terça-feira, 16 de outubro de 2018

SUCO DE QUEIJO - 2005


FABIANO SANTOS SOUSA





SUCO DE QUEIJO



(POEMAS 2005)








“Mesmo que os cantores sejam falsos como eu,
serão bonitas, não importa, são bonitas as canções.
Mesmo miseráveis os poetas, os seus versos serão bons...”

Francisco Buarque de Holanda


















































A SAG e (também por ele)
a Deus






1

Despluralizei.
O que restou?
Não sei.
Não sou...

Reoriginei.
Foi tudo irreal.
Errei?
Foi mal...

Desplanejei.
Há tempo...
Desinventei.
Há senso?

































2

Se sombreassem os percalços
(se pudesse, os sombrearia)
Ah, quão opaca seria
minha herança, os encalços!

E o que herdo, o futuro
privilégio não é
por coragem ou fé
outrossim, tão escuro

Se reluzisse a vontade
raiasse a persistência
que maravilha sem par!

Mas, pra polemizar
Deixemos livre a verdade
sem luz em minha essência






























3

És quem eu quero
és minha sina
Ser quem eu quero
não te fascina

És quem eu amo
quem escolhi
mas quem eu amo
não me sorri

És quem me encanta
quem me enlouquece
loucura vibrante
assaz me estremece

mas não é a utopia
ou outra loucura
de ser a mais bela
nem a mais pura

Não é romance
Pleonástico-feliz
É poesia
doura o que diz























4

O que era ímpeto virou pretensão?
O que era só receio se tornou covardia?
Bem-vinda de volta, cara poesia
A teu recanto favorito, o coração

A verdade jamais trai aquilo que atesta
Mas ainda que sincera, se cansa e fermenta
Como então evitar feição mais rabugenta
Co’ as entranhas cheias de massa indigesta?

Ó espírito jovem chamado Solidão
Que com mesma disposição encara dor e alegria
Perder-te no passado é um erro vão

Lavada a verdade em lagoa honesta,
Que nada se perca, se acrescenta
Com tudo de mim darei uma festa.






























5

Escondem-se as palavras, mas as procuro
Procuro-as não para ser de maior valia
Mas as agigantar, quem sabe, com grã poesia
Que são rostos do presente, passado e futuro

Escondem-se os segredos e os procuro
Pelo simplório afã de aprender dos loucos
Aprendendo a saber que o saber sempre é pouco
Só que não com quão ímpeto que os poemas conjuro

A satisfação se esconde e quase desisto
Por fim a procuro meio desmotivado
Saturado de exemplos, mas desinteressado
Até ser tocado pela saga de Cristo

Encontro o que a todos deve ser o bastante
E devolvo as verdades dos livros à estante
Reconheço quem sou num súbito instante
Por tanta procura, sonhador viajante...




























6

Anjo meu, anjo feliz
Olha em meus olhos e diz
Errar não é mesmo preciso?
O rastro para Deus é preciso?

Anjo fidelíssimo amigo
Muro entre mim e o perigo
Pode me abandonar?
Posso lhe magoar?

Anjo como todo ser da luz
Que o deleite do mal não seduz
Vejo a verdade e acaba?
Levar-lha-á com suas asas?

Anjo que confia a minh’alma
O dom supremo da calma
Fervoroso em sua atribuição
Brilha sem perfeição?

Anjo que vê meu futuro
Um tanto também sou puro
Não choro, não juro, não fujo
Menos penso ser cão sabujo

Só, anjo, que me aqueça a chama
Da distante estrela de quem ama
Não só de amor, mas de riso
Posso escolher o que preciso?


















7

Eu sempre amo o sol durante o dia
Que arde e reverbera num longínquo eterno
E pulula nas memórias, pois com um caderno,
Lápis e cores o reproduzem com vasta maestria

Da lua eu me lembro, mas para visitá-la
Pela utopia inerente de certos sonhadores
Que de tudo anseiam ser participadores
E quando a conhecer, talvez eu vá a amá-la

Há uma suprema essência de invisível teia
Que tão nos interliga num austero nó
Até formar a tudo; tudo é uma coisa só
Por isso este amor simples tanto me recheia

































8

Ignóbil do demo me quis atingir
da horda dos bucéfalos da perdida esperança
planejou oprimir, açoitar, banir
não contou erigir-me brutal confiança

Que fosse O Maldito em própria pessoa
cuja mente castigos a arguciar não se finda
viesse, (venha!) há tempo ainda
e ouso ditar que minh’ora é boa

Mas não, nem foi mesmo tão nobre bufão
embora alguns parvos o lambam de quatro
a corte é covil e o rei é um rato
que toma em surdina qual reles ladrão

Seu nome nÃo digo poiS a muiTos Assusto
outROs cegos verão qualquer apologia
há ainda os que cheirarão de perTo a orgia
prontos para em praça erguerem-lHo busto

Sua infam’ estratégia pôs-me em alerta
barganhou e ousou longe da ética
perdeu na soberba, criatura patética
alongando sem pudor o tamanho da oferta

Da forte magia que ondula o mundo
refestela-se além da responsabilidade
e tenciona atrair dos justos metade
até desfrutar de seu valor oriundo

A quíntupla estrela ensina a inverter
a chave dos símbolos reluz à visão
é ele, arauto da Revelação
empenhado em minar e fazer sofrer

Ainda que os mais infortúnios mostrasse
implacável figurasse impropérios, desatinos
seria o trovejar sobre a balbúcia de menino
se não há tentação que não nos enlace

Mas como o cãozito que busca a bola
portar-me-ei a plena visão?
Estouro a bola de quem é o Cão
Ainda que de ódio e pragas me assola

Pelos meios e fins de vital assistência
já que tudo se existe a quem procura
laço minha meta, mas com ternura
no mais vou seguro pela paciência

Tudo sucumbe à lucidez da coragem
cada vez mai é suficiente o que se tem
vencer é saber que faz nenhum bem
morrer no mar em primeira viagem

Assim encontrei de ti tal verdade
não vale quanto toca todo teu sonho mau
por poder que não teria sobre o menor mortal
extirpo tua glória com minh’ autoridade






































9

Os versos serão paupérrimos
ficarão arruinadas as rimas
escola nenhuma os aceitará
mas eis que a sua volta
surge um coração multicor
Há a todos a fase
de desenhar corações ao redor de versos
mesmo os que odeiam versos
amam inexplicavelmente os corações
chamam os poetas de ridículos
o romantismo de piegas
a causa humana de perdida
mas de forma inexorável não ousam
desdenhar dos desenhados corações
com canetas coloridas
































10

Aonde vais, menino pagão
abrindo portais em pleno chão
atrás de túmulos para violação
e de encruzilhadas para maldição?

Não sei para onde vou, mas sei quem és
Não tenho dons, mas tenho “fés”
Portais e túmulos sob teus pés
Maldições mais funcionam em seu revés

Dê-me cá digníssima devoção sincera
De ritos e bênçãos da mãe Primavera
Já vivi do caos e da dor austera
Do poder dê-me a face que não degenera

Por que confiar na simplicidade?
É tal qual mentir, aumentar a verdade?
É possível saber distinguir sem alarde
Que o dualismo nos conheça e tudo nos guarde




























11

Pedi um beijo e você não me deu
Disse que daria em hora seguinte
Odiei-te, matei-te, execrei-te, pois doeu
Mas eram dezenove horas, agora são vinte

Assim é meu Estado em tua redoma
Vai à guerra, conquista, confina até a alma
Após a devastação, emancipado se acalma
Não se habilita ao poder e a rainha o retoma

Entre horas e beijos veio uma lenda
De que o tempo conspira para que não se vença
Ao beijo atrasado pode haver a dispensa

Verdade é vaidade passível de crença
Se a bela hesitar, ainda que se renda
Será para sempre o príncipe criatura horrenda






























12

O vício pior é pelo que não se tem
O maior cego é quem enxerga perfeito
O primaz sofrimento nem se acerca do peito
Até desistirmos a vitória não vem

O merecimento é um fardo pesado
que poucos carregam já que o não vão abrir
É como cultivar iguarias pra praga consumir
ou sonhar ser ídolo do tempo passado

O pior desperdício é o da economia
A vital rebeldia crê na disciplina
Ter objetivos não é ideal

O começo de tudo chega sempre ao final
Plena certeza, só no que alucina
O que não é pra reluzir é que tem mais valia






























13

Hei, veja nos arredores quantas imperfeições
Onde estão seus descendentes construtores?
Não faltam parabéns para os atores
E métodos de erradas informações

Há um orifício com céu azul entre as nuvens carregadas
Que não há de perdurar até o fim
Da mais efêmera canção já cantada
Por homens, demônios e serafins

Despertaram os mortos famintos
Prontos para devorar o futuro que você plantou
Ávidos por carregar o rei que ninguém coroou
Que verte em água o vinho mais tinto

Até a morte parecerá amena
A ninguém a selva irá responder
Os melhores intérpretes vão entrar em cena
Para que a luz no palco possa escurecer




























14

A tua libidinosa beleza se impõe
Quando desfila elegante, suave brisa
Faz nascerem flores sobre os teus caminhos
Sendo bálsamo às mentes e corações que te amam

Ou quando avança impetuosa, natureza enfurecida
Furacão que despreza qualquer dor alheia
Outorga desafio aos cavaleiros de teus reinos
Que se mantém sem dó pelo teu amor

Mas, depois que passa
A marcante presença do teu estilo,
O brilho ímpar de teu encanto

Deixa tristeza e saudade
Nos que sonham habitar-te a mente
Possuir-te o corpo






























15

De pé sobre o mapa-múndi
um pé firme sobre a América
outro sobre a África
sento-me n’Antártida
afasto, com um chute, a Ásia
meus pés cercam o Atlântico
nasço uma rosa-dos-ventos
fecho os olhos e deito
de lado, cruzando o Índico
repouso a cabeça na Austrália
e meus pés mergulham-me no Pacífico




































16

Onde está o amor e a poesia?
Todo dia amanhece e anoitece
Tudo se enquadra e isso me entristece
Ver que está errado, sem valia

Que muitos vejam e todos já possam ter visto
O fogo não queima e a água não molha?
Será que ninguém vê o que todo mundo olha
ou será mesmo dever se conformar com isto?

Até onde chega a tolerância?
Sempre há escolhas, mesmo as mais soturnas?
Minhas esperanças vou postar em urnas?

Tudo se atrasa pela ganância
Deveria ser mesmo extremismo
furar fila pra saltar pro abismo?






























17

Quero te descrever, mas está difícil
Como direi teu beijo, teu amar?
Talvez veja os teus lábios, quiçá, teu olhar
De resto és fortaleza imune a todo míssil

Quero te retratar mesmo sem o dom
Para ter de ti concreto fragmento de lembrança
Que jamais seria a ti, mas uma esperança
De creres que tanto amor algo tem de bom

Quero atravessar-te, mas tens de ser a ponte
Ou de me esticar arrebentarei de dor
E quando minha mão tocar-te estarei partido

Eu sei, nem todo querer há de ser merecido
Um pouco mais de ímpeto desmantela a flor
O mais bravio rio jaz secada a fonte






























18

Minha todo dia a amante vem
e eu a espero lá onde marcamos
o sol brilha ‘ante onde nos amamos
e em sua tez, ouro puro se retém

eu lhe digo: “onde eu for tu navegarás
e meu coração ri que zarpa contigo
Vês mera audácia, mas é amor, te digo
Minh’alma contempla a ti na hora da paz”

De todo meu prazer, de toda alegria
numa só essência ela é guardiã
enquanto guardo apenas vã simbologia

que se puder ousar usarei sem covardia
venha amante sempre como uma manhã
sempre a renascer nossa fantasia






























19

Nunca foste minha realmente
Nunca nos amamos em essência
A ninguém entregaste tua inocência
Ela mesma te deixou tão de repente

Nunca fomos um para o outro tudo
E jamais fomos fiéis em próprio sentido
Caímos como todos no sonho repetido
Às vezes descrever compete ficar mudo

Nunca fomos doidos loucos pela ilusão
Onde erramos então, sem peso e sem medida?
É uma reflexão ou uma despedida?

Ser outro é ser parte de alguém da vida
Mas, à parte isso, há uma saída
Arbítrio e honestidade em mesma proporção






























20

Por que eu voltei aqui?
Já conheço este momento
Este dia já vivi
Parti sem prévio aviso
Nem mesmo me despedi
Fui buscar o que era novo
Para aprender eu existi
Mas em algum instante
Lamentavelmente me perdi
Tornado à condição de outrora
Por miséria, regredi




































21

Quem sois vós diante do espelho?
Será que tanto tempo se passou
sem que passasse...
...eu pelo espelho?
E agora não me reconheço?
Não vos conheço.

Ou esperava de vós mais personalidade
que vos pusésseis diante de mim, outro
cheio do revés inerente a todos os espelhos
que fosseis absolutamente tudo o que eu não sou?
Quis inverter os sentidos
de quem é insensível?

Quem sou eu diante de vós,
que vos fiz sem escolha?
E sem escolha vos fiz
Quiséreis ser a mim, mais humano
para fazer-vos ser maior pelo amor e pela palavra
sentir o ardor das emoções
e ouvir a voz abençoada das palavras
Quiséreis ser a mim, mais sensato
preso um pouco menos aos limites do absurdo
Uma prisão conseqüente, não como a dimensão dos espelhos
Quiséreis ser a mim, mas vós
com vontade e condição de modelar-vos a aparência
e eu quisera ser a voz
que só e perpetuamente ecoa
de vosso mundo a incorruptível verdade.














22

Na intersecção dos conjuntos passado e presente
o conjunto do presente mente
o conjunto do passado é valente, mostra os dentes
e ainda, se pode, faz-se de inocente.
O conjunto do presente é descrente
faz a todos pensarem que não ama, não sente
e que a culpa é do conjunto do passado aparente
O conjunto do passado, passado, ressente-se
e acusa o presente de negligente
de seguir sem pensar e olhar só pra frente
pro conjunto futuro, sempre membro ausente
O conjunto do futuro se sente
ferido e ultrajado pelo parente
e do que só assuntava através de lente
faz-se ativo fiel incisivo exigente
“Inviável, absurdo conceberem tais mentes
qualquer traço de culpa em quem é só vertente”
Os defeitos, conflitos suscetíveis inerentes
de seus próprios acusadores que lhe fazem decorrente.

Sobrará qual conceito se seguirem em frente?
Quem será mais astuto, o mais senciente?
Tribunal impossível de haver presente
se o crime inexiste, mas todos são agentes.























23

Às vezes eu mesmo me complico
enchendo meu velho baú de lembranças com conjecturas
misturando-as e formulando esperanças
poucas vezes plausíveis

Às vezes me subestimo
sintetizando a essência dos meus sonhos
num produto vago comum

Mas, o que sempre sou é uma erupção de desordem
num espaço único e restrito
Tudo bem. Eu sei exatamente como é a perfeição
Resta-me encontrar o equilíbrio.


































24

Bom dia!
Você é minha.
É sim. Você é minha...
Ouviu? Ouviu bem; você é minha.
Não, não é a que está ao lado,
mas você.
Isso mesmo, você.
Você é minha...
Esqueça qualquer outra verdade
e aceite esta que é a sua real condição.
Você é minha.
Ignore essa pequena chama de orgulho.
Isto nada tem a ver com orgulho,
vaidade, auto-estima, senso de preservação.
Tem a ver com certeza
e com destino.
Você é minha...
Sim, você é.
De nada lhe vale tentar ignorar-me,
fingir que não é consigo.
Você é minha...
De nada lhe valerá dizer que não é.
Você acha que não quereria ser?
Você sabe mesmo o que quer?
O que importa o que você quer?
Você é minha.
Em plenitude lhe possuo.
Se uma mulher pode ser de um homem,
então você é minha.
Idealizada e gerada para mim.
No mundo, você é a mulher que me pertence.
Nada similar à escravidão.
Nenhuma relação com dependência.
Apenas seu estado de ser.
Tão natural quanto sua natureza.
Você é minha...
A cada instante e a todo momento
Mais do que pensa, sonha e respira.
Mais do que precisa, mais do que convém.
Mais do que tudo, você é minha...
Ainda que possa fugir.
Ainda que esteja longe.
Ainda que sejamos mortais.
Ainda que tudo é efêmero
e não nos compete o futuro.
Sim, você ainda é minha...
Ecoa-lhe minha voz por todo o ser
e lhe preenche.
Sua mente transborda de mim
e deságua em seu coração;
propaga-se, difunde-se constantemente.
Você é minha.
Pare de se esconder!
Pare de lutar contra isso!
Pare de pensar que sou louco,
ou me tentar fazer parecer louco.
Aceite apenas ser o que você é.
E você é. Minha...
Além não há nada.

Que isso lhe soe agradável.
Ah, como quero lhe ver feliz!
Eu te amo.
Quero encontrar agora o seu olhar vagante.
Sem perder a menor sinceridade do que eu já disse,
far-me-ia tão bem lhe tocar neste momento;
em todos os momentos.
Sempre é todo momento em que você é minha.
Louvaria beijar-lhe.
Vibrar, maravilhar-me com o seu calor.
Vencer na pessoa do amor.
Ser o seu amor.
Por acaso eu já disse de quem você é?


A possessão é um mito
O poder, ilusão
Você é minha
maior perdição.


















25

Quando me vi sob um céu tão plenamente estrelado
rodopiei
Livre de todo preconceito e repressão
Sem culpa no semblante
e com o espírito pueril
Nem me lembro do que antes fazia;
mas sei que era noite e havia estrelas
e agora, sempre que é noite estrelada
sinto o rodopio de minh’alma
Todos os meus chakras se harmonizam
até eu ser e sentir a evolução
constante do universo
e não importa onde eu esteja,
quem eu seja,
 ou o que eu faça;
este mero rodopio me redime































26

Em todo pensamento há um pouco do infinito
Desnutrido pelo desuso
O infinito é a sabedoria de um deus aflito
Apenas de si mesmo confuso

A virtude divina é a liberdade
O resto é sorte e ostentação
Em todo pensamento cabe a verdade
Embora pouco ela conste na escalação.






































27

Olá, cara fome, minha companheira
Esbugalhar-me os olhos parece-lhe ser ofício
E devo estremecer a cada novo míssil
ou beliscar um queijo de qualquer ratoeira

Disse-me o Senhor, nosso fardo é leve
se perseverada nossa altivez
Lamento amiga fome, ao menos desta vez
mesmo que perdure, teu direito é breve

Sei que há demais fomes que não ao corpo nutrem
Não há em que, todavia, distinguir a procedência
‘inda que certas sustâncias preguem demais violência

entram por bocas, olhos e ouvidos que lhe escutem
agem sobre a honra, o vigor e a inteligência
Esta é a pior fome: a maleficência.






























28

Vem às portas da vitória derrota amarga
e da comemoração só zombaria resta
pouco se lhe importa se está armada a festa
quem não pode chora e transfere a carga

Cuida a justiça só da unanimidade
próprio interesse, vê-se, não lhe vence
digno ou não, tudo é non sense
o vício do imprevisto jaz na passionalidade

Assim aos que contam no pico da montanha
para as juras e o beijo com um raiar fascinante
do negror das nuvens a enxurrada é tamanha

Gosto do sol e da chuva vibrante
Ainda que venha a vitória, orgulho não me assanha
Sempre há mais guerra e o tempo é avante






























29

Enxergar arte é uma arte
A sensibilidade é caprichoso presente
É mais fácil ser artista do que estar em Marte
Difícil é transver o que não é transparente

O mundo é arte não porque é terra
rochas e mares que giram em harmonia
mas por só o descrevê-lo já ser poesia
e o desmerecer ser próprio de quem erra

A arte assim fica como o mundo
pululando no universo de toda existência
que quanto mais a busca com sua Ciência
mais se lhe cobre de mistério profundo

































30

Eis, amigo Toni, cá estamos nós
Eu mais ponderado, tu já extravagante
Tu sempre engajado nas coisas importantes
E eu edifico túmulos como os faraós

Sigo amofinado por dilemas fúteis
Tu, com propriedade, desfrutando a vida
São imutavelmente teus momentos úteis
E eu cheio de contas, dores e perfídias

Talvez, querido amigo, quisesse tua sorte
se outra fosse ela antes da tragédia
e não te seguisse desde o berço teu tesouro

mas nada em teu brilho deve-se à morte
foste e serás luz sempre e sem média
sobrou-me garimpar por meu próprio ouro.






























31

A forma
O nome...
A carga emotiva
(e todos os neófitos dirão “viva!”)

A fome é a de tudo o que não define
Só revela mistérios
Pouco acrescenta, nada informa
Mas entrete e inigualavelmente distrai

O nome ousa
Assume a total responsabilidade
Tem o princípio e o fim pleno em si
É o tudo que sintetiza
Em visão, o nome é a luz

Emoção é o tecido
A roupa ou o corpo que individualiza
Sedimenta, define
Na atração, é o tesão.



























32

De doces pecado minh’alma se nutre
Não traz medo ou pudor por deliciosa doença
Apenas anseios, posto que em tua presença
A paixão é um fervor e a culpa, um abutre

Assim te adoro mesmo que em diferença
Que a harmonia seja vilã e o destino seja um biltre
Impossível coibir que tamanh’alm’altiva filtre
Tudo o que entorpeça desse amor a crença

Mentalizo facilmente tua beleza despida
E todo me preencho de alegria imensa
No maior prazer de se querer da vida

E ainda que lhe falte recíproca recompensa
Não consente ser a menor sensação desmerecida
Est’ alma irremediável à paixão propensa






























33

O poeta sorri
para outra ilusão
Como pode, ó pavão,
querer ser jabuti?

E golpeia certeiro
o próprio coração
Que loucura, carneiro,
perseguir o leão!

Ébrio do infinito
em nova façanha
D’ enrolar a aranha
desista mosquito

No fim há quem diga
que é de sonho gigante
Parabéns, formiga,
por erguer o elefante




























34

Nuvem
nuvem nuvem
nuvem nuvem nuvem nuvem
raio
raio raio chuva
chuva chuva
chuva chuva chuva raio chuva chuva
chuva chuva chuva chuva raio chuva chuva
chuva chuva raio chuva raio chuva raio chuva
chuva chuva chuva chuva chuva chuva chuva
chuva chuva chuva chuva
chuva chuva
chuva sol
arco-íris
sol
































35

Lembrei-me de você de uma outra vida
num exercido ritual em altar escuro
Você me pertencia toda e sem saída
na minha mais perdida memória do futuro

Eu sei que nada nos obriga a acreditar no místico
Por que confiaria em tamanha brusca mudança?
A ponderação de fato não é esperança
e ainda que seja não se extingue de valor artístico

























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