao planeta “Amanhã”, sem
o conhecimento e a autorização do Conselho. Os americanos, assim como as demais
potências, foram categóricos ao negar terem tomado qualquer iniciativa no
sentido de remeter qualquer tecnologia que não meramente de pesquisa e não
tripulada ao planeta Amanhã, ou a
qualquer outro pertencente ao sistema da estrela Priscila. No entanto, tal afirmativa vem sendo altamente
desacreditada, principalmente por seus tradicionais inimigos do oriente, sem
que, todavia, qualquer prova concreta contra eles tenha sido apresentada.
Nesta edição especial, o “Diário
Nacional” apresenta aos seus leitores os principais tópicos aprovados
pelo Conselho
Mundial da ONU. Cremos que cada criatura viva com interesses e apreço
por seu futuro merece, em inextirpável direito, total acesso a estas
informações.
O editor
CAPÍTULO UM – O CONSELHO MUNDIAL
Composto
por líderes e representantes de 193 países, o Conselho Mundial da ONU (Organização das Nações Unidas), teve há
poucos dias a mais importante reunião de sua história, onde todas as pautas se
direcionaram a um senso comum: o futuro dos aproximados 6,5 bilhões de humanos
que povoam a Terra.
Ainda que muitos afirmem não se
sentirem vislumbrados pela possibilidade de recomeçar a vida literalmente em um
novo mundo, certamente qualquer ser humano na face da Terra terá sua vida
direta ou indiretamente afetada pelas decisões tomadas por esse supremo
Conselho.
Era de se esperar que estando a
humanidade preparada ou não, o “amanhã” viria.
Cabe a cada um, e rapidamente, agora ponderar sobre como se enquadrará neste
novo alvorecer. Grandes “dicas”, (pra
não dizer “sentenças”), já foram
pré-estabelecidas pelo Conselho. Eles a chamam de “passos” e são, na
verdade, requisitos necessários, se não indispensáveis a uma colonização segura
e pré-sustentada do novo universo. Deixaram claro também que novos “passos”
poderão eventualmente surgir no decorrer das necessidades. É certo que
já mesmo estes, (alguns mais, outros menos), conseguem polemizar e dividir
radicalmente opiniões por todo o mundo.
Antes de falarmos mais
detalhadamente dos “passos” em si, vejamos como se pretende por em prática este
audacioso projeto.
CAPÍTULO DOIS – AS EXPEDIÇÕES
Já frisamos que os dispêndios de se
enviar uma expedição tripulada ao planeta Tomorrow, mesmo se valendo dos
novíssimos supermotores capazes de atingirem a velocidade da luz, seriam
enormes. Além disso, com nossa atual tecnologia não há a menor possibilidade de
se estabelecer qualquer tipo de contato com um planeta a uma distância tão
longínqua. As únicas ondas de rádio que nos chegam com regular precisão provêm
obviamente da gigantesca estrela Priscila, coração do sistema, e
certamente também está muito além de nossa capacidade tecnológica reproduzir
semelhante forma de propulsão de energia. Assim, ao menos por enquanto, caso
uma nave tripulada pousasse sobre a superfície do planeta Tomorrow, tudo o que poderíamos fazer seria monitorar seu sistema,
(e isso até um certo tempo), não dispondo de qualquer outra forma de
comunicação direta. Como dificilmente tais astronautas cativariam algum desejo
de se aventurarem na longa viagem de regresso à Terra, jamais chegariam também
ao nosso planeta notícias de suas impressões. Uma possível solução para este
problema talvez fosse a instalação de diversas bases pelo decorrer do percurso,
o que encurtaria a distância às informações a serem transmitidas, mas isto
também teria altos custos e demandaria um tempo muito maior do que o que a
humanidade parece estar disposta a esperar para chegar ao novo mundo. Está mais
do que claro que ninguém quer preparar este “admirável
mundo novo”, parafraseando Huxley,
para as futuras gerações. Todos querem estar lá o mais rápido possível, porque
cada minuto a mais longe da milagrosa atmosfera do planeta “Amanhã” pode representar uma diferença mortal no sonho dos que
querem viver eternamente.
Foi absolutamente dentro desta visão
que o Grande Conselho optou por, em
vez de desperdiçar preciosos custos e esforços enviando pequenas expedições
pré-colonizadoras, exigir que todos concentrem a mais maciça e total dedicação
no maior processo cooperativista de todos os tempos: o mundo inteiro
empenhar-se-á na construção de uma grande e única espaçonave capaz de
transportar com absoluta segurança e conforto toda a população terrestre. Pelo
menos aos que couber o merecimento e justamente para esta definição foi criada
uma “cartilha” com diretrizes
julgadas e aprovadas pelo próprio Conselho
a qual resumidamente transcreveremos no próximo capítulo. Vejamos primeiro um
prognóstico hipotético sobre a construção da tal nave segundo um parecer dos
próprios cientistas representantes do Conselho.
Em sua viagem inicial, a
super-espaçonave ainda não batizada deverá transportar pelo menos a quantidade
absurda de cem milhões de pessoas. Ainda que composta verticalmente
dividindo-se em andares, deverá ter pelo menos vinte quilômetros de extensão,
sendo preferencialmente ideal que tenha de trinta a cinqüenta quilômetros,
podendo ultrapassar o peso de 1.000.000.000
de toneladas. Certamente, a primeira das dificuldades será fazer algo tão
pesado e imenso atingir já de início a impressionante velocidade de 11 km por
segundo, velocidade de escape da Terra, (velocidade necessária para se superar
a força da gravidade do planeta). Todavia, a resolução deste e dos demais
problemas de ordem técnica caberá aos físicos, engenheiros, cientistas,
mecânicos e todos os gabaritados profissionais envolvidos diretamente na
concepção e construção da nave. Aos leigos caberão outros esforços e também
aceitarem os diversos sacrifícios que tudo isso acarretará.
A previsão, (otimista, diga-se de
passagem), é de que se leve de dez a vinte anos para a nave estar concluída.
Caso os principais responsáveis permanecessem aqui após o término do projeto,
certamente, em função da experiência adquirida, este tempo provavelmente cairia
pela metade em se partindo para a construção de uma nova nave. Infelizmente é
quase que certo que estes gênios da tecnologia certamente quererão estar
incluídos já na primeira leva de viajantes. Isto quer dizer que além dos cem
milhões que partirem, poucos dos que atualmente já nasceram serão privilegiados
a conhecerem o novo planeta.
Por isso e por outras coisas mais é
que neste imponderável e inflexível processo de seleção repousam os problemas
mais difíceis de serem contornados pelos que anseiam partirem para este novo
mundo.
Para tentar definir isso da melhor
forma possível foi montada uma verdadeira operação: a R.T.O..
CAPÍTULO TRÊS
R.T.O. – ROUTE TOMORROW OPERATION
1º PASSO
“PROPORCIONALMENTE
AO SEU TAMANHO, O NOVO PLANETA SERÁ DIVIDIDO SIMILARMENTE À TERRA”
A princípio não serão questionadas se
melhores condições são oferecidas por determinadas regiões em detrimento de
outras, a mesmo que tal dissonância atue de forma gritante para elevar
excessivamente o padrão de determinado país, ou países, simultaneamente
prejudicando em similar proporção o padrão de outro(s).
Por razões de etimologia
histórico-religiosa, as divisões entre oriente e ocidente pertinazes aqui em
nosso mundo deverão perdurar também no planeta Tomorrow. Passado um período de instalação e adaptação, as mudanças
e melhores distribuições que se fizerem necessárias deverão ser sancionadas por
este próprio conselho.
2º PASSO
“AO SUPREMO CONSELHO MUNDIAL CABERÁ O
STATUS DE AUTORIDADE-MOR NO NOVO PLANETA”
Cada país indicará seu representante no
Conselho, que desfrutará de autoridade idêntica a dos demais. Todas as decisões
serão firmadas sempre após votação, levando-se em conta à vontade da maioria. A
nação que descumprir tal diretriz poderá ser sumariamente extirpada do
conselho, podendo inclusive ser dissolvida pela força conjunta dos demais
membros, ou mesmo expulsa do novo planeta.
3º PASSO
“NINGUÉM ESTARÁ AUTORIZADO A GERAR
FILHOS ANTES QUE O 1º SENSO NO NOVO MUNDO SEJA CONCLUÍDO”
Para uma perfeita organização de uma
nova sociedade é elementar que o Conselho possua absoluto conhecimento e
controle dos membros que irão compor essa população e para isso, antes de
acolher a inclusão de membros novos recém-nascidos é preciso um registro geral
e organizado de todos os já existentes. Desde já frisamos que o descumprimento
de qualquer uma destas normas regidas sujeitará o infrator a penas severas e
irrevogáveis.
Nota
editorial:
os três primeiros passos tratam de doutrinas coletivas ou
gerais. É uma espécie de pré-constituição que visa apenas dar os primários
passos na organização social do novo planeta. A seguir, o fator chave para a
concretização desta sociedade: os requisitos exigidos a cada ser humano para
ser aceito como membro. Eis o perfil dos “tomorrianos”.
CAPÍTULO QUATRO
4º PASSO: “DIRETRIZES PARA O ENQUADRAMENTO NO
PROJETO”
Visando livrar a espécie humana
nesta nova ‘gênese’ de problemas cruciais que neste mundo primitivo foram e são
sempre determinantes para contribuírem com o sofrimento, a infelicidade e a
falta de harmonia da espécie, este Conselho adota medidas radicais que poderão
ser vistas a princípio como excessivamente drásticas por alguns, mas que
futuramente deverão ter reconhecidos os bons frutos de tamanho sacrifício.
Embora o planeta Tomorrow possa comportar tranquilamente uma população mais de
100 vezes maior do que a da Terra, (+ de 600.000.000.000 de habitantes), nem
todos os que estão aqui terão permissão para seguirem rumo ao novo planeta.
Alguns não irão simplesmente por exceder-se a capacidade máxima da espaçonave,
mas talvez tenham outra chance em uma outra viagem que já é estudada, todavia,
a outros é vetado mesmo sonhar com tal possibilidade, pois não lhes caberá
nenhuma.
O Supremo Conselho Mundial assume
total responsabilidade pelas medidas estabelecidas. Penosas, por um certo ponto
de vista, todas elas visam única e exclusivamente o cumprimento dos maiores
sonhos de nossa espécie que são a perpetuidade e a expansão pelo universo. Que
os que ficarem na Terra compreendam e também abracem a nossa causa, afinal,
também eles poderão construir um mundo novo e muito melhor aqui mesmo neste
planeta e até, quem sabe um dia, encontrarem um espaço tão bom ou melhor do que
esse nos bilhões de trilhões de galáxias que existem.
Deus nos arremessou para longe do
Éden, mas, por nós mesmos, nós redescobrimos o caminho e estamos prontos para
recuperarmos a vida eterna que nos foi tirada.
CAPÍTULO
CINCO
Ficam de antemão excluídos de serem selecionados
para seguirem ao planeta Tomorrow:
1- ativistas adeptos ou
simpatizantes de regime não democrático;
2- qualquer líder, monarca ou
governista de idéias ditatoriais ou retrógradas;
3- qualquer criminoso de guerra
pelas normas da Convenção de Genebra;
4- qualquer suspeito ou condenado
ainda não quite com a justiça até a data prevista do embarque espacial;
5- qualquer fanático incapaz de
prestar juramento de obediência às normas do Conselho por convicções pessoas
impertinentes;
6- qualquer portador de doença
considerada incurável ou de difícil tratamento sobre a qual paira qualquer
nebulosidade nos conhecimentos da medicina moderna. Também o portador de doença
congênita que o coloque à margem de uma sociedade ativa e vigorosamente
saudável. Ainda os que carreguem nos genes traços das referidas doenças mesmo
não as tendo desenvolvido diretamente;
7- qualquer pessoa com mais de 45
anos;
8- qualquer pessoa com QI abaixo de 110.
♦
Por
fim, cada um dos selecionados deverá contribuir com a quantia de 200.000 U$
(duzentos mil dólares) que serão empregados nos custos para a construção da
super-espaçonave.
CAPÍTULO SEIS
DISPOSIÇÕES
FINAIS
Conhecidas as exigências, os que
preencherem os requisitos deverão se cadastrar e aguardar a lista de convocação
após uma minuciosa seleção dos mais gabaritados dentre os diversos aspectos que
serão analisados por representantes nomeados pelo Conselho e por fim, pelo
processo de sorteio. Os que simplesmente excederem a capacidade da nave serão
incluídos em listas de espera para futuras viagens.
Deixa-se claro que aos admitidos
será expressamente proibido:
·
Pleitear por
parentes, amigos ou qualquer um que não se enquadre no padrão de seleção;
·
Transportar
sobrecarga de peso além do que será rigorosamente pré-determinado, o que
poderia prejudicar o bom funcionamento da espaçonave;
·
Conceber
filhos dentro da nave durante todo o decorrer do percurso, o que da mesma forma
poderia conduzir o veículo a uma danosa superlotação;
·
Cometer
qualquer crime, insubordinação ou desvio de conduta durante a viagem;
·
Encabeçar ou
mesmo apenas participar de qualquer manifestação contrária as determinações
expressas pelo Conselho.
Os que violarem qualquer uma destas normas antes
do embarque serão imediatamente expugnados da lista de selecionados; os que
violarem as normas após o embarque serão julgados e se condenados poderão ser
punidos com a morte por lançamento no vácuo espacial.
Assim determinou o SUPREMO CONSELHO
MUNDIAL da ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
FIM
NOTA EDITORIAL FINAL
A proposta
desta edição especial do DIÁRIO NACIONAL
foi de relatar com imparcialidade as radicais mudanças que se avizinham no
futuro de todos em nosso planeta. Ressaltamos que em nenhum momento
intencionamos influenciar opiniões, mas sim garantir a todos o direito
inquebrantável de ter acesso à informação. Confiamos plenamente que nossos
leitores são perfeitamente capazes de analisarem e concluírem por si mesmos o
que é válido e o que é prejudicial ao mundo em que vivem, ou viverão.
Quinze anos depois...
DIÁRIO
NACIONAL
Alguns anos antes do limite de data
previsto, foi anunciado pelos cientistas do Supremo Conselho Mundial que a
primeira “super-espaçonave”, batizada de “Vitória
I” teve sua produção concluída. Com capacidade para oferecer conforto e
segurança no espaço sideral para até 800.000.000 de pessoas por pelo menos
cinqüenta anos, é sem dúvida o maior e mais inacreditável empreendimento da
história da humanidade. Tendo um custo estimado de dois quatrilhões de dólares (2.000.000.000.000.000 U$), a nave pode
certamente ser considerada como um mini-planeta artificial. Contém praticamente
tudo o que um ser humano precisa para dispor de uma vida, no mínimo, perfeitamente
tolerável. Todas as necessidades básicas e intermediariamente básicas de todos
os tripulantes poderão ser largamente supridas graças ao avançado investimento
humano e tecnológico que foi empregado na construção da nave Vitória I. A
previsão é de que ela pouse no solo do planeta Tomorrow daqui a vinte e sete
anos, duzentos e quatorze dias, dezessete horas e três minutos. Talvez, cerca
de um ou dois anos antes disso o milagroso gás Spirit, bastante presente em quase todo o sistema estelar já possa
estar exercendo seus efeitos sobre os passageiros da nave, inclusive o mais
importante deles: a neutralização do processo de degeneração celular.
Estima-se que para esta primeira
viagem cerca de três bilhões e meio de pessoas se inscreveram em todo o mundo.
Infelizmente, destes, apenas cerca de um bilhão e duzentos milhões cumprem os
critérios exigidos no processo de recrutamento. Destes ainda, cerca de vinte
milhões desertaram alegando motivos pessoais, que na absoluta maioria das vezes
se refere à exclusão de algum ente querido. Comportando a nave 800 milhões
passageiros, torna-se fato que da primeira leva de inscritos deferidos, apenas
380 milhões ficarão excluídos por excesso de lotação. Especula-se que para
estes, uma nova nave Vitória já teve seu processo de construção iniciado com
total autorização do Supremo Conselho. Com a experiência adquirida espera-se
que o novo projeto leve menos da metade do tempo para estar concluído.
Isto sem dúvida deve representar uma
grande esperança aos que não couberem na primeira lista de embarque.
●●●
DIÁRIO
NACIONAL
Hoje, eu, há 20 anos editor e
redator deste Diário, um dos mais
importantes do nosso país e que acompanhou bem de perto os acontecimentos que
mudaram a história da humanidade desde a divulgação do descobrimento da grande
estrela ‘Priscila’ e seus planetas habitáveis, venho uma última vez a exercer
minha função profissional amada e abraçada com afinco no decorrer de todos
estes anos. Amanhã pela manhã a grande espaçonave Vitória I parte rumo ao novo mundo e a mim, este humilde editor e
redator, coube a graça de estar entre os inscritos que superaram o rígido
processo de seleção e terminaram aptos para seguirem viagem com a Vitória I.
Vim, embora certamente não mais
precisasse, para agradecer aos que sempre me acompanharam, aos quais sempre
procurei retribuir tal fidelidade com o mais absoluto e dedicado empenho dentro
das minhas funções. Mas, vim principalmente para tentar, dentro das humildes
limitações da minha razão, justificar o que ainda agora, às portas da grande
expedição espacial da humanidade parece injustificável: ‘por que muitos têm de ficar e somente alguns têm de ir?’
Considerada sob
um frio olhar científico, é certo que tal pergunta poderá ser facilmente
respondida. Mas como ser tão frio diante do destino de cinco bilhões e meio de
semelhantes? Disseram que nós, os oitocentos milhões de separados, somos como
uma experiência e que jamais haverá evolução sem experiências. Há até bastante
lógica em tal ponderação, mas que se perde totalmente quando se sabe que apenas
a própria experiência sentirá os benefícios da ação em vez dos
experimentadores. Porque se o que está para ser feito é pelo bem da humanidade,
como explicar que apenas dez por cento dela será beneficiado? Não seria mais
fácil crer que os que ficam, (não os que partem), é que estão sendo vistos como
mero experimento em prol da minoria?
Ainda assim e com tudo isso, quantas
famílias não se despedaçaram sob a pressão desta insana seleção? Quantas
sinceras e longas amizades não se apartaram para sempre e quantos amores não se
converteram em ódio mortal por conta de um prestígio tão arbitrariamente
herdado apenas por alguns?
Não há qualquer justificativa aos
que partem, mas também não há aos que ficam argumentos plausíveis para
condená-los apenas por não poderem estar no lugar deles. A maioria absoluta das
religiões diz que o homem nasceu para viver para sempre e logicamente ele nunca
se separou deste desejo.
Desejo profunda e sinceramente que
cada um encontre o seu melhor caminho. Adeus a todos.
O
editor
Uma
Semana
Depois
DIÁRIO
NACIONAL
Saudações
a todos.
Após a conturbada semana que sucedeu
a partida da super-espaçonave Vitória I,
levando 800.000.000 de pessoas rumo à primeira tentativa humana de colonização
espacial, conseguimos com alguma dificuldade devolver à circulação o Diário Nacional, noticiário de
confiança da maioria da população de nosso país. Muitos vão estranhar que este
redator, que há uma semana veio a público se despedir, ainda esteja neste
momento no exercício da sua função. Confesso que não foi mesmo uma decisão
fácil, mas desisti de meu sonho de viver para sempre. Agora que tudo passou,
creio que provavelmente tomei mesmo a melhor decisão. Não há e talvez nunca
haja como ter certeza, mas neste momento não reconheço em mim qualquer traço de
arrependimento. Por mais difícil que seja de acreditar, ouso dizer que até me
sinto feliz por aquele a quem coube o direito de embarcar para suprir minha
ausência. Não pretendo ser espelho para ninguém e nem creio que o simples ato
de abdicar do próprio acesso à nave contenha qualquer ato de heroísmo. É,
sobretudo uma decisão pessoal de cada um.
Agora, embora muitos ainda prometam
dedicar toda a vida no desmedido esforço de perseguirem o objetivo dos que
partiram, parece-nos ser muito melhor acreditar que o “novo mundo” deve ser iniciado por nós aqui mesmo...
DOZE
ANOS
DEPOIS
DIÁRIO
NACIONAL
Partiu hoje, da central espacial da ONU, a segunda expedição tripulada rumo
ao planeta Tomorrow. Lembrando que a
primeira expedição aproxima-se de cumprir apenas metade do percurso, ainda que
viajando com extrema regularidade dentro dos limites da velocidade da luz.
De proporções menores do que sua
antecessora, Vitória II transporta
desta vez cerca de 350.000.000 de pessoas, sendo que alguns ainda deverão ter
sua permanência avaliada pelo Supremo Conselho. Vale lembrar que o mesmo
Conselho deixou claro que uma terceira expedição está absolutamente descartada
pelo menos até que as duas primeiras estejam estabelecidas no planeta e seja
desenvolvida alguma forma de manter contato com os que ficaram na Terra, o que
pode levar bastante tampo. Isto fez surgir por todo o nosso mundo muitas
facções rebeldes que sonham em agrupar uma força suficientemente grande para,
nas próprias palavras deles, “invadir o planeta e suplantar o arrogante
Conselho”.
Outros querem apenas se esquecer da
parte que lhes foi arrancada...
16 anos depois
DIÁRIO NACIONAL
Há cerca de 30 anos o dia de hoje
vem sendo esperado para se tornar o grande marco na história das conquistas da
humanidade; certamente, o novo e mais expressivo dos divisores da ‘linha do tempo’.
Por ironia, a confirmação de tal
imensa expectativa acabou por se apresentar da forma mais nefasta possível.
Tudo começou com a descoberta em
nossa galáxia de um novo e singularíssimo sistema estelar, dentre todos os
outros já conhecidos. Em torno de “Priscila”,
a estrela-mãe, foi reconhecido um grupo de planetas, alguns aparentando
condições mais do que favoráveis à colonização humana, entre elas a fascinante
possibilidade do homem se tornar imortal. Após alguns anos de árduas pesquisas
sobre a nova descoberta, o homem engendrou uma série de drásticas medidas para
se lançar nesta fantástica corrida espacial, medidas que como nunca antes,
dividiram nações interna e externamente, dispersaram famílias até mesmo
lançando pai contra filho, irmão contra irmão... Tudo pareceu encontrar um
desfecho imutável, ainda que não unanimemente justo, quando pouco mais de um
bilhão de humanos embarcaram em viagem de mão única para este universo de
maravilhas. Aos que ficaram aqui, muitos deveras ressentidos com os que
partiram, coube esquecer o passado e o futuro outrora vislumbrado e valer-se de
cada minuto do presente como se também vivesse eternamente.
Hoje, vinte e oito anos após o
embarque, Vitória I, a primeira das
chamadas “super-espaçonaves”, pousou no solo do planeta Tomorrow, ou simplesmente Amanhã.
Também hoje, após alguns anos de minha aposentadoria, retorno como convidado à
redação deste Diário tão querido e
tão presente em minha vida, para falar, certamente com alguma propriedade,
sobre tal assunto, já que fui um dos poucos no mundo que abri mão do justo
direito de estar lá.
De forma que talvez jamais se possa
explicar, nossos irmãos, já com os pés sobre o sonho da imortalidade,
encontraram neste sonho sua própria ruína. Poucos instantes após se instalarem
sobre a superfície do planeta, Priscila,
a estrela central e alma do sistema, temperamentalmente resolveu contrariar de
forma inacreditável todas as escalas conhecidas, ou em outras palavras,
simplesmente enlouqueceu.
Primeiro, deixou de ser uma estrela
branca tipo A normal estável e passou
deliberadamente a variar, inclusive retrocedendo às condições de estrela
nova azul tipo B e O. E justamente nesta última
condição, a estrela expandiu-se numa supernova
implacável, devastando tudo o que pôde encontrar pelo caminho, a
começar pelos fragilíssimos planetas que a acercavam. Embora mesmo “God’s Throne”, o maior deles fosse
quase tão grande quanto o nosso Sol, também junto com os outros, foi
desintegrado numa ínfima fração de segundo pelo poder devastador da explosão da
estrela. Este mesmo fluxo descomunal de energia deve expandir-se ainda com
razoável força por um raio de pelo menos dez anos-luz, o que significa que não
há qualquer chance de Vitória II, a
segunda nave expedicionária que partiu da Terra, mas ainda não havia chegado ao
planeta escapar da rota mortal oriunda da estrela.
Quanto a Priscila, ainda está lá, muito mais visível inclusive: tornou-se
uma anômala supergigante vermelha, com um assombroso diâmetro de
2.500.000.000 de quilômetros, altamente exaurida e envelhecida pelo esforço na
liberação de energia e talvez prestes a se tornar uma estrela anã branca
e agonizar até a ‘morte’ daqui a alguns milhões de anos.
Dificilmente os efeitos da explosão
chegarão ao nosso sistema com força suficiente para provocar algum dano; no
entanto, é possível que a enorme quantidade do misterioso e intrigante gás Spirit chegue um dia ao nosso planeta
ou aos nossos vizinhos no Sistema Solar, atribuindo-lhes novas e imprevisíveis
características.
A questão com que devemos nos
preocupar desde já é “o quão bem vinda será a chegada desse novo gás?” A
esmagadora maioria de pessoas intelectuais e bem sucedidas dentre nós se foi
nas duas fatídicas expedições colonizadoras extraterrestres o que, apesar de
tudo, nivelou não apenas a condição da população humana na Terra, mas como
também sua consciência coletiva.
Estamos ou estaremos realmente
prontos para encarar um novo sonho de imortalidade e auto-suficiência?
≈
“Bem, amigos; foi demais essa idéia de reunirmo-nos para
contar histórias apavorantes aqui neste cemitério e certamente precisaríamos
combinar para repetirmos isso muitas outras vezes, mas enfim, acho que nos
desligamos demais do horário. Não sei quanto a vocês, mas se eu me demorar mais
para chegar em casa, logo terei uma nova história de terror para contar a meu
próprio respeito.
Muito bem; mas antes de irmos embora, tem alguém aqui mesmo
neste cemitério que eu quero que vocês conheçam...”
XVII – O HÍBRIDO
Fora justamente de Ben a tal instigante idéia de se
reunirem ao cair da noite em um cemitério para contar histórias arrepiantes que
conheciam. Também fizera ele absoluta questão de ser o primeiro narrador, por
estranha coincidência, falando sobre uma criatura perambulando nos sombrios
corredores de um cemitério. A árvore sob a qual todos se sentaram também fora
indicação de Ben. Mas, sem dúvida, o
mais estranho e preocupante e que só agora, junto com uma certa dissimulação característica
nos olhares de Ben, eles se davam
conta, fora a inacreditável expansão das grossas raízes daquela árvore sem que
nenhum dos aventureiros se apercebesse. Praticamente todo o solo do lugar
estava tomado pelas raízes gigantescas que muito mais agora se assemelhavam a tentáculos.
-
Tem alguma coisa errada aqui – murmurou Fábio
para Vânia, que estava ao seu lado.
Notava-se claramente uma preocupação crescente nas feições de todos; menos em Ben
Hudson. Este, ainda que disfarçadamente, sorria.
Elizabeth
foi a
primeira a se levantar. Aquilo tomava um rumo mais sério do que qualquer um
deles poderia ter concebido no início.
“quando um a um foram aceitando o aliciante convite de Ben”
- Vou dar o fora daqui – foram as
últimas palavras de Beth. Na verdade,
nada mais a menina teve tempo de fazer ou dizer antes que um forte cipó
descesse velozmente da árvore, se enrolasse com extrema agilidade em torno de
seu pescoço e a projetasse para cima como uma marionete lançando-se num vôo
violento.
Keyla, a mais próxima dela, estando
quase aos seus pés, fez o que a pobre Beth
nem ao menos conseguiu: gritou.
●
Todos
tentavam se levantar, mas era tarde demais. As raízes definitivamente haviam
adquirido vida e envolviam suas pernas, cinturas e braços, impedindo-os de se
movimentarem. De trás deles, um pouco afastado, ouvia-se o tenebroso gargalhar
do único que permanecia de pé e totalmente livre: Ben Hudson.
- Não lhes contei o final da
história, amigos? O morto agarrou os jovenzinhos e os manteve para sempre em
sua companhia. Rárárárárá!
Pedro tirou um canivete da
cintura. Fora um bom escoteiro em sua infância. Tentou decepar as raízes que o
prendiam, mas rapidamente seu punho foi envolvido e sofreu uma pressão
descomunal que simplesmente mutilou sua mão, que voou longe, ainda segurando o
canivete. Ele gritou com vontade e uma outra raiz entrou velozmente em sua
boca, atravessando-lhe a garganta e saindo pela parte de trás da nuca.
Todos
gritavam desesperadamente, além de fazerem esforços sobre-humanos, mas vãos
para tentarem se libertar.
Fábio foi erguido pela cintura por um
dos tentáculos e jogado no chão, ainda preso a ele, por diversas vezes. A cada
impacto ouvia-se o estalar dos ossos se partindo, mas na segunda ou terceira
pancada ele já cesso de gritar, certamente morto.
- Ajude-nos, Ben! – gritou Rogério, já com uma raiz também a
estrangulá-lo.
- Não posso – sentenciou Ben – prometi minha ajuda a ele
primeiro.
- E a troco de que você fez isso? – gritou para ele Paula, enquanto seu namorado Rogério também não resistia ao
enforcamento e tombava morto.
- Eu vou ser famoso, garota – Ben respondeu com desdém – Desde a infância fui fascinado por histórias
de horror e sempre as escrevi, embora, nunca, ninguém tenha dado a qualquer uma
delas o merecido valor. Mas aqui neste mesmo cemitério encontrei a minha mais
fascinante história. Eu o chamo de O
Morto, mas, quando vivo, ele era um escritor também. Somos muito
parecidos; tivemos os mesmos problemas de aceitação, mas infelizmente ele
morreu de um ataque, sem que nenhuma de suas obras tivesse sido publicada. Seu
coração, única companhia que tivera em toda sua vida além dos personagens que
criara, o traiu em sua própria casa e ele acabou aqui, neste cemitério frívolo,
absolutamente desconhecido, como o mais reles dos indigentes.
Todavia, ele teve forças para não se
conformar e se dedicou a provar que poderia viver e melhor sem o seu estúpido
coração.
Quando passei despretensiosamente
pelas portas deste cemitério, senti, como nunca havia sentido, uma certeza de
que aqui dentro se ocultava a maior história de minha vida. Aí mesmo, sob essa
árvore, eu soube o que fazer.
- Mas em que nos matar o tornará
famoso? – Paula perguntou, entre lágrimas.
- Vocês tolos não perceberam, mas ele
manipula nossas mentes. Tanto que expandiu suas raízes sob suas vistas sem que
sequer notassem. Assim, quando ele estiver de volta neste plano, exercerá seu
domínio sobre todas as mentes do mundo e obrigará a todos a respeitarem e
admirarem os meus contos.
- Ele o matará também, seu idiota – vociferou Hugo.
Como um
enorme braço de madeira, um grande galho desceu da árvore, apanhou Hugo pelo pescoço e ergueu-o. A ponta de
uma raiz elevou-se e penetrou em sua barriga, perfurando-a. Ele deu seu último
grito. Quando a raiz saiu à altura do peito, exibia o coração ainda pulsante do
rapaz.
- É assim mesmo – continuou Ben, contemplando a cena, indiferente – muitos têm que morrer para que se faça a
justiça.
Estava louco e não se apiedaria de qualquer um dos
ex-colegas. Mas, mesmo que o fizesse, nada mais estaria ao seu alcance fazer
por eles.
Estela começou a gritar mais do que todos
quando sentiu que a pressão que as raízes exerciam sobre o seu corpo começou a
aumentar incontrolavelmente e a imobilizaram por completo. Próximo dali, as
maléficas extensões da árvore removiam com facilidade a pesada tampa de uma das
campas. Mais algumas raízes envolveram os tornozelos de Estela e ela foi arrastada violentamente pelo chão para dentro do
túmulo. O tampão foi posto de volta e por alguns instantes todos ainda puderam
ouvir os abafados gritos de desespero vindo de dentro daquela cova...
Mauro, o próximo, também imobilizado,
percebeu os finos filetes de raiz entrando em suas narinas, ouvidos e pelo
canto de seus olhos que logo o fizeram chorar autênticas lágrimas de sangue. Sentia as micro-raízes descerem-lhe pela
garganta e até correrem por sua cabeça. Todo seu corpo aparecia estar sendo
corroído por dentro. Milhares de vasos enegrecidos saltaram às vistas em sua
pele enquanto ele gritava no mais pleno estado de desespero. Quando ele tombou
morto, os filetes já lhe saíam pelos poros e ele já se assemelhava mais a um monstro-planta do que a um ser humano...
As irmãs Bruna e Cristina tiveram o seu final juntas, por capricho ou sadismo da
criatura. Foram postas sentadas uma de costas para a outra e enroladas pela
cintura e pela garganta. Lentamente a pressão foi aumentando até elas
desfalecerem numa morte até certo ponto tranqüila...
Vitor não teve a mesma sorte, tendo
braços e pernas expandidos além dos limites da resistência humana, sendo então,
brutalmente arrancados de seu corpo com ele ainda vivo...
Vânia teve a vasta e bela cabeleira
loira também arrancada de sua cabeça por um único e violentíssimo puxão.
Depois, uma chicotada tão forte em suas costas praticamente a dividiu em duas
partes...
Uma imagem
com cerca de um metro e meio de puro bronze foi erguida como se nada pesasse
pelas raízes. O golpe sobre a cabeça de Saulo
foi tão violento que parte das vísceras de seu cérebro se projetaram a até
oito metros de distância...
Realmente
o cenário era aterrador. Um a um aqueles inocentes contadores de história iam
sendo assassinados com impressionantes requintes de brutalidade. Restavam
quatro pessoas e ao que tudo indicava, aquele horror só cessaria quando todos
perecessem.
Paula resolveu apelar abertamente a sua
fé.
- Oh Deus, isto é tão injusto e sem sentido!
Por que concedes ao demônio o direito de rematar nossas vidas?
O corpo de Paula foi
erguido e levado para bem diante do tronco central da árvore maléfica. Lá, pela
primeira vez, uma feição meio humana, meio monstruosa se revelou figurando-se
na madeira.
“MANHA
CAAAAJA!” –
urrou. Tinha um olhar aparvalhado, mas cheio de ódio e uma mandíbula ameaçadora
repleta de presas afiadas.
A cabeça
de Paula foi forçada a entrar no
orifício da boca do monstro que a mastigou com vontade, largando no chão o
resto do corpo decapitado.
- Finalmente meu mestre se revela –
festejou Ben. Estava mesmo bastante
excitado com aquela matança.
- Já se perguntou para que mais essa coisa
precisaria de você, Ben? – gritou para ele Rafael, o último homem sobrevivente, além do próprio Ben.
Ben pareceu não compreender a
insinuação. Tanto que, por um instante, seu olhar se tornou vago e estúpido.
- Do que você está falando?
- Tá na cara que ele precisava de
sacrifícios humanos para ressurgir. E foi o que você lhe deu, contando com uma
gratidão que não parece em absoluto ser típica da natureza de uma criatura tão
rancorosa e vingativa.
Ben enfureceu-se.
- Cale a boca, seu maldito! Você é apenas um
covarde desesperado diante da morte.
- Só que eu sei que vou morrer, Ben.
Já você crê mesmo que o monstro vai admitir dividir alguma glória quando
dominar o mundo?
Rafael foi apanhado como um boneco
e cravado de costas nas lanças do portão de entrada do cemitério. Ficou lá
pendurado como um espantalho, esvaindo-se em sangue e gritando inutilmente...
Restavam
duas jovens; Daniela e Keyla; e Ben Hudson, que recuperara toda sua
soberba e convicção de que estava do lado dos vencedores.
- Obrigado por me livrar das intrigas de
nossos inimigos, mestre e sei que fará o mesmo com estas duas que faltam, mas
antes peço que lhes conte que tudo o que fiz será mesmo digno de sua gratidão e
recompensa.
A árvore viva urrou cheia de ódio para seu pretenso
servidor e logo as suas raízes envolveram também os pulsos e tornozelos de Ben, que pareceu ficar estupefato com o
que acontecia.
- Não pode ser! Eu fiz tudo o que você
mandou!
Dezenas de raízes começaram a chicoteá-lo por todos os
lados, fazendo surgirem inúmeros talhos por sua pele. Logo seu corpo se tornou
uma massa ensangüentada que não encontrara como os outros o rápido alívio da
morte. Tudo o que fazia era gritar “não!” em meio à saraivada de golpes
desferidos. Enfim, quando cessou de gritar, já morto, foi cravado ao lado de Rafael nas lanças do portão de entrada,
compondo o macabro cenário, mas absolutamente ideal da fachada daquele
ambiente.
- Seremos as próximas – lamuriou-se Daniela para Keyla, chorando. Realmente só restavam as duas.
- A não ser que aconteça alguma coisa –
ponderou Keyla.
- Que diabo você acha que pode acontecer
ainda? – explodiu Daniela,
chorando ainda mais – Estão todos mortos,
não vê? Chegou a nossa vez.
- Lembre-se dos contos, Dani. Nos
contos sempre acontece alguma coisa...
- Sim, acontecem; - a outra concordou como se
estivesse conversando com a maior das idiotas – estupros, homicídios e toda a sorte de tragédias. É o que acontece e é
o que também está reservado para nós aqui.
“Sim.”
“Era isso...”
Numa
velocidade incrível, Daniela foi
conduzida pelas “raízes-tentáculo” até
o pequeno e modesto banheiro que servia aos visitantes. Sua cabeça foi afundada
na latrina enquanto ela se debatia em vão, buscando o precioso ar da
superfície. Logo seus movimentos foram se tornando débeis até cessarem por
completo e ela ser abandonada ali, de joelhos, com a cabeça mergulhada no vaso.
“Adeus, Dani” – pensou a jovem e bela Keyla – “Todos merecem o que têm” – havia
dito em seu conto.
Imediatamente
os tentáculos a agarraram.
Ela
procurou ao máximo se controlar.
- Está furioso porque seu plano não deu
certo, não é? – falou ao léu, mas absolutamente certa de estar sendo
ouvida.
- De nada lhe valeram os sacrifícios.
Conseguiu retornar a este plano, mas não na forma humana que era o que você
mais queria, certo?
O monstro a conduziu vigorosamente para junto de si, como
fizera com Paula e passou a fitá-la
nos olhos. Não esperava que a petulante mulher retribuísse o olhar. E mais do
que isso; ela parecia ter um trunfo na manga.
-
MANHA CAJA! –
falou-lhe o monstro, num tom que soava quase como uma súplica.
- Eu sei – ela sussurrou, procurando
soar extremamente sensual – e em breve
poderá ser “nossa casa”.
Novas raízes vieram e começaram a acariciar todo o corpo da
jovem, enquanto ela e o homem-árvore
se mantinham rigidamente ‘olho-no-olho’.
Lentamente os tentáculos começaram a despir as suas roupas e nua ela foi
arrebatada até ficar colada ao tronco vibrante da árvore. O hálito daquele
rosto no tronco era horrível, como o de um animal em avançado estado de
decomposição, mas ela aceitou seu destino.
Fechou os
olhos e imediatamente sentiu-se penetrada por algo pronto para fecundá-la e que
certamente a mataria se não lhe permitisse renascer...
≈
FIM
Arquivemos os processos.
Não há evidências que comprovem estes crimes.
Já pode partir, senhora Coisa Invisível, mas passaremos a vigiar os seu passos. É bastante
fácil encontrá-la apesar de sua condição de “não-visível”.
Estamos devolvendo também o seu diário.
Não precisamos mais dele para reconhecê-la...
BIBLIOGRAFIA
POESIA
O
poder das palavras (1994)
Novas
poesias (complexos sintetizados de um abstrato) – (1994)
Estranho
Poente (1994/95)
Tempos
Felizes (ou O sincronismo do mundo) – (1995)
Pulchra Puella (poemas
sentenciosamente líricos) – (1995)
Cidadão
do Império (1996)
O
Extermínio dos Enfermos (2004)
Suco
de queijo (2005)
PROSA
O
Labirinto vivo – biografia (1996)
O
deletério do amor – roteiro teatral (2004)
Crimes
sob suspeita (ou “The Invisible Thing’s
Diary) – contos (2005)
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