FABIANO SANTOS SOUSA
SUCO DE QUEIJO
(POEMAS 2005)
“Mesmo que os cantores sejam falsos como
eu,
serão bonitas, não importa, são bonitas
as canções.
Mesmo miseráveis os poetas, os seus
versos serão bons...”
Francisco Buarque de Holanda
A SAG e (também por
ele)
a Deus
1
Despluralizei.
O que restou?
Não sei.
Não sou...
Reoriginei.
Foi tudo irreal.
Errei?
Foi mal...
Desplanejei.
Há tempo...
Desinventei.
Há senso?
2
Se sombreassem os percalços
(se pudesse, os sombrearia)
Ah, quão opaca seria
minha herança, os encalços!
E o que herdo, o futuro
privilégio não é
por coragem ou fé
outrossim, tão escuro
Se reluzisse a vontade
raiasse a persistência
que maravilha sem par!
Mas, pra polemizar
Deixemos livre a verdade
sem luz em minha essência
3
És quem eu quero
és minha sina
Ser quem eu quero
não te fascina
És quem eu amo
quem escolhi
mas quem eu amo
não me sorri
És quem me encanta
quem me enlouquece
loucura vibrante
assaz me estremece
mas não é a utopia
ou outra loucura
de ser a mais bela
nem a mais pura
Não é romance
Pleonástico-feliz
É poesia
doura o que diz
4
O que era ímpeto virou pretensão?
O que era só receio se tornou
covardia?
Bem-vinda de volta, cara poesia
A teu recanto favorito, o coração
A verdade jamais trai aquilo que
atesta
Mas ainda que sincera, se cansa e
fermenta
Como então evitar feição mais
rabugenta
Co’ as entranhas cheias de massa
indigesta?
Ó espírito jovem chamado Solidão
Que com mesma disposição encara
dor e alegria
Perder-te no passado é um erro
vão
Lavada a verdade em lagoa
honesta,
Que nada se perca, se acrescenta
Com tudo de mim darei uma festa.
5
Escondem-se as palavras, mas as
procuro
Procuro-as não para ser de maior
valia
Mas as agigantar, quem sabe, com
grã poesia
Que são rostos do presente,
passado e futuro
Escondem-se os segredos e os
procuro
Pelo simplório afã de aprender
dos loucos
Aprendendo a saber que o saber
sempre é pouco
Só que não com quão ímpeto que os
poemas conjuro
A satisfação se esconde e quase
desisto
Por fim a procuro meio
desmotivado
Saturado de exemplos, mas
desinteressado
Até ser tocado pela saga de
Cristo
Encontro o que a todos deve ser o
bastante
E devolvo as verdades dos livros
à estante
Reconheço quem sou num súbito
instante
Por tanta procura, sonhador
viajante...
6
Anjo meu, anjo feliz
Olha em meus olhos e diz
Errar não é mesmo preciso?
O rastro para Deus é preciso?
Anjo fidelíssimo amigo
Muro entre mim e o perigo
Pode me abandonar?
Posso lhe magoar?
Anjo como todo ser da luz
Que o deleite do mal não seduz
Vejo a verdade e acaba?
Levar-lha-á com suas asas?
Anjo que confia a minh’alma
O dom supremo da calma
Fervoroso em sua atribuição
Brilha sem perfeição?
Anjo que vê meu futuro
Um tanto também sou puro
Não choro, não juro, não fujo
Menos penso ser cão sabujo
Só, anjo, que me aqueça a chama
Da distante estrela de quem ama
Não só de amor, mas de riso
Posso escolher o que preciso?
7
Eu sempre amo o sol durante o dia
Que arde e reverbera num
longínquo eterno
E pulula nas memórias, pois com
um caderno,
Lápis e cores o reproduzem com
vasta maestria
Da lua eu me lembro, mas para visitá-la
Pela utopia inerente de certos
sonhadores
Que de tudo anseiam ser
participadores
E quando a conhecer, talvez eu vá
a amá-la
Há uma suprema essência de
invisível teia
Que tão nos interliga num austero
nó
Até formar a tudo; tudo é uma
coisa só
Por isso este amor simples tanto
me recheia
8
Ignóbil do demo me quis atingir
da horda dos bucéfalos da perdida
esperança
planejou oprimir, açoitar, banir
não contou erigir-me brutal
confiança
Que fosse O Maldito em própria
pessoa
cuja mente castigos a arguciar
não se finda
viesse, (venha!) há tempo ainda
e ouso ditar que minh’ora é boa
Mas não, nem foi mesmo tão nobre
bufão
embora alguns parvos o lambam de
quatro
a corte é covil e o rei é um rato
que toma em surdina qual reles
ladrão
Seu nome nÃo digo poiS a muiTos Assusto
outROs cegos verão qualquer apologia
há ainda os que cheirarão de perTo a orgia
prontos para em praça erguerem-lHo busto
Sua infam’ estratégia pôs-me em
alerta
barganhou e ousou longe da ética
perdeu na soberba, criatura
patética
alongando sem pudor o tamanho da
oferta
Da forte magia que ondula o mundo
refestela-se além da
responsabilidade
e tenciona atrair dos justos
metade
até desfrutar de seu valor
oriundo
A quíntupla estrela ensina a
inverter
a chave dos símbolos reluz à
visão
é ele, arauto da Revelação
empenhado em minar e fazer sofrer
Ainda que os mais infortúnios
mostrasse
implacável figurasse impropérios,
desatinos
seria o trovejar sobre a balbúcia
de menino
se não há tentação que não nos
enlace
Mas como o cãozito que busca a
bola
portar-me-ei a plena visão?
Estouro a bola de quem é o Cão
Ainda que de ódio e pragas me
assola
Pelos meios e fins de vital
assistência
já que tudo se existe a quem
procura
laço minha meta, mas com ternura
no mais vou seguro pela paciência
Tudo sucumbe à lucidez da coragem
cada vez mai é suficiente o que
se tem
vencer é saber que faz nenhum bem
morrer no mar em primeira viagem
Assim encontrei de ti tal verdade
não vale quanto toca todo teu
sonho mau
por poder que não teria sobre o
menor mortal
extirpo tua glória com minh’
autoridade
9
Os versos serão paupérrimos
ficarão arruinadas as rimas
escola nenhuma os aceitará
mas eis que a sua volta
surge um coração multicor
Há a todos a fase
de desenhar corações ao redor de
versos
mesmo os que odeiam versos
amam inexplicavelmente os
corações
chamam os poetas de ridículos
o romantismo de piegas
a causa humana de perdida
mas de forma inexorável não ousam
desdenhar dos desenhados corações
com canetas coloridas
10
Aonde vais, menino pagão
abrindo portais em pleno chão
atrás de túmulos para violação
e de encruzilhadas para maldição?
Não sei para onde vou, mas sei
quem és
Não tenho dons, mas tenho “fés”
Portais e túmulos sob teus pés
Maldições mais funcionam em seu
revés
Dê-me cá digníssima devoção
sincera
De ritos e bênçãos da mãe
Primavera
Já vivi do caos e da dor austera
Do poder dê-me a face que não
degenera
Por que confiar na simplicidade?
É tal qual mentir, aumentar a
verdade?
É possível saber distinguir sem
alarde
Que o dualismo nos conheça e tudo
nos guarde
11
Pedi um beijo e você não me deu
Disse que daria em hora seguinte
Odiei-te, matei-te, execrei-te,
pois doeu
Mas eram dezenove horas, agora
são vinte
Assim é meu Estado em tua redoma
Vai à guerra, conquista, confina
até a alma
Após a devastação, emancipado se
acalma
Não se habilita ao poder e a
rainha o retoma
Entre horas e beijos veio uma
lenda
De que o tempo conspira para que
não se vença
Ao beijo atrasado pode haver a
dispensa
Verdade é vaidade passível de
crença
Se a bela hesitar, ainda que se
renda
Será para sempre o príncipe
criatura horrenda
12
O vício pior é pelo que não se tem
O maior cego é quem enxerga perfeito
O primaz sofrimento nem se acerca do peito
Até desistirmos a vitória não vem
O merecimento é um fardo pesado
que poucos carregam já que o não vão abrir
É como cultivar iguarias pra praga consumir
ou sonhar ser ídolo do tempo passado
O pior desperdício é o da economia
A vital rebeldia crê na disciplina
Ter objetivos não é ideal
O começo de tudo chega sempre ao final
Plena certeza, só no que alucina
O que não é pra reluzir é que tem mais valia
13
Hei, veja nos arredores quantas
imperfeições
Onde estão seus descendentes
construtores?
Não faltam parabéns para os
atores
E métodos de erradas informações
Há um orifício com céu azul entre
as nuvens carregadas
Que não há de perdurar até o fim
Da mais efêmera canção já cantada
Por homens, demônios e serafins
Despertaram os mortos famintos
Prontos para devorar o futuro que
você plantou
Ávidos por carregar o rei que
ninguém coroou
Que verte em água o vinho mais
tinto
Até a morte parecerá amena
A ninguém a selva irá responder
Os melhores intérpretes vão
entrar em cena
Para que a luz no palco possa
escurecer
14
A tua libidinosa beleza se impõe
Quando desfila elegante, suave
brisa
Faz nascerem flores sobre os teus
caminhos
Sendo bálsamo às mentes e
corações que te amam
Ou quando avança impetuosa,
natureza enfurecida
Furacão que despreza qualquer dor
alheia
Outorga desafio aos cavaleiros de
teus reinos
Que se mantém sem dó pelo teu
amor
Mas, depois que passa
A marcante presença do teu
estilo,
O brilho ímpar de teu encanto
Deixa tristeza e saudade
Nos que sonham habitar-te a mente
Possuir-te o corpo
15
De pé sobre o mapa-múndi
um pé firme sobre a América
outro sobre a África
sento-me n’Antártida
afasto, com um chute, a Ásia
meus pés cercam o Atlântico
nasço uma rosa-dos-ventos
fecho os olhos e deito
de lado, cruzando o Índico
repouso a cabeça na Austrália
e meus pés mergulham-me no Pacífico
16
Onde está o amor e a poesia?
Todo dia amanhece e anoitece
Tudo se enquadra e isso me
entristece
Ver que está errado, sem valia
Que muitos vejam e todos já
possam ter visto
O fogo não queima e a água não
molha?
Será que ninguém vê o que todo
mundo olha
ou será mesmo dever se conformar
com isto?
Até onde chega a tolerância?
Sempre há escolhas, mesmo as mais
soturnas?
Minhas esperanças vou postar em
urnas?
Tudo se atrasa pela ganância
Deveria ser mesmo extremismo
furar fila pra saltar pro abismo?
17
Quero te descrever, mas está
difícil
Como direi teu beijo, teu amar?
Talvez veja os teus lábios,
quiçá, teu olhar
De resto és fortaleza imune a
todo míssil
Quero te retratar mesmo sem o dom
Para ter de ti concreto fragmento
de lembrança
Que jamais seria a ti, mas uma
esperança
De creres que tanto amor algo tem
de bom
Quero atravessar-te, mas tens de
ser a ponte
Ou de me esticar arrebentarei de
dor
E quando minha mão tocar-te
estarei partido
Eu sei, nem todo querer há de ser
merecido
Um pouco mais de ímpeto
desmantela a flor
O mais bravio rio jaz secada a
fonte
18
Minha todo dia a amante vem
e eu a espero lá onde marcamos
o sol brilha ‘ante onde nos
amamos
e em sua tez, ouro puro se retém
eu lhe digo: “onde eu for tu navegarás
e meu coração ri que zarpa contigo
Vês mera audácia, mas é amor, te digo
Minh’alma contempla a ti na hora da paz”
De todo meu prazer, de toda
alegria
numa só essência ela é guardiã
enquanto guardo apenas vã
simbologia
que se puder ousar usarei sem
covardia
venha amante sempre como uma
manhã
sempre a renascer nossa fantasia
19
Nunca foste minha realmente
Nunca nos amamos em essência
A ninguém entregaste tua
inocência
Ela mesma te deixou tão de
repente
Nunca fomos um para o outro tudo
E jamais fomos fiéis em próprio
sentido
Caímos como todos no sonho
repetido
Às vezes descrever compete ficar
mudo
Nunca fomos doidos loucos pela
ilusão
Onde erramos então, sem peso e
sem medida?
É uma reflexão ou uma despedida?
Ser outro é ser parte de alguém
da vida
Mas, à parte isso, há uma saída
Arbítrio e honestidade em mesma
proporção
20
Por que eu voltei aqui?
Já conheço este momento
Este dia já vivi
Parti sem prévio aviso
Nem mesmo me despedi
Fui buscar o que era novo
Para aprender eu existi
Mas em algum instante
Lamentavelmente me perdi
Tornado à condição de outrora
Por miséria, regredi
21
Quem sois vós diante do espelho?
Será que tanto tempo se passou
sem que passasse...
...eu pelo espelho?
E agora não me reconheço?
Não vos conheço.
Ou esperava de vós mais
personalidade
que vos pusésseis diante de mim,
outro
cheio do revés inerente a todos
os espelhos
que fosseis absolutamente tudo o
que eu não sou?
Quis inverter os sentidos
de quem é insensível?
Quem sou eu diante de vós,
que vos fiz sem escolha?
E sem escolha vos fiz
Quiséreis ser a mim, mais humano
para fazer-vos ser maior pelo
amor e pela palavra
sentir o ardor das emoções
e ouvir a voz abençoada das
palavras
Quiséreis ser a mim, mais sensato
preso um pouco menos aos limites
do absurdo
Uma prisão conseqüente, não como
a dimensão dos espelhos
Quiséreis ser a mim, mas vós
com vontade e condição de
modelar-vos a aparência
e eu quisera ser a voz
que só e perpetuamente ecoa
de vosso mundo a incorruptível
verdade.
22
Na intersecção dos conjuntos passado e presente
o conjunto do presente mente
o conjunto do passado é valente, mostra os dentes
e ainda, se pode, faz-se de
inocente.
O conjunto do presente é descrente
faz a todos pensarem que não ama,
não sente
e que a culpa é do conjunto do passado aparente
O conjunto do passado, passado, ressente-se
e acusa o presente de negligente
de seguir sem pensar e olhar só
pra frente
pro conjunto futuro, sempre membro ausente
O conjunto do futuro se sente
ferido e ultrajado pelo parente
e do que só assuntava através de
lente
faz-se ativo fiel incisivo
exigente
“Inviável, absurdo conceberem tais mentes
qualquer traço de culpa em quem é só vertente”
Os defeitos, conflitos
suscetíveis inerentes
de seus próprios acusadores que
lhe fazem decorrente.
Sobrará qual conceito se seguirem
em frente?
Quem será mais astuto, o mais
senciente?
Tribunal impossível de haver
presente
se o crime inexiste, mas todos
são agentes.
23
Às vezes eu mesmo me complico
enchendo meu velho baú de
lembranças com conjecturas
misturando-as e formulando
esperanças
poucas vezes plausíveis
Às vezes me subestimo
sintetizando a essência dos meus
sonhos
num produto vago comum
Mas, o que sempre sou é uma
erupção de desordem
num espaço único e restrito
Tudo bem. Eu sei exatamente como
é a perfeição
Resta-me encontrar o equilíbrio.
24
Bom dia!
Você é minha.
É sim. Você é minha...
Ouviu? Ouviu bem; você é minha.
Não, não é a que está ao lado,
mas você.
Isso mesmo, você.
Você é minha...
Esqueça qualquer outra verdade
e aceite esta que é a sua real condição.
Você é minha.
Ignore essa pequena chama de orgulho.
Isto nada tem a ver com orgulho,
vaidade, auto-estima, senso de preservação.
Tem a ver com certeza
e com destino.
Você é minha...
Sim, você é.
De nada lhe vale tentar ignorar-me,
fingir que não é consigo.
Você é minha...
De nada lhe valerá dizer que não
é.
Você acha que não quereria ser?
Você sabe mesmo o que quer?
O que importa o que você quer?
Você é minha.
Em plenitude lhe possuo.
Se uma mulher pode ser de um
homem,
então você é minha.
Idealizada e gerada para mim.
No mundo, você é a mulher que me
pertence.
Nada similar à escravidão.
Nenhuma relação com dependência.
Apenas seu estado de ser.
Tão natural quanto sua natureza.
Você é minha...
A cada instante e a todo momento
Mais do que pensa, sonha e
respira.
Mais do que precisa, mais do que
convém.
Mais do que tudo, você é minha...
Ainda que possa fugir.
Ainda que esteja longe.
Ainda que sejamos mortais.
Ainda que tudo é efêmero
e não nos compete o futuro.
Sim, você ainda é minha...
Ecoa-lhe minha voz por todo o ser
e lhe preenche.
Sua mente transborda de mim
e deságua em seu coração;
propaga-se, difunde-se
constantemente.
Você é minha.
Pare de se esconder!
Pare de lutar contra isso!
Pare de pensar que sou louco,
ou me tentar fazer parecer louco.
Aceite apenas ser o que você é.
E você é. Minha...
Além não há nada.
Que isso lhe soe agradável.
Ah, como quero lhe ver feliz!
Eu te amo.
Quero encontrar agora o seu olhar
vagante.
Sem perder a menor sinceridade do
que eu já disse,
far-me-ia tão bem lhe tocar neste
momento;
em todos os momentos.
Sempre é todo momento em que você
é minha.
Louvaria beijar-lhe.
Vibrar, maravilhar-me com o seu
calor.
Vencer na pessoa do amor.
Ser o seu amor.
Por acaso eu já disse de quem
você é?
A possessão é um mito
O poder, ilusão
Você é minha
maior perdição.
25
Quando me vi sob um céu tão
plenamente estrelado
rodopiei
Livre de todo preconceito e
repressão
Sem culpa no semblante
e com o espírito pueril
Nem me lembro do que antes fazia;
mas sei que era noite e havia
estrelas
e agora, sempre que é noite
estrelada
sinto o rodopio de minh’alma
Todos os meus chakras se harmonizam
até eu ser e sentir a evolução
constante do universo
e não importa onde eu esteja,
quem eu seja,
ou o que eu faça;
este mero rodopio me redime
26
Em todo pensamento há um pouco do
infinito
Desnutrido pelo desuso
O infinito é a sabedoria de um
deus aflito
Apenas de si mesmo confuso
A virtude divina é a liberdade
O resto é sorte e ostentação
Em todo pensamento cabe a verdade
Embora pouco ela conste na
escalação.
27
Olá, cara fome, minha companheira
Esbugalhar-me os olhos parece-lhe
ser ofício
E devo estremecer a cada novo
míssil
ou beliscar um queijo de qualquer
ratoeira
Disse-me o Senhor, nosso fardo é
leve
se perseverada nossa altivez
Lamento amiga fome, ao menos desta
vez
mesmo que perdure, teu direito é
breve
Sei que há demais fomes que não
ao corpo nutrem
Não há em que, todavia,
distinguir a procedência
‘inda que certas sustâncias
preguem demais violência
entram por bocas, olhos e ouvidos
que lhe escutem
agem sobre a honra, o vigor e a
inteligência
Esta é a pior fome: a
maleficência.
28
Vem às portas da vitória derrota
amarga
e da comemoração só zombaria
resta
pouco se lhe importa se está
armada a festa
quem não pode chora e transfere a
carga
Cuida a justiça só da unanimidade
próprio interesse, vê-se, não lhe
vence
digno ou não, tudo é non
sense
o vício do imprevisto jaz na
passionalidade
Assim aos que contam no pico da
montanha
para as juras e o beijo com um
raiar fascinante
do negror das nuvens a enxurrada
é tamanha
Gosto do sol e da chuva vibrante
Ainda que venha a vitória,
orgulho não me assanha
Sempre há mais guerra e o tempo é
avante
29
Enxergar arte é uma arte
A sensibilidade é caprichoso presente
É mais fácil ser artista do que
estar em Marte
Difícil é transver o que não é
transparente
O mundo é arte não porque é terra
rochas e mares que giram em
harmonia
mas por só o descrevê-lo já ser
poesia
e o desmerecer ser próprio de
quem erra
A arte assim fica como o mundo
pululando no universo de toda
existência
que quanto mais a busca com sua
Ciência
mais se lhe cobre de mistério
profundo
30
Eis, amigo Toni, cá estamos nós
Eu mais ponderado, tu já
extravagante
Tu sempre engajado nas coisas
importantes
E eu edifico túmulos como os
faraós
Sigo amofinado por dilemas fúteis
Tu, com propriedade, desfrutando
a vida
São imutavelmente teus momentos
úteis
E eu cheio de contas, dores e
perfídias
Talvez, querido amigo, quisesse
tua sorte
se outra fosse ela antes da
tragédia
e não te seguisse desde o berço
teu tesouro
mas nada em teu brilho deve-se à
morte
foste e serás luz sempre e sem
média
sobrou-me garimpar por meu
próprio ouro.
31
A forma
O nome...
A carga emotiva
(e todos os neófitos dirão “viva!”)
A fome é a de tudo o que não
define
Só revela mistérios
Pouco acrescenta, nada informa
Mas entrete e inigualavelmente
distrai
O nome ousa
Assume a total responsabilidade
Tem o princípio e o fim pleno em
si
É o tudo que sintetiza
Em visão, o nome é a luz
Emoção é o tecido
A roupa ou o corpo que
individualiza
Sedimenta, define
Na atração, é o tesão.
32
De doces pecado minh’alma se
nutre
Não traz medo ou pudor por
deliciosa doença
Apenas anseios, posto que em tua
presença
A paixão é um fervor e a culpa,
um abutre
Assim te adoro mesmo que em
diferença
Que a harmonia seja vilã e o
destino seja um biltre
Impossível coibir que
tamanh’alm’altiva filtre
Tudo o que entorpeça desse amor a
crença
Mentalizo facilmente tua beleza
despida
E todo me preencho de alegria
imensa
No maior prazer de se querer da
vida
E ainda que lhe falte recíproca
recompensa
Não consente ser a menor sensação
desmerecida
Est’ alma irremediável à paixão
propensa
33
O poeta sorri
para outra ilusão
Como pode, ó pavão,
querer ser jabuti?
E golpeia certeiro
o próprio coração
Que loucura, carneiro,
perseguir o leão!
Ébrio do infinito
em nova façanha
D’ enrolar a aranha
desista mosquito
No fim há quem diga
que é de sonho gigante
Parabéns, formiga,
por erguer o elefante
34
Nuvem
nuvem nuvem
nuvem nuvem nuvem nuvem
raio
raio raio chuva
chuva chuva
chuva chuva chuva raio chuva
chuva
chuva chuva chuva chuva raio
chuva chuva
chuva chuva raio chuva raio chuva
raio chuva
chuva chuva chuva chuva chuva
chuva chuva
chuva chuva chuva chuva
chuva chuva
chuva sol
arco-íris
sol
35
Lembrei-me de você de uma outra
vida
num exercido ritual em altar
escuro
Você me pertencia toda e sem
saída
na minha mais perdida memória do
futuro
Eu sei que nada nos obriga a
acreditar no místico
Por que confiaria em tamanha
brusca mudança?
A ponderação de fato não é
esperança
e ainda que seja não se extingue
de valor artístico
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